O historiador José Murilo de Carvalho, um dos mais importantes pesquisadores da história da cidadania no Brasil, concedeu uma entrevista bastante pessimista à BBC Brasil nessa semana, comentando a crise política brasileira e os paralelos que podem ser traçados com a crise do governo de Getulio Vargas na década de 1950.
Para Carvalho, o Brasil "ainda não faz jus ao nome de República democrática". As intervenções dos militares e as quedas de presidentes infelizmente fazem parte da história brasileira e formaram a cultura política no país, dificultando nosso zelo pela estabilidade institucional.
Para Carvalho, apesar das diferenças fundamentais do cenário de hoje -- a não interferência dos militares e a baixa influência dos Estados Unidos da América em questões de política interna no país --, o cenário é de intolerância e acirramento dos conflitos. Diz ele na entrevista, em tom de incerteza: "A radicalização política e a intolerância chegaram hoje a um ponto perigoso. Não há mais debate, apenas bate-boca e gritaria. Neste cenário dominado pelas paixões, tudo pode acontecer, mesmo um sério conflito social".
A questão do conflito social me fez pensar muito nos últimos dias. Existe em nós uma certa tendência de evitarmos o conflito ou mesmo uma omissão em discutir a importância do conflito na sociedade. Isso é sintomático também nas faculdades de direito. Não há uma teoria do conflito estudada a sério, seja ela em uma perspectiva sociológica seja ela em uma perspectiva psicológica, como fez Marshall Rosenberg em sua teoria da comunicação não violenta. Pulam-se etapas. Ao invés de estudarmos os conflitos em sociedades democráticas, passamos diretamente para os estudos de formas de resolução de conflitos, em especial o sistema judiciário.
Em nossa cultura política, também temos dificuldade em concebermos o conflito como algo positivo, como algo constitutivo da cultura democrática. E essa ideia não é intuitiva. O "amor do debate" e "amor ao conflito" podem parecer intrínsecos a algumas culturas específicas, como a própria cultura acadêmica -- o desenvolvimento de ideias e teorias é feito com base em discordâncias, críticas e conflitos de posições --, mas eles não são para a cultura política no Brasil.
Me parece que temos dificuldade em entender o conflito como necessário para a democracia. E isso tem uma consequência grave no contexto brasileiro atual: a maioria da população quer uma solução rápida, uma saída para a crise que supostamente ponha fim ao conflito atual. É nesse momento que surgem soluções antidemocráticas ou lideranças que se valem da demagogia para a simplificação de conflitos difíceis de uma sociedade, como a turbulenta sociedade brasileira de hoje.
Conflitos sociais como pilares de sociedades democráticas
Gostaria de relembrar um texto de um dos intelectuais que mais tenho admiração: o cientista social Albert Otto Hirschman (1915-2012). Hirschman foi um prodigioso economista e pesquisador de teoria social que transitou por diversas áreas do saber. Hirschman, que nasceu na Alemanha mas desenvolveu sua carreira intelectual nos EUA, é muito conhecido entre os economistas latino-americanos, especialmente pelos seus estudos sobre desenvolvimento econômico do final da década de 1950. Entretanto, os trabalhos de sociologia e teoria política de Hirschman ainda são pouco conhecidos no Brasil. E é esse outro Hirschman -- o da teoria política e não o do desenvolvimentismo -- que considero importante para a discussão de questões importantes para nós hoje.
Em 1994, Hirschman publicou um ensaio intitulado Social Conflicts as Pillars of Democratic Market Societies na revista Political Theory. O ensaio foi encomendado por um grupo de intelectuais alemães que queria discutir a seguinte questão: o quanto de comunitarismo deve existir em uma sociedade liberal?
Hirschman inicia seu ensaio sobre a questão do comunitarismo -- em especial a crítica comunitarista ao liberalismo proposto por John Rawls --, mas logo aprofunda-se no trabalho do filósofo Helmut Dubiel, realizado no Frankfurter Institut für Sozialforschung. Apesar das referências altamente qualificadas, a discussão é simples de compreender.
