Está circulando nos corredores das "Arcadas" (Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo) um jornal criado pelos estudantes de graduação, intitulado O Comercialista. O objetivo da publicação mensal, segundo seus criadores - na sua maioria alunos de terceiro ano e estagiários de um grande escritório de advocacia de São Paulo -, é "fomentar a produção acadêmico-científica do corpo discente nas áreas de Direito Comercial e Econômico, propiciando aos alunos um veículo de comunicação acessível".
O jornal chamou minha atenção, pois logo na capa há enorme foto de José Eduardo Campos de Oliveira Faria, Professor Titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito, um dos maiores nomes da sociologia jurídica latino-americana (e por que não do mundo?). Para quem não é do direito, explico: Faria é uma espécie de "lenda" da universidade, um docente de altíssima qualidade que há décadas influencia gerações com sua abordagem crítica de direito e economia política. Não titubeei: peguei uma edição do jornal e trouxe para casa para dar uma boa olhada.
A publicação é bem bacana (está on-line aqui), parabenizo os alunos. Todavia, apesar das boas matérias sobre mercados e finanças, propriedade intelectual e direito societário, o jornal se destaca mesmo pela entrevista com Faria, um brilhante observador das mudanças estruturais causadas pela globalização e pela transformação da sociedade industrial para a sociedade informacional. Sua visão crítica certamente influenciou um enorme grupo de professores de direito formados em São Paulo. O livro "Impasses e Aporias do Direito Contemporâneo: estudos em homenagem a José Eduardo Faria", organizado por Emerson Fabiani e publicado recentemente, é prova desta influência e traz relatos de antigos orientandos e orientandas de Faria, como os professores da nova geração Celso Campilongo, Denise Vitale, Diogo Coutinho, Maíra Machado, Marta Rodriguez Machado, Paulo Mattos, Ronaldo Lemos, Ronaldo Porto Macedo Jr., e outros.
Acredito que sua influência vai além do espaço da sala de aula e do Programa de Educação Tutorial (que coordenou entre 1979 e 2010), isto é, dos seus alunos e interlocutores. Faria foi um dos autores que me fez observar com a devida atenção a interface entre direito e economia, numa perspectiva crítica, durante minha graduação em Maringá. Esse ano, tive o prazer de deixar de ser apenas um leitor - a obra "O Direito na Economia Globalizada" foi decisiva na minha formação -, para, neste segundo semestre, me tornar aluno de José Eduardo Faria no curso de Metodologia do Ensino Jurídico, um instigante módulo destinado a mestrandos e doutorandos da USP que, ao contrário do que sugere o título, não volta-se a "como dar aula", mas sim realiza uma abordagem crítica ao bacharelismo brasileiro (o tradicional ensino jurídico) e a necessidade de repensar o ensino sob uma perspectiva interdisciplinar, capaz de integrar os indispensáveis elementos de economia e política ao direito (como consta no programa, "a disciplina tem por finalidade estimular o aluno a refletir sobre as finalidades e elementos constitutivos do saber jurídico, a noção de justiça, a construção socioeconômica dos conflitos e a observação da produção, prática e efeitos do direito. A ideia é avaliar criticamente o ensino jurídico, proporcionando instrumentos teóricos para uma análise empírica do direito e de suas relações no âmbito da economia, política e relações internacionais"). A bibliografia do curso é fantástica e inclui textos de Anthony Kronman, Richard Swedberg, José Murilo de Carvalho, Henry Steiner, Sérgio Adorno, Wanderley Guilherme dos Santos, José Luís Fiori, Yves Dezalay e Bryant Garth, Boaventura de Sousa Santos, Bob Jessop, Pierre Bourdieu, Duncan Kennedy, Rolf Kuntz, Joaquim Falcão, David Trubek e, claro, as obras do próprio José Eduardo Faria (a mais recente é "O Estado e o Direito Depois da Crise", lançado pela Saraiva em 2011). As aulas são recheadas de informações dos bastidores do poder e de insights sobre o futuro do direito e da democracia. É impossível sair de suas aulas com a mesma visão de mundo.
