Coronavírus: diário paulistano #1


O Coronavírus representa uma crise sem precedentes, em múltiplos níveis, indo muito além da saúde pública. Em menos de quatro meses, deixou de ser apenas uma doença chinesa para se tornar um evento catastrófico de imobilização e apreensão mundial.

O assunto não é novidade no Brasil. Desde final de janeiro, infectologistas como Paulo Zanotto estão alertando sobre a seriedade do Covid-19 e a necessidade de medidas de isolamento social. Zanotto, que possui doutorado em Oxford e é professor da Universidade de São Paulo, havia alertado que as consequências seriam "devastadoras" para a humanidade. Em fevereiro, as medidas tomadas pelo Ministro da Saúde passaram quase despercebidas. Em 06/02, Sergio Moro e Luiz Henrique Mandetta conseguiram a aprovação da Lei 13.979/2020, criando as bases jurídicas para medidas de isolamento e quarentena.

Todos nós fomos pular Carnaval sem grandes preocupações. A ressaca bateu mesmo com o pânico gerado na Itália. Recordo que, em 04 de março, levei a questão do Coronavírus para discussão com minha equipe de pesquisa no Data Privacy Brasil. Era evidente que os casos iriam aumentar na Itália e que, graças ao grande fluxo de pessoas via Aeroporto Internacional de Guarulhos, o vírus iria se espalhar em São Paulo. Em março, os europeus viram a doença se esparramar de forma brutal. O Covid-19 deixou de se tornar um problema chinês e os sinais de pandemia tornaram-se claros. O gráfico abaixo, produzido pela Business Insider, mostra como a primeira semana de março foi determinante para entender o contágio entre europeus.


Em 09 de março, a economista brasileira Monica de Bolle, doutora em crises internacionais pela London School of Economics and Political Science, defendeu publicamente que a crise do Coronavírus não tinha precedentes. Mais do que isso. Para de Bolle, "as pessoas não estão entendendo a gravidade da crise". A ficha começou a cair com o derretimento dos mercados especulativos e as quedas drásticas das bolsas de valores. Na terça-feira, após o registro de 10.000 pessoas infectadas, o primeiro ministro italiano Giuseppe Conte anunciou a quarenta para toda a Itália, afetando a vida de mais de 60 milhões de pessoas.

Após o anúncio de Conte, tornou-se claro para todos que o Coronavírus não é brincadeira, apesar de o Presidente Jair Bolsonaro -- em lives gravadas nos EUA, após encontros com membros do governo Trump -- insistir em uma narrativa de que o vírus "não é mais que uma gripe" e que há interesses econômicos na construção de uma narrativa desastrosa. 

Essa narrativa conspiracionista, felizmente, não afetou o Ministério da Saúde. Durante os turbulentos dias do início de março, o ministro Luiz Henrique Mandetta deu entrevistas técnicas e contundentes, explicando a possibilidade do colapso do sistema público de saúde no Brasil no caso do crescimento explosivo da doença em razão de sua função exponencial. Na terça-feira, o Brasil registrava 31 casos de Covid-19.

No dia seguinte, em 11 março, a Organização Mundial da Saúde declarou a doença como pandêmica. A Casa Branca, nos EUA, pediu para classificar os documentos oficiais como sigilosos. Na Itália, o Conselho de Ministros aprovou a alocação de 25 bilhões de Euros para o enfrentamento do Covid-19, com apoio de partidos de vários espectros ideológicos. Em apenas dois dias, o número de infectados saltou de 10.000 para 15.000 pessoas, levando mais de 1.200 pessoas à morte. Nos EUA, Donald Trump tomou uma medida drástica e decretou o controle de aeronaves europeias, em uma tentativa de impedir que o vírus desembarque nos EUA por meio de turistas europeus.

No Brasil, Mandetta foi ao Congresso pedir a alocação de 5 bilhões de Reais para medidas de enfrentamento do Coronavírus. O ministro explicou que "as próximas vinte semanas serão duras", deixando claro que o efeito exponencial pode levar a uma superlotação dos hospitais, considerando que os casos graves de Covid-19 -- que geram fibrose pulmonar e complicações respiratórias graves -- demandam praticamente três semanas de internação.

No dia 12 de março, quinta-feira, a Secretaria Especial de Comunicação Social da Presidência da República anunciou que Fábio Wajngarten, Secretário de Comunicação da Presidência, "é portador do novo coronavírus Covid-19, confirmado em contraprova já realizada". Imediatamente, iniciou-se uma polêmica sobre a possibilidade de Jair Bolsonaro e Donald Trump estarem infectados, considerando que todos estiveram juntos em reuniões fechadas e jantares, como o de Mar-a-Lago. Os resultados deram negativo para ambos.

