Do riso e do esquecimento


Semana passada resolvi adotar uma estratégia diferente para estudar para o Exame de Ordem. Decidi ler mais. Mas decidi ler não somente obras e apostilas jurídicas, mas sim aliar os estudos com a boa e velha literatura (o que humaniza o homem). Abri então o armário - onde guardamos todos os livros de nossa república - e peguei "O Livro do Riso e do Esquecimento", do escritor tcheco Milan Kundera.

Concluí a leitura hoje e posso afirmar que gostei muito do que li nas duzentas e cinquenta e poucas páginas do livro. Quem já leu alguma coisa do Kundera sabe bem como é seu estilo (que é único): uma mistura envolvente de romance, filosofia, sexualidade, análise psicológica de suas criações (das personagens), reflexões existenciais e crítica ao totalitarismo soviético vivido na República Tcheca. Tudo isso em histórias muito bem escritas que proporcionam ao leitor uma avaliação profunda sobre o ser no perturbado mundo atual.

O livro é dividido em sete histórias com títulos que se repetem (As Cartas Perdidas, Mamãe, Os Anjos, As Cartas Perdidas, Litost, Os Anjos e A Fronteira). Na própria capa - de uma edição de 1987 que tenho em mãos - se lê: "É um romance sobre o riso e sobre o esquecimento, sobre o esquecimento e sobre Praga, sobre Praga e sobre os anjos". A frase é do próprio Kundera e faz parte de uma das histórias presentes na obra. Entretanto, o livro não é só sobre isso. É também um livro sobre o riso diabólico e o riso angelical (pois há uma diferença enorme entre os dois risos), sobre o riso ridículo, sobre a luta da memória contra o esquecimento (e aqui vem o teor político da luta do sofrido povo tcheco), sobre as diferentes visões do sexo (um terreno do qual o amor se apropria), sobre o ato de escrever (pois cada um de nós sofre com a ideia de desaparecer, sem ser ouvido e notado, num universo indiferente, e por isso quer, enquanto ainda é tempo, transformar a si mesmo em seu próprio universo de palavras), sobre a memória de Praga e sobre a perseguição russa.

A resenha na orelha do livro diz quase tudo e eu não posso discordar: "o autor lança um olhar agudo e amargo sobre o cotidiano da Tchecoslováquia após a invasão russa de 1968: as desilusões da juventude, a desorientação dos intelectuais, a prepotência dos líderes políticos, tudo converge para o esquecimento, imposto ou voluntário, individual ou coletivo. Esquecimento do amor conjugal no caso de Tamina, exilada em algum lugar da Europa Ocidental, que busca inutilmente recuperar as cartas do marido deixadas em Praga; esquecimento da linguagem no caso do pai de Kundera, que só compreende o sentido de uma variação de Beethoven quando já não pode se exprimir através das palavras. Mirek, por sua vez, busca retocar na memória um antigo amor a uma mulher pouco atraente, enquanto Karel, cansado do jogo a três com a esposa e a amante, percebe subitamente nesta última a semelhança com uma mulher que ele, aos quatro anos de idade, surpreendera nua. Diante do desaparecimento inevitável dos frágeis resquícios do passado, Kundera empreende uma particularíssima busca do tempo perdido. Mas, expulso de seu país após sucessivas perseguições, a única saída encontrada pelo escritor tcheco é o riso, o riso angustiado de todos os que buscam a identidade que lhes foi roubada".

Entender a história de vida do autor torna o livro ainda mais compreensível. "O Livro do Riso e do Esquecimento" é uma análise existencial de um homem (Milan Kundera) e de um povo (tcheco). É também uma tentativa bem sucedida de deixar um registro da experiência da perseguição ocorrida em seu próprio país. A história Os Anjos deixa isso bem claro.

Em suma, o livro - publicado originalmente em 1978 com o título Kniha smíchu a zapomnění - é magnífico e merece ser lido. 

Todavia, na minha opinião, não é tão grandioso como "A Insustentável Leveza do Ser", lançado seis anos mais tarde. Essa sim é uma obra marcante, de inspiração nietzchiana, com personagens fortíssimos (Tomás, Tereza, Sabina e Franz).

Da leitura de "O Livro do Riso e do Esquecimento" ficam ótimas passagens e reflexões, mas nenhum personagem é capaz de cativar e estabelecer uma calorosa ligação com o leitor (e penso que esse nem é o objetivo dessa obra).

De qualquer forma, foi um livro capaz de me transportar mentalmente de volta para Praga (que saudades dessa terra maravilhosa!) para refletir (de forma intensa) junto com o autor sobre a complexidade humana e como tudo está, de alguma forma, relacionado. 

Nossas opções políticas, nosso medo de encarar o sexo, o grau de nossa litost, a forma como conceituamos a liberdade, nossa concepção de fidelidade, o nosso riso: tudo está inexplicavelmente interconectado e demonstra a singularidade de nosso ser.

Um comentário:

  1. Gostei muito de sua leitura de Kundera, porém o livro é muito mais profundo do que se pensa. O livro é a respeito de Tamina, o próprio autor afirma no próprio livro, na voz do narrador. A pergunta que fica para nós leitores é "Quem é verdadeiramente Tamina?". Em minha concepção ela é um ego experimental do autor.Representação de uma tentativa de recuperar um passado que não se pode alcançar mais em sua totalidade, pois ele vive apenas na memória e esta é falha. Ler Kundera é entrar em um labirinto de significados.

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