A entrevista de Faria aborda muitos temas tratados em sala de aula. A pergunta "quem é que está produzindo pensamento jurídico de ponta hoje?" também permeia a entrevista, uma reflexão que é feita com os alunos de pós-graduação. Faria escancara a realidade: "nas faculdades de Direito, temos um ou outro professor. Isso é um fenômeno mundial. No Brasil, quem mais discute Direito é o Departamento de Filosofia da USP, pois eles descobriram Rawls, Dworkin, Hart, Kelsen... Quem discute Teoria do Estado é o Núcleo de Direito e Democracia do CEBRAP. Quem discute práticas jurídicas é o Grupo de Direito e Economia da Universidade de Brasília. Quer dizer, as faculdades de Direito, de um modo geral, estão um pouco atrofiadas, elas não são criativas". Essa é apenas uma das muitas provocações de Faria. Sua grande batalha é travada contra o formalismo jurídico e a permanência de uma visão disciplinar estanque, que impede que os juristas enxerguem os problemas jurídicos em seu contexto político, social e econômico. Trata-se da velha superação proposta há mais de um século por Roscoe Pound da visão do direitos nos livros (law in books) para o direito em ação (law in action).
Reproduzo a entrevista, na íntegra (e aviso aos autores do jornal que o faço para uso não comercial). Ela está divida em duas partes. A primeira trata de questões do ensino jurídico e transformações na profissão jurídica. A segunda está ligada a temas do cenário socioeconômico brasileiro e a necessidade de romper a visão exclusivamente forense da prática do direito.
1. Perguntas genéricas sobre a Faculdade, os estudos e a profissão:
Qual a situação mais marcante por que o senhor passou dentro da São Francisco?
Passei por algumas experiências interessantes. Como aluno, participei da chamada “Tomada da Faculdade de Direito”, quando houve a apropriação da Faculdade pelos estudantes, durante as lutas do Movimento Estudantil de 1968. Os estudantes fecharam as portas da Faculdade com tijolos, exigindo uma reforma pedagógica, o que resultou na ida de uma comissão de professores aos Estados Unidos para conhecerem o sistema americano e tentarem mexer no projeto. Como professor, posso dizer que me decepcionei com um concurso que prestei aqui na Faculdade, no qual houve problemas. Por perceber, naquele momento, um pouco de falta de lisura (termo pesado, mas adequado), modifiquei o meu modo de olhar a universidade e a maneira de me inserir nos órgãos colegiados da Faculdade, pois participei de quase todas as comissões desta Escola.
Esta Academia prepara bem o estudante para encarar o mercado de trabalho? Falta prática jurídica? A grade curricular, em sua opinião, é boa?
Não. Eu não acho que o problema seja com a grade, mas com a falta de um projeto pedagógico. A prática jurídica deve ser revista, pois é confundida, aqui na Faculdade, com prática forense. Na realidade, a prática jurídica vai além da prática forense, que é necessária, mas não suficiente. Você pode fazer um trabalho de prática jurídica no departamento jurídico de uma entidade empresarial, de um sindicato, de um movimento social, do governo, da administração indireta etc. Essa é a primeira observação, mas há uma segunda: parece que o modelo de formação diferida ao longo do tempo esgotou-se, ou seja, ter, no primeiro ano, uma grande introdução; nos segundo e terceiro anos, as grandes teorias gerais (Direito civil, Direito público, processo etc.); e, ao fim, prática jurídica e estágio, não parece suportar a velocidade alcançada pelo processo schumpeteriano de Destruição Criadora. Em um momento, você começa a perceber que, nas áreas sensíveis à instrumentalização tecnológica, a vida útil de um modelo tecnológico, às vezes, dura dois anos, enquanto se gasta de quatro a seis para formar um profissional. Gasta-se mais tempo formando uma pessoa para operar um modelo tecnológico que a sua vida útil. Isso modifica o papel da Universidade, obrigando a revisão da grade curricular. Nesse sentido, temos duas alternativas: (a) Mestrado seqüencial. Encurta-se drasticamente a graduação, suprimindo as disciplinas teóricas, fornecendo ao aluno o paradigma tecnológico dominante. Gasto dois ou três anos para formar um profissional para operar uma tecnologia que vai durar o mesmo tempo. Esgotando-se a tecnologia, esse profissional volta para a universidade e faz um novo curso, um mestrado técnico de seis meses, após os quais a pessoa volta ao mercado e trabalha mais dois ou três anos, até que a tecnologia se esgote novamente. É um retorno periódico, regular, à universidade para manter o profissional atualizado tecnologicamente no mercado. (b) Dar ao aluno uma formação teórica tão sofisticada que lhe permita lidar com o novo, de forma que ele saberá enfrentar qualquer inovação tecnológica, pois terá uma capacidade de auto-aprendizagem. A duração do curso é mantida, mas a preocupação com a dimensão técnica (de prática jurídica ou forense) é eliminada. Essa é uma tendência que eu tenho visto em algumas universidades européias. Pessoalmente, invisto na idéia de uma formação teórica sofisticada.