Na própria quinta-feira, dois debates ganharam forma e fôlego no Brasil. O primeiro, puxado por especialistas como Paolo Zanotto, foi o da necessidade de medidas de isolamento social. Em artigo escrito na Folha de São Paulo, Zanotto defendeu que "por mais duro e difícil que pareça, um regime de distanciamento social amplo talvez seja o único caminho a seguir para evitar o mal maior". O segundo foi o da possibilidade concreta de São Paulo estar entrando em um crescimento sustentado do vírus, já em etapa de transmissão comunitária, registrando 98 casos. Disseminou-se, enfim, a tese do achatamento da curva, como explicado no gráfico abaixo, produzido pela BBC:


Na sexta-feira, 13 de março, iniciou-se o cancelamento de atividades pelo setor público. No Distrito Federal e Territórios e em outros Estados, governadores editaram decretos proibindo atos públicos com mais de 100 pessoas e eventos que possam levar à aglomeração. No Estado de São Paulo, o governador João Doria anunciou uma série de medidas, com apoio do infectologista David Uip, que coordena o Centro de Contingências do Covid-19. Em acordo com o Ministério da Saúde, ficou definido que haverá interrupção gradual das aulas na rede estadual de ensino a partir de segunda (16/03), o adiamento de eventos públicos ou privados que reúnam 500 ou mais pessoas e a suspensão por 60 dias das férias de funcionários da rede estadual da Saúde.

A situação assusta? Evidentemente que sim. É fato que o contágio é exponencial. É fato que São Paulo encontra-se em transmissão comunitária sustentada. Em uma megalópole com mais de 12 milhões de pessoas, o cenário é trágico, especialmente com a transmissão assintomática em ônibus, trens e metrôs lotados. Com uma mortalidade de 3,5% (média mundial), o número de mortos pode ser enorme no final do mês de março.

É certo que o Brasil não quer se tornar Itália e não quer repetir os mesmos erros que ocorreram lá, em especial o descaso com casas asilares e a demora para medidas de isolamento social, como notado pelo ministro Mandetta. Há razões para acreditar que a situação pode ser menos catastrófica do que lá, considerando que nossa população é mais jovem e que há clareza absoluta sobre a necessidade de medidas de quarentena, tirando as pessoas das ruas, aeroportos, casas de show e espaços de aglomeração desde já. Há incerteza, no entanto, sobre nossa capacidade de cumprimento dessas medidas. As pessoas deixarão de ir aos bares? Deixarão de levar filhos no parque? Deixarão de contratar uma pessoa para limpar a casa, obrigando-a a enfrentar longos trajetos no transporte público?

O governo de São Paulo está preparando medidas emergenciais que vão além da área da saúde, como compra de instrumentos básicos de prevenção e expansão de leitos para UTI. Conforme anunciado pela equipe do governador na sexta-feira, haverá adaptação do ensino para EAD (ensino à distância) e compra de pacote de dados para conectividade de jovens e adultos pelo celular. Na prática, é um sponsored data-cap pago pelo governo. Há enorme preocupação sobre como garantir o funcionamento do ensino em um cenário de profundas desigualdades com relação aos modos de acesso e conectividade.

Como corretamente apontou o editorial da Folha de São Paulo, o momento é de precaução máxima. Com razão, os protestos pelos dois anos da morte de Marielle Franco foram cancelados. O Presidente de República deveria ter feito o mesmo e deveria ter estimulado as pessoas a não saírem de casa no domingo. Pelo contrário, comemorou os "atos pró Brasil" de forma tosca. Não é sem razão que foi repreendido pelo Presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que classificou a postura de Bolsonaro como "atentado à saúde pública". Disse Maia: "o presidente da República ignora e desautoriza o seu ministro da Saúde e os técnicos do ministério, fazendo pouco caso da pandemia e encorajando as pessoas a sair às ruas".

Os próximos dias serão profundamente atípicos. Existe apreensão sobre a possibilidade de falta de comida em supermercados e medicamentos em farmácias. Não se tem notícia, ainda, de um problema de logística e distribuição em São Paulo. Nota-se, por enquanto, que a viralização de notícias falsas é baixa nos grupos de WhatsApp e que, de forma surpreendente, há um retorno da autoridade técnica e acadêmica. Médicos e profissionais competentes estão sendo ouvidos pela população. Pesquisas sérias estão sendo lidas com atenção. Recomendações oficiais estão circulando. O desafio de achatamento da curva conseguiu unir lideranças de diferentes espectros ideológicos. Os únicos que não acreditam são os conspiracionistas -- os que pensam que o Covid-19 é uma "arma biológica" do "Deep State", uma invenção da Fundação Melinda/Gates ou uma "criação comunista" -- que vaiaram o médico e governador Caiado nos protestos deste domingo.

Há registros de 200 infectados no Brasil. Uma pessoa, tratada no Hospital Albert Einstein, foi curada. Não há mortos. Na América Latina, apenas Panamá e Argentina registraram mortos pelo Covid-19. Os próximos dias serão cruciais. Veremos, na prática, se as técnicas de isolamento e distanciamento social vão funcionar, enquanto as estruturas sociais e políticas conseguem se manter minimamente estáveis.

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