Hirschman elogia a ideia de Dubiel de que não há necessidade de coesão ou consenso sobre o que é uma "vida boa" entre as pessoas em uma mesma sociedade, mas que há necessidade de maior integração do que simplesmente a Verfassungspatriotismus (o respeito pela Constituição e pelos direitos civis), construída culturalmente na Alemanha após a experiência desastrosa do nazismo e seu forte apelo ao "espírito do povo alemão".
Segundo Hirschman, "os conflitos geralmente são vistos como perigosos, corrosivos, potencialmente destrutivos da ordem social e precisam ser contidos ou resolvidos por alguma reserva extra de espírito comunitário". Mas, para Dubiel, "os conflitos sociais produzem, eles próprios, os laços valiosos que produzem a cola da sociedade democrática e garantem a ela a força e coesão que precisam".
A partir das análises da escola de Frankfurt, Hirschman retoma discussões clássicas sobre o conflito (Streit) feitas por Georg Simmel e pelo cientista político Bernard Crick. Hirschman destaca uma passagem de In Defense of Politics que é crucial para a ideia de discordância e prática política pelos cidadãos: Diverse groups hold together because they practice politics - not because they agree about fundamentals, or some such concept too vague, too personal, or too divine ever to do the jobs of politics to it.
Mas Hirschman nega a ideia de uma apologia do conflito. Ele é bastante cético com as teses alemãs de que o conflito é sempre fortalecedor ("Was mich nicht umbringt, macht mich stärker", no aforismo de Friedrich Nietzsche) ou a ideia de que no perigo há sempre salvação. Para ele, existe uma pergunta central que não pode ser respondida por essas afirmações abstratas: seria possível distinguir entre dois tipos de conflitos sociais, aqueles que deixam um resíduo positivo de integração e aqueles que desmontam uma sociedade?
Essa pergunta é bastante incômoda para o cenário brasileiro. Afinal, que tipo de conflito é esse que estamos experimentando? Seria um conflito capaz de promover maior integração democrática? Ou esse é um daqueles conflitos de ruptura de que fala Hirschman?
Ubiquidade dos conflitos em sociedades de mercado pluralistas
Hirschman está de acordo com Dubiel e outros teóricos que reconhecem o papel central do conflito nas sociedades democráticas. Mas o que ele propõe é um olhar mais contextualizado e empírico. "Precisamos olhar o tipo de sociedade e o tipo de conflito no detalhe", diz Hirschman neste ensaio.
Daí a divergência fundamental vista por ele entre sociedades fechadas, com perfil autoritário e planejamento econômico centralizado, e sociedades pluralistas, caracterizadas por mercados pluralistas e liberdades políticas. Uma passagem do ensaio oferece uma espécie de teoria do conflito nesse último tipo de sociedade:
O conflito é, de fato, uma característica de sociedades de mercado pluralistas que tomaram saliência com notável persistência. É a contrapartida natural do progresso técnico e da criação de novas riquezas, pelas quais a sociedade de mercado tornou-se famosa. Conflitos surgem de desigualdades emergentes e declínios regionais ou setoriais -- a contrapartida de vários desenvolvimentos dinâmicos da economia. Em sociedades com liberdade de expressão e de associação, preocupações com essas questões tendem a mobilizar tanto aqueles que são imediatamente afetados bem como os cidadãos que são sensíveis a sentimentos mais ou menos compartilhados de justiça social. Aqui então surgem demandas de ação corretiva e reformas, demandas que são baseadas tanto em autointeresse quanto em preocupação genuína com o bem público. (...) O segredo da vitalidade de uma sociedade de mercado pluralista e de sua habilidade de regenerar-se pode residir dessa conjunção e na sucessiva erupção de problemas e crises. A sociedade produz assim uma 'dieta estável de conflitos' que precisa ser enfrentada e que a sociedade aprende a lidar (Hirschman, 1994, p. 212).