Qual a importância de atividades extracurriculares durante a graduação? Intercâmbio e pós-graduação no exterior são ideais?
Acima de tudo, o que eu tenho percebido não só na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, mas em todas as faculdades de Direito do Brasil, é uma falta de informação por parte do alunado e do corpo docente. Há uma incapacidade de perceber que o mundo mudou, que a tecnologia de informação se globalizou e que temos, hoje, uma série de cortes transversais, os quais são fundamentais para você compreender o mundo contemporâneo, o papel da universidade, para você se compreender como cidadão e para optar profissionalmente e construir a sua carreira. O que mais chama atenção, no meu modesto ponto de vista, é o descompasso existente entre a quantidade de informações produzidas diariamente e o baixo consumo de informações nas faculdades de Direito, as quais ficaram fechadas, olhando para o passado, cultivando perigosa e excessivamente uma tradição. Com isso, elas foram se distanciando cada vez mais do mundo contemporâneo. Ao entrar numa faculdade de Direito, percebe-se certa incapacidade no processamento de informações e um desconhecimento com o que acontece no resto do mundo. Esse fechamento para a tradição a leva a não notar a necessidade de se modernizar, de buscar um diálogo com outras universidades, com outras áreas do conhecimento, de caminhar numa linha de crescente interdisciplinaridade. Por exemplo, esta Escola e a USP, de um modo geral, falam o tempo todo na necessidade de um projeto de internacionalização do ensino, no entanto, neste prédio, nós não temos internet. No Brasil, devemos ter por volta de onze mil professores de Direito. Deles, de mil e quinhentos a dois mil possuem curso de pós-graduação, ou seja, mais ou menos 80% do professores de Direito do Brasil não fizeram mestrado ou doutorado. São professores que reproduzem a sua experiência como juízes, promotores, delegados, advogados, procuradores do Estado, procuradores do Município, o que significa que eles introduzem uma mentalidade excessivamente forense, não conseguindo transcender essa visão tribunalícia, e falta massa crítica. No momento em que temos a crise da Justiça (estamos vivendo isso agora com o caso do CNJ) e começa-se a cobrar mudança no perfil dos juízes e dos tribunais, no sentido de converter a Justiça num prestador de serviço público eficiente, você começa a perceber que esses professores acabam deixando se levar por uma leitura corporativa, ou seja, eles têm muito medo de que uma reforma do Judiciário comprometa a instituição na qual eles trabalham. Dessa forma, eles são naturalmente resistentes ou conservadores, o que influencia em suas condutas na faculdade, pois vêm buscar, na universidade, argumento de autoridade para, no fundo, resistir às reformas do Judiciário. Essa tentativa de liquidação do Conselho Nacional de Justiça está dentro de uma perspectiva nitidamente corporativa do Supremo Tribunal Federal. Ele lidera uma visão de hostilidade com qualquer tipo de controle, lidera o status quo de um Judiciário que foi desenhado para o século XIX, incapaz de perceber a desterritorialização do Direito, a internacionalização das decisões econômicas, a necessidade que o Direito tem de liberar espaço para que a sociedade se autoregule, ou seja, incapaz de perceber que o mundo mudou.
Estágio: necessário? Quando?
