Em defesa da dignidade: o legado de Giovanni Buttarelli


A morte de Giovanni Buttarelli em 20 de agosto de 2019 abalou a comunidade internacional de proteção de dados pessoais. Butarrelli ocupava o mais alto cargo regulatório existente na União Europeia. Aos 62 anos, ele era o líder executivo do EDPS - European Data Protection Supervisor, instituição independente criada em 2004 para coordenar os esforços de aplicação de leis de privacidade e proteção de dados pessoais na Europa, força motriz de reformas institucionais nesta área.

Buttarelli era visto como uma liderança genuína, dotado de qualidades cívicas e políticas raras hoje em dia (especialmente no Brasil), como a capacidade de escuta, a solidariedade e o desejo de construção de acordos. O memorial organizado pela International Association of Privacy Professionals (IAPP) evidencia como Buttarelli era respeitado por intelectuais, líderes empresariais, ativistas e reguladores. Assim como Stefano Rodotà -- de quem era uma espécie de pupilo --, Buttarelli era visto não só como uma força intelectual no campo da proteção de dados pessoais, mas um estrategista com visão. Com a aprovação da General Data Protection Regulation (GDPR), a EDPS alçou uma posição crucial com reflexos geopolíticos e Buttarelli buscou aproveitar essa oportunidade para fortalecer as Autoridades Independentes de Proteção de Dados Pessoais.

É provável que muitos brasileiros não conheçam Buttarelli. Porém, como disse Tim Cook, presidente da Apple, em texto assinado no jornal Corriere della Serra de 23 de agosto, “todos nós iremos nos beneficiar de seu trabalho”, se é que já não nos beneficiamos. De fato, há uma conexão entre seu trabalho na Autorità Garante per la protezione dei dati personali e na elaboração do Codice per la protezione dei dati personali no final da década de 1990 com a gestação da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais no Brasil, sinalizada, por exemplo, em sua participação no encontro Privacidade em Debate organizado por Danilo Doneda em 2015.

Giovanni esteve longe de ser apenas um burocrata. Ele foi o líder carismático e partícipe de uma pequena revolução no direito italiano e europeu construído por muitas mentes, impulsionado por uma visão geopolítica sobre o “modo europeu” de afirmação de direitos fundamentais e regulação de mercados digitais.

A posição de Supervisor da EDPS, assumida em 2009, foi reflexo da legitimidade construída por duas décadas de trabalho. Formado pela La Sapienza em Roma, Butarrelli teve uma carreira inicial nos cargos burocráticos italianos. Aos 32 anos, assumiu a posição de assessor técnico do Departamento Legislativo do Ministério da Justiça. Nessa posição, participou da redação da Legge n. 675 de 1996 e de diversos grupos de trabalho do Conselho da Europa sobre a Convenção 108, tratado europeu dedicado à proteção da privacidade e transferências internacionais de dados.

Aos 40 anos, Buttarrelli tornou-se Secretário Geral da Autoridade Italiana de Proteção de Dados Pessoais (Autorità Garante), trabalhando ao lado de Stefano Rodotà entre 1997 e 2005. Foi também Secretário Geral durante a gestão de Francesco Pizzetti, encerrando seu mandato aos 52 anos em 2009, tendo participado da elaboração institucional da EDPS em sua formatação inicial.

Político habilidoso, Buttarelli conseguiu emendar seu mandato na Autoridade Italiana com a posição de “Supervisor Assistente” da EDPS, segunda posição mais alta da instituição, ao lado do holandês Peter Johan Hustinx. Paralelamente, entre 2009 e 2014, Buttarelli estruturou sua candidatura, por meio de chamada pública e lista elaborada pelos membros do Parlamento Europeu, para a posição de Supervisor Europeu de Proteção de Dados Pessoais, conquistando-a em dezembro de 2014.

O mandato de Buttarelli na EDPS foi marcado pela tônica central à ética, colocando-a no centro da agenda sobre digitalização e inteligência artificial na Europa. Graças à visão de Buttarelli, a EDPS organizou um grupo de experts - incluindo Antoinette Rouvroy, Luciano Floridi, Jaron Lanier, Peter Burgess, Aurélie Pols e Jeroen den Hoven - e publicou o relatório Towards a Digital Ethics. Nesse relatório, a EDPS propõe uma ampla reflexão sobre os processos de “governamentalidade” pelos dados, a responsabilidade distribuída por desastres informacionais, os perigos da “justiça preditiva” e dos algoritmos de elaboração de sentenças criminais, a inadequação da conceitualização dos dados pessoais como simples “mercadoria” e a retomada dos conceitos de dignidade, autonomia e liberdade.

Em um de seus últimos discursos públicos, intitulado “Escolha a humanidade: colocando a dignidade de volta no digital” e realizado na quadragésima International Conference of Data Protection and Privacy Commissioners em 2018, Buttarelli fez um chamado para uma reflexão ética sobre a digitalização massiva de todas as esferas da vida social, indo do trabalho e das relações domésticas até os processos mais basilares da democracia, conectando a proteção de dados pessoais com os elementos centrais da sociedade.

“Toda revolução possui perdedores. Quem são os perdedores dessa revolução digital? O que podemos fazer para garantir nossa dignidade enquanto cidadãos?”, perguntava Buttarelli. Quais os impactos para os grupos marginalizados submetidos a decisões criminais por algoritmos? Quais os impactos de populações em zonas políticas instáveis que são mortas por análise de metadados e drones que disparam sem interferência humana? Qual o impacto para a política quando o consumo de informação é feito majoritariamente por indicações automáticas, mediadas por algoritmos, em sites de streaming?

Buttarelli dizia que a GDPR é uma legislação inovadora sobre direitos individuais, mas na medida em que o tratamento de dados pessoais afeta interesses coletivos, cada vez menos poderemos olhar para ela (ou para a LGPD no Brasil) para respostas.

Essas foram grandes questões lançadas por Giovanni antes de nos deixar. Sua mensagem, no entanto, permanece: “Para cultivar uma ética digital sustentável, precisamos olhar objetivamente como essas tecnologias afetaram as pessoas de formas boas e ruins. Precisamos de uma compreensão crítica da ética que informa as decisões de empresas, governos e reguladores quando eles desenvolvem ou utilizam novas tecnologias”.

Como temos escrito