O problema, no entanto, é que os conflitos não são de um único tipo. As questões clássicas da luta de classe (Klassenkampf) são conflitos redistributivos, conflitos que Hirschman chama de "mais ou menos" (more or less). Eles envolvem disputas sobre direitos sociais, realocação de recursos recolhidos por tributação e investimentos em setores ou regiões marcadas por desigualdades. Mas existem outros tipos de conflito que não são desse tipo. Eles são conflitos de embate, de escolha única e de tudo ou nada. Hirschman chama esses conflitos de "um ou outro" (either-or) e são os conflitos que mais crescem nas sociedades democráticas atuais, pois envolvem escolhas sobre políticas de migração, aborto, legalização de drogas e outras questões não redistributivas.
Na visão de Hirschman, o problema central é que a "dieta estável de conflitos" geralmente envolve conflitos divisíveis, que conduzem a acordos e à arte da barganha. Esses são os conflitos que, apesar dos embates e das posturas agressivas, geram acordos temporários, que não geram a ideia de ilusão de que as soluções são definitivas. Já os conflitos "não divisíveis" não. Eles provocam atritos desgastantes e levam à ideia de que as soluções são definitivas -- sendo que na política as soluções nunca são.
Pistas hirschmanianas
Como fica o Brasil nessa situação? Como entendê-lo pelas lentes de Hirschman?
A primeira dificuldade é categorizar o tipo de conflito que está em jogo. Certamente, não estamos inseridos em conflitos do tipo "mais ou menos", voltados a questões alocativas, redistributivas e de definição de políticas sociais. Mas também parece que não estamos na categoria "um ou outro" de Hirschman, pois não estamos discutindo legalização do aborto, banimento de imigrantes ou projetos políticos identitários.
O tipo de conflito no Brasil é muito peculiar. Existe um diagnóstico de "excesso de corrupção" e um sentimento de revolta por parte da população. A mídia, o Judiciário e os partidos mais oportunistas (notadamente PSDB) aproveitaram esse sentimento para reanimar um certo espírito comunitário anticorrupção. Esse caldo cultural e espiritual é o que tem servido de combustível para tentativas de derrubada do governo executivo federal (Partido dos Trabalhadores) por meio de pressão à renúncia e o procedimento de impeachment que corre no Congresso.
A divisão se dá entre os que acreditam que o impeachment é a solução para grande parte dos problemas de corrupção e aqueles que veem argumentos jurídicos e políticos muito frágeis para o impedimento do governo, considerando que a acusação formal nada tem a ver com corrupção, mas sim com crimes de responsabilidade fiscal por "maquiagens nas contas públicas".
A tese de Hirschman é que o espírito comunitário não é uma solução deus ex machina. "O que nós realmente precisamos para fazermos progressos com os novos problemas que uma sociedade encontra em seu caminho é empreendedorismo político, imaginação, paciência aqui, impaciência lá e outras variedades de virtú e fortuna", diz Hirschman na conclusão de seu ensaio.
Isso me leva a pensar que soluções mais sofisticadas e mais robustas para o problema brasileiro não são o impeachment ou tentativas de nulificação do governo Dilma, mas passam por agendas programáticas concretas nas eleições de 2016 e de 2018, com mais empreendedorismo político.
É preciso cuidado com o discurso o raso e raivoso de combate à corrupção. Como escreveu Rubens Glezer no Estado de São Paulo, "é hora de a sociedade abraçar a Política, não de afastar-se dela". Isso se faz com projetos, partidos e Política -- a alta politica de que falava Antonio Gramsci, preocupada com a transformação ou destruição de determinadas estruturas socioeconômicas.
Mestre,
ResponderExcluirVenho acompanhando o seu pensamento crítico e reflexivo há um tempo. Concordo com suas palavras e análises, não porque não gosto de conflitos ou discordâncias, e sim porque acho que precisamos refletir o momento político de nosso país e percebermos que há uma grande reflexo da política em todas as áreas do conhecimento, " como se atirássemos uma pedra em um lago calmo e as ondas decorrentes deste impacto provocassem ondas". As forcas midiáticas são intensas demais para um país com tanta carência de senso crítico, senso este em falta....
Grande abraco,
Daniel Hughes