Eu não acho o estágio necessário. Na medida em que você verifica que as especializações vão se sucedendo, de forma que algumas se tornam anacrônicas e surgem novas, eu acho que o estágio, principalmente o precoce, do aluno que sai do terceiro ano para estagiar, leva o aluno a perder o foco, tirando dele a capacidade de ter uma formação teórica maior. Em vez do estágio, valeria o intercâmbio. Aqui na Faculdade de Direito, tenho assinado cada vez mais cartas de apresentação para universidades européias. Esses alunos passam um ano, num primeiro momento, aprendendo língua estrangeira, mas fazem outro curso de graduação. Voltam com a cabeça aberta e absolutamente críticos e conscientes de que o que se aprende aqui é pouco e insuficiente, ou seja, voltam conscientizados da necessidade de uma formação mais sofisticada e mais interdisciplinar, com uma bagagem teórica que esta Faculdade não dá. Recentemente, eu li um relatório mostrando que os estudantes estrangeiros que vieram para o Brasil em intercâmbio têm a percepção da universidade brasileira como fraca, leniente, onde não se tem atividade didática ou de pesquisa, mas prova. E o aluno só estuda para prova, quando não cola. Esses estudantes estrangeiros dizem estar amargamente arrependidos de terem vindo para o Brasil. Os nossos estudantes que vão para fora, diferentemente, voltam outros. Na pós-graduação, substitui-se o doutorado pleno no exterior pelas bolsas sanduíche. O doutorado pleno no exterior custava por volta de duzentos e vinte mil dólares. O CNPq disponibilizava, para a área de Direito, cinco ou dez bolsas de doutorado todos os anos. Muitas vezes, esse doutor, uma vez formando fora, vinha para o Brasil e era absorvido por uma universidade ou empresa privada ou ficava no exterior, ou seja, não replicava, na universidade pública brasileira, o que aprendeu. Dessa forma, o CNPq começou a substituir esse tipo de doutorado pelas bolsas sanduíche, o que significa que você tem a possibilidade de concluir o doutorado no Brasil e pleitear passar um ano no exterior, no qual você não vai obter crédito ou fazer curso, mas pesquisa e leitura, tendo, ainda, a interlocução com outros professores. Todos os meus alunos que passaram um ano no exterior voltaram outros: cresceram, tornaram-se cosmopolitas, abandonaram uma visão de mundo provinciana, perceberam a necessidade de um diálogo interdisciplinar, de aumentar o seu rigor metodológico em termos de tese. Portanto, eu diria que a experiência do intercâmbio é muito importante, diferentemente da experiência com o estágio.
2. Novo Código Comercial e panorama socioeconômico brasileiro:
Quais conseqüências a aprovação de um novo Código Comercial poderia trazer ao Judiciário e à sociedade brasileira? Por ser principiológico, como defendido pelo seu idealizador, o Professor Fábio Ulhoa Coelho, geraria insegurança jurídica?
Temos dois aspectos a considerar. O primeiro aspecto é de natureza conceitual. Código, por princípio, é um corpo geral de regras basicamente padronizadoras. O problema é que vivemos em uma sociedade cada vez mais socialmente diferenciada, ou seja, cada vez mais complexa. Com isso, temos uma economia diversificada que vai se subdividindo em sistemas e subsistemas especializados, de forma a ter tanta diferenciação funcional que dificilmente você consegue dar conta dessa economia e dessa sociedade por meio de um código. A idéia de código, a meu ver, está posta em xeque. Esse fenômeno não é novo; no século XX, notadamente depois do término da Segunda Guerra Mundial e, principalmente, depois dos Estados Keynesianos e das sociedades afluentes, período de forte taxa de crescimento econômico e de expansão capitalista, você vai perceber que a economia ganhou tal velocidade e complexidade que ela passou a exigir um processo de descodificação e substituição do código por leis especiais. Nesse sentido, percebemos o segundo aspecto. No Brasil, você tem a Lei das Sociedades Anônimas, que é uma lei estabilizada, considerada muito boa, feita por pessoas que tinham capacidade técnica e boa formação teórica; a Lei de Recuperação de Empresas, que substituiu a antiga Lei de Falência e Concordata, a qual foi também feita já dentro da perspectiva de uma economia integrada em termos mundiais; e o Código Civil de 2002, que incorporou dispositivos que deveriam ser tratados por um Código Comercial. Dessa forma, eu diria que o novo Código Comercial não seria necessário. A idéia de código, em si, pode ser questionada. Em seguida, nós temos, no Brasil, leis especiais já sistematizadas e estabilizadas. Mexer nessa legislação, agora, seria desnecessário, seria dificultar a vida forense. Afora isso, você tem de perceber que o Brasil está atrasado no processo de renovação dos seus institutos jurídicos. Temos, nesse momento, a reforma do Código de Processo Civil, do Código de Processo Penal, do Código Penal, do Código de Defesa do Consumidor, da legislação florestal, da legislação mineral. Se for introduzida a reforma do Código Comercial, que implica no desmembramento do Código Civil e na alteração de duas leis especiais bem aceitas pela área jurídica, você vai gerar muita incerteza jurídica com tantas reformas simultâneas num contexto em que temos grande mudança social e econômica. Para ser feita uma boa mudança jurídica, tem-se que trabalhar num contexto de estabilidade social, econômica e política. Temos estabilidade política, mas não temos estabilidade social e econômica. Eu não acho que seja o momento para reformarmos, simultaneamente, cinco, seis ou sete códigos. É perigoso, é desnecessário. O problema brasileiro não é apenas reformar esse ou aquele código, acho que está na hora de pensarmos um pouco melhor no arcabouço do sistema jurídico. Não é um trabalho de engenharia, é um trabalho de arquitetura. Vivemos um momento de esgotamento de um padrão de intervenção jurídica na sociedade, determinado pelo aparecimento de uma sociedade cada vez mais reticular, de um policentrismo decisório cada vez mais nítido, de uma internacionalização da economia, de uma crescente e preocupante desnacionalização da economia brasileira, ou seja, antes de pensar novos códigos, eu teria de repensar o arcabouço do sistema jurídico.
