Coronavírus: diário #3


Os últimos dois dias foram muito intensos. Há uma crescente sensação de insegurança, de um perigo invisível que não se materializa claramente e não se apresenta com nitidez. Não há como discordar de Emmanuel Macron: estamos no meio de uma guerra sanitária. O inimigo é invisível e a destruição da organização social é uma possibilidade.

Como relatei no último diário, na segunda-feira nós levamos o Francisco, meu filho de 11 meses, ao pediatra em razão de tosses constantes. Ele é asmático, assim como Antonio, meu filho mais velho. O médico nos acalmou e disse que as tosses não são decorrentes do Covid-19, mas que seria estratégico ir para um lugar menos poluído e com uma rede hospitalar com menos possibilidade de colapso.

Ao sair do consultório pediátrico, por volta das sete da noite, tive uma reação absolutamente impulsiva. Liguei para a Localiza e reservei um carro para as oito horas da manhã do dia seguinte, para retirar na Avenida da Consolação. Durante as crises asmáticas do Francisco, eu e Priscila cogitamos várias vezes sair de São Paulo e ficar alguns dias na casa do meu sogro, na beira do Rio Paranapanema. Ligamos para ele e verificamos que a casa estava disponível. O cálculo foi simples: se nós dois estamos trabalhando remotamente, e há conexão à Internet na beira do rio, por que razão ficar em São Paulo, o epicentro do Coronavírus no Brasil?

Passamos a noite arrumando as malas e fomos dormir duas horas da manhã, tentando colocar a casa em ordem para uma viagem sem data definitiva. É estranha a sensação de fazer uma viagem não planejada, às pressas, sem a clareza de quando será o retorno. Sem dúvidas, é uma fuga por precaução. Não tanto pela imagem apocalíptica do caos implementado em São Paulo -- com todos os estabelecimentos fechados e a previsão de mais de quarenta mil mortes nas próximas semanas --, mas pelo sim pela possibilidade de tentarmos uma internação hospitalar para algum dos meninos e não conseguirmos. Isso ocorreu em 2019, quando o Francisco ficou uma semana em UTI nos Hospital Samaritano, em Higienópolis, em razão de um quadro de dificuldade respiratória.

Em menos de doze horas da decisão de sair de São Paulo, já estávamos com uma Chevrolet Spin alugada e o porta malas cheio de roupas, remédios para as crianças e alimentos que havíamos em casa. Iniciamos então uma longa viagem de mais de 650 quilômetros, de São Paulo a Itaguajé, no noroeste do Paraná. É praticamente a mesma distância de sair de Turim, no noroeste da Itália, e chegar em Roma. É mais do que sair de Braga, na ponta norte de Portugal, e descer até Faro, no extremo sul do território português.

As crianças foram bem comportadas e a viagem correu bem. Viajamos pela Rodovia Castello Branco até Presidente Prudente, onde deixamos o carro em uma Localiza no pequeno aeroporto da cidade. Lá, encontramos o Cesar, meu sogro, que nos emprestou uma Saveiro para concluirmos a viagem e cruzarmos a fronteira entre São Paulo e Paraná. Essa parte envolveu uma logística relativamente complexa e uma ritualística sanitária. Cesar levou uma moto na parte de trás da Saveiro. Retirou a moto ao chegar no aeroporto e nos cedeu seu carro. Não pegou nas malas e não nos abraçou em razão da possibilidade de contaminação do vírus. Houve todo um ritual de troca sem contato físico, direto ou indireto.

Uma vez feita a troca de veículos, seguimos em direção a Pirapozinho e Sandovalina. Cruzamos o imponente Rio Paranapanema e finalmente chegamos no Condomínio Renascer do Sol, localizado na pequeníssima Itaguajé. Saímos de uma megalópole de mais de 12 milhões de pessoas para uma cidadezinha com menos de 4 mil pessoas. Atravessamos o rio que divide São Paulo e Paraná com a esperança de trabalharmos com um mínimo de tranquilidade, esperarmos a tempestade sanitária passar e minimizar riscos para as crianças.

Ao chegarmos no rancho do Paranapanema e conectarmos à Internet, descobrimos que São Paulo havia registrado a primeira morte em decorrência do Coronavírus. No início da quarta-feira, 18/03, vieram os registros de mais dois óbitos, de acordo com informações oficiais do David Uip, médico a frente dos trabalhos no Estado de São Paulo. Infelizmente, a progressão continua. Do último diário escrito, o número de casos já saltou para 428. Os especialistas estimam 1.000 casos confirmados até sábado.

Um dos maiores desafios é o de manter-se tranquilo, sem entrar em pânico e sem desesperar as pessoas mais próximas, diante de informações que vêm da Europa. Infelizmente, mantenho meus hábitos de leitura do The Guardian e do New York Times todos os dias, o que tem prejudicado minha saúde mental. O último Podcast do NYT, It's Like War, leva qualquer um aos prantos ao ouvir os desesperadores relatos da equipe médica de um hospital de Bergamo, próximo a Milão. Todos na equipe estão infectados e em burn out. A Itália registrou um dos dias mais terríveis de sua história recente, com 475 mortos em 24 horas. O maior desafio é olharmos para nossa realidade e pensarmos "aqui é diferente. Isso não vai nos ocorrer. Estamos bem".

Um comentário:

  1. Rafael, é bem isso, estamos desenvolvendo novas posturas e criando novos rituais. É tudo muito novo e quase desesperador. Mas se há algo de bom nisso, já que tudo precisa ser visto em duas ou mais dimensões, estamos manifestando a nossa reflexão sobre o que nos faz humanos. O que esta ocorrendo na Italia, dói em nos. A precaução e buscar conter o Covid 19 é nossa ação consciente esperança. Com duas crianças eu faria o mesmo, cuidem-se e vamos cuidar dos nossos representantes para a situação não ser ainda mais catastrofica do que já é. O momento é de discernimento e prudencia. Abs

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