O Direito transforma a sociedade ou a sociedade transforma o Direito?
Essa é uma pergunta clássica que foi objeto de uma parte de minha vida acadêmica, quando eu trabalhei, durante quase dez anos, com a questão do Direito como instrumento de desenvolvimento. Tenho uma série de trabalhos sobre Direito e desenvolvimento, meu orientador no pós-doutorado nos Estados Unidos foi o Professor David Trubek, líder do movimento Law and Development. Nós trabalhávamos exatamente como essa pergunta que você levantou: qual é a capacidade que o Direito tem de modificar comportamentos sociais, modernizar a economia e promover justiça social? É difícil responder em tese essa pergunta, eu teria de fazer uma série de exemplificações, buscar estudos históricos para poder justificar o momento em que o Direito pode ou não apresentar alguns resultados. É possível, sim, utilizar o Direito como instrumento de justiça social, mas você precisa ter um Estado forte (isso não quer dizer um Estado autoritário) e capaz de utilizar elementos fiscais que transfiram renda do ponto de vista setorial, trabalhando uma justiça distributiva. Então você tem, sim, a possibilidade de usar o Direito como instrumento de modernização social do ponto de vista fiscal. Contudo, você também tem experiências desastrosas e autoritárias de tentar modernizar a sociedade, impondo, de cima para baixo, contra os usos e costumes, valores e expectativas, a utilização do Direito como forma quase que arbitrária, ditatorial, de imposição de um novo padrão social. Você verifica isso, entre os anos de 1960 e 1970, no Brasil, na Argentina, no Uruguai e no Peru. As ditaduras militares da América Latina se deixaram levar pela idéia de que elas poderiam modernizar as suas respectivas economias e sociedades, impondo, autoritariamente, um novo arcabouço jurídico. Fizeram isso de uma maneira absolutamente ilegítima, com custos sociais e econômicos altíssimos. A segunda experiência que temos é a dos países africanos que se descolonizaram nos anos 60. Esses países, quando ganharam independência e foram construir as suas instituições estatais, governamentais e jurídicas, mantiveram a concepção de Estado e Direito de seus colonizadores, mas ainda eram sociedades tribais. Os países colonizadores tinham a habilidade em manter o Direito oficial, mas aceitavam um Direito oficioso nos seguimentos mais tribais. O que os Estados africanos tornados independentes fizeram foi tentar impor o seu Direito oficial, de um Estado recém independente, para toda a sociedade, ignorando os usos e costumes. Com isso, eles acabaram buscando ocidentalizar sociedades tribais, impondo institutos jurídicos dos países colonizadores, e os resultados foram absolutamente desastrosos. Eu fui consultor da ONU na África e ajudei a repensar a Escola de Magistratura de Moçambique. O que mais me impressionou lá foi justamente a tentativa de reproduzir, ali dentro, o Estado português, o qual era incompatível com aquela realidade social e econômica. Eu diria que a utilização do Direito para provocar mudança social é importante, mas deve ser vista com cuidado. Atualmente, verificamos o retorno das questões do Law and Development relativamente à crise financeira. É uma experiência interessante, mas eu tenho uma visão pessimista, acho que o movimento já deu o que tinha de dar.
O senhor acredita que a economia brasileira segue uma “Destruição Criadora”? A formação de conglomerados como a Brasil Foods ou a possível fusão do Pão de Açúcar com o Carrefour são etapas desse processo?
Sim, são etapas desse processo, que está bastante avançado, mas você tem uma situação curiosa no Brasil: não se pode falar em termos gerais. Pão de Açúcar, Walmart e Carrefour mostram que a área de supermercados praticamente foi internacionalizada. Ao olhar a Brasil Foods, você vê a internacionalização da economia brasileira. Trata-se de um nítido processo de desnacionalização da economia, o qual tem problemas complicados: como controlar essas empresas mundiais pelos nossos mecanismos tradicionais? A nossa democracia representativa é um conceito que tem uma base territorial, ou seja, é representativa dos limites de um território, mas eu começo a perceber que as decisões econômicas são cada vez mais transterritoriais. Tenho aí, então, o problema de repensar o controle político dessas decisões. Por outro lado, olho o Brasil em seu conjunto e vejo, ainda, nas regiões Norte e Nordeste, bolsões de um Brasil pré-moderno. O Professor Roberto Mangabeira Unger, que leciona há anos em Harvard, quando Secretário de Assuntos Estratégicos, levantou a questão de como administrar um país com tantas desigualdades e como corrigir essas disparidades. Como resposta, temos a necessidade de repensar o modelo de desenvolvimento brasileiro, ou seja, não se pode aceitar a idéia de que o nordeste replique o que ocorreu no sul e no sudeste, e também não posso ter, no Brasil, um Estado autoritário, como foi o Estado coreano, principalmente a Coréia do Sul. Temos, então, de repensar um projeto para o nordeste, mas também temos de pensar nas condições de implementação. E aí a pergunta levantada pelo Professor Mangabeira Unger faz todo o sentido: dentro das estruturas jurídicas brasileiras tradicionais, formalistas, de um processo lento, diante de uma visão de mundo eminentemente forense, será que teríamos um Estado plástico suficientemente eficiente e funcional para implementar um programa que permita ao nordeste se desenvolver sem precisar passar pelo estágio de São Paulo? Ou seja, quero evitar a transição do Pré-fordismo para o Fordismo até chegar ao trabalho Pós-fordista, quero queimar etapas para integrar o Brasil. Como isso é possível hoje sem um Estado com a mínima capacidade de planejamento?! Acho que essa tem de ser a discussão. Eu continuo dizendo que a gente vive um paradoxo, uma armadilha perigosíssima. O crescimento da economia brasileira depende muito da sua inserção externa. O Brasil não tem, hoje, capacidade de autosustentar o seu crescimento. Se o país quiser promover inclusão social, ele tem de crescer; mas para crescer, tem de exportar; mas para aumentar a sua presença no exterior, ele tem de se inserir em novas regras globais. O problema dessas regras é que elas têm um custo social muito alto, abrem caminho para cortes de gastos, direitos e programas sociais.
Abusos e explorações, às vezes, não são vistos como verdadeiros absurdos aos olhos do Direito Comercial. São, na realidade, práticas corriqueiras e até aceitáveis, as quais visam ao “funcionamento ideal do mercado”. Diante disso, é correto afirmar que há um afastamento desse ramo do Direito em relação à moral?
Sim. Se você analisar o que vem ocorrendo com o aumento da velocidade do processo schumpeteriano de Destruição Criadora, notará que isso abre caminho para o que alguns sociólogos europeus vão chamar de monetarização das esferas da vida, a qual ocorre quando você reduz tudo à agregação de valor para o acionista, aos ganhos de produtividade, de competitividade, de lucratividade. Num determinado momento, você canoniza essas questões de tal maneira que joga na lata do lixo qualquer compromisso com valores como a solidariedade ou qualquer discussão de natureza ética ou moral. Esse processo de fusão e incorporação que nós discutimos na pergunta anterior tem um custo social altíssimo. Quando Sadia e Perdigão são justapostas, haverá um momento em que você vai ter de fazer um corte drástico de pessoal. Quando bancos se fundem, eles justapõem estruturas administrativas. Para dar um exemplo, em 1989 e 1990, arredondando, deveríamos ter uma geração, no sistema financeiro brasileiro, de oitocentos e vinte mil empregos diretos. Para cada emprego direto, a estimativa é que você tenha, além do empregado, um cônjuge e dois filhos, o que dá três milhões e duzentas mil pessoas dependendo do sistema financeiro. Vinte anos depois, devemos ter uns trezentos e setenta mil empregados, ou seja, o número de empregos gerados pelo sistema financeiro caiu pela metade. O mesmo ocorreu com os metalúrgicos do ABC. Alguns economistas vão dizer que temos de realocar, pois não posso deixar de ter uma economia que se inove tecnologicamente, sob pena de não ser competitiva. Contudo, o preço da inovação é, muitas vezes, informatizar as linhas de produção e desempregar ou trabalhar na linha da terceirização, na qual você só fica com o empregado com carteira assinada na atividade fim. Os economistas dizem que a história nos mostra que os desempregados vão sendo realocados em outros setores da economia. O problema é que temos uma economia que muda de padrão tecnológico numa velocidade cada vez maior. Quando eu expulso o bancário ou o metalúrgico, e vai para o setor de serviços, ele não está preparado. Eu não tenho um sistema de educação que requalifique esse sujeito para que ele seja realocado. Ele vai ter dificuldade de se inserir e provavelmente entrará para economia informal, sem nenhuma rede jurídica de proteção, sem fundo de garantia, carteira assinada, descanso semanal remunerado etc. Isso não é um fenômeno brasileiro, mas do Capitalismo globalizado. Em algumas regiões da Europa, esse fenômeno gera o fechamento de fábricas das quais comunidades dependem. Algumas substituem o trabalho braçal pelo robotizado, outras são transferidas para a Ásia em busca de benefícios fiscais e de mão-de-obra. A comunidade que dependia daquela fábrica entra numa causação circular negativa, ou seja, torna-se um cemitério de empregos, enfrentando uma enorme crise social. Isso gera o que a Europa imaginava ter superado desde a reconstrução da Segunda Guerrra Mundial. Alguns sociólogos chamam esse processo de brasileirização da Europa, a qual estaria se marcando pelas disparidades que temos no Brasil. No caso do Direito Comercial, talvez com algumas exceções, percebo que essa não tem sido a grande preocupação dos comercialistas.
O Direito tem perdido espaço no âmbito da regulação das relações sociais para outras ciências, como a Economia. O senhor concorda com essa afirmação?
Eu acho que não é só a Economia, não. A capacidade que o Direito positivo tem de lidar com uma sociedade complexa se exauriu. As virtualidades do Direito positivo sobre a forma de códigos e de leis especiais se esgotaram. A sociedade é variada demais, complexa demais, e, ao tentar padronizá-la por meio de códigos – corpos padronizadores – vou atuar como uma camisade- força, frente à natural expansão da Economia e da sociedade. Para tanto, preciso abrir mão dos códigos e acabo, assim, por substituí-los por leis complementares. Contudo, como tenho uma diversificação de cadeia produtiva que vai se subdividindo em sub-cadeias produtivas cada vez mais especializadas, terei a necessidade de tantas leis especiais que, em um determinado momento terei o que chamamos de hiperjuridificação – inflação normativa. Ao invés de ter segurança, terei incerteza jurídica. Nesse momento, o que percebe o Estado? Percebe que ele não se moraliza enquanto não intervier. Começo a perceber, então, a partir 1980, 1990, uma tendência do Estado de não intervir, através de um processo de deslegalização, de desconstitucionalização de direitos, de flexibilização, de desregulamentação econômica, de descriminalização de determinados comportamentos... O Estado enxuga o Direito e diminui seu alcance. O resultado é uma situação de “vazio” que atende aos seus interesses, porque no momento em que ele, Estado, sai de algumas áreas em que se espera que ele intervenha, ele sabe (e gera estímulos para isso) que ou a sociedade se auto-organiza ou teremos uma situação de hobbesianismo. O Estado estimula, para tanto, o aparecimento de organizações não governamentais, de movimentos sociais ( a exemplo de associações comunitárias). Estimula, em outras palavras, o processo de autoordenação social, auto-estruturação social. Nesse estágio, o Estado mantém um pouco do Direito Positivo e, por saber que com esse Direito Positivo não consegue lidar com uma sociedade complexa, gera espaços para que a sociedade se auto-regule. Fixará, assim, marcos para essa auto-regulação, ao mesmo tempo em que é pressionado por uma Economia que se internacionaliza, fazendo com que seja obrigado a aceitar institutos jurídicos impostos por organismos supranacionais. Teremos o que se chama de direito multi-nível: algumas coisas o Estado mantém, outras deixa com a sociedade e uma terceira parcela é mandada para fora. O resultado é um policentrismo decisório, uma situação de pluralismo jurídico (governança jurídica de múltiplos níveis). Em um mesmo ambiente coexistirão, por exemplo, Lex mercatoria, direito costumeiro, direito internacional, direito técnico-produtivo, direito de blocos regionais, ou seja, uma situação de enorme complexidade normativa, aquilo que na Sociologia do Direito chamamos de campos normativos semi-autônomos: o Estado dá autonomia, mas retém para si os marcos regulatórios.
Falta, no Direito Comercial, um aprofundamento sociológico?
Falta um aprofundamento sociológico e um aprofundamento econômico. Volto a dizer que há exceções, mas não tenho visto trabalhos originais na área de Direito Comercial, com a intenção de romper o paradigma. Quando você olha as produções do professor Fábio Konder Comparato, percebe-se que ele tem essa preocupação social, ética, moral e, ao mesmo tempo, uma enorme capacidade técnica de entender o Direito Comercial. O Poder de Controle na Sociedade Anônima é um livro que impactou a minha geração. Porém, quando eu vejo, hoje, teses de mestrado e doutorado em Direito Comercial, é mais do mesmo, projetos absolutamente repetitivos, sem criatividade, salvo poucas exceções.
O profissional da área do Direito é de fato preparado para os desafios impostos pelo mercado de trabalho?
Eu acho que não, não tem sido. Primeiramente, eu acho que a sua pergunta tem de levantar uma questão importante: o que estamos chamando de mercado de trabalho? Há uma convenção que diz que mercado de trabalho é mercado para escritório, banco ou empresa. De outro lado, percebo que tenho as carreiras jurídicas estatais. Quando eu olho, na Congregação ou em alguns debates aqui na Faculdade, a discussão sobre mercado de trabalho, eu vejo professores admitindo uma separação entre o mercado de trabalho da iniciativa privada e as carreiras do Estado, quase como se não incluíssem essas carreiras como mercado de trabalho. Dessa maneira, não percebem que no campo estatal, onde formamos juízes, promotores, procuradores do Estado, procuradores do Município, surgem áreas novas com profissionais jurídicos que não formamos. Por exemplo, a Secretaria de Direito Econômico, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, o Banco Central, a Comissão de Valores Mobiliários etc. Essas agências reguladoras e órgãos não conseguem trazer, por meio de concursos, profissionais com uma formação menos forense, ou seja, profissionais que saibam sentar e trabalhar com uma equipe interdisciplinar para formatar políticas públicas, novos tipos de contrato, novas formas de intervenção do Estado, novas relações público-privadas. Nesse sentido, continuo achando que estamos com uma visão de mundo, nas faculdades de Direito, excessivamente forense, porque temos um forte coeficiente de professores que são juízes, promotores e procuradores. Como eu imagino um processualista que seja juiz e, num determinado momento, ele seja obrigado a se submeter a uma reforma do Judiciário que diminua o número de recursos, introduza uma súmula vinculante e abra espaço para a arbitragem? De alguma maneira, na cabeça dele, ele está perdendo prestígio, a instituição dele está sendo esvaziada. Ele começa a lutar pela continuidade dessas prerrogativas institucionais, sem perceber que o mundo mudou. Então, nesse momento, ele tem uma visão corporativa que embota a sensibilidade dele para qualquer tipo de reforma pedagógica. Há uma pergunta que eu vi num debate europeu. A Espanha vinha sofrendo reformas do Código de Processo Civil e os professores de Direito processual resistiam a toda e qualquer mudança do Judiciário. O locutor do debate, em um determinado momento, levantou-se e disse: 'Senhores, eu trouxe três processualistas e todos eles são contra a reforma do Judiciário. A minha pergunta é: será que vocês não estão resistindo por serem juízes? Será que não seria mais útil e eficaz fazer uma reforma dos códigos de processo civil e penal da Espanha sem a presença de processualistas?'. Discussões como essa são necessárias para que a gente possa pensar no ensino do Direito. Quem é que está produzindo pensamento jurídico de ponta hoje? Nas faculdades de Direito, temos um ou outro professor. Isso é um fenômeno mundial. No Brasil, quem mais discute Direito é o Departamento de Filosofia da USP, pois eles descobriram Rawls, Dworkin, Hart, Kelsen... Quem discute Teoria do Estado é o Núcleo de Direito e Democracia do CEBRAP. Quem discute práticas jurídicas é o Grupo de Direito e Economia da Universidade de Brasília. Quer dizer, as faculdades de Direito, de um modo geral, estão um pouco atrofiadas, elas não são criativas.
Fantástica a entrevista. Aliás, fantásticas as abordagens feitas por José Eduardo Faria..Me dói saber que enquanto isso o pessoal na UEM (e não só na UEM, é claro) está tendo aulas extremamente superficiais (nem preciso citar nomes, não?) de Filosofia e Teoria Geral, incentivando a formação de profissionais descontextualizados e principalmente despreparados para a efetiva prática jurídica.
ResponderExcluirCom todo o respeito que o professor merece, penso que só faltou ele analisar um pouco (na minha singela opinião)que nem todas as soluções estão no mercado. Apenas uma ressalva, de caráter pessoal. Acho que qualquer resposta que fique eminentemente em economia ou políticas públicas, não mudam na essência os problemas. Entretanto, excelente texto. Realmente, faz MUITA falta professores pensantes como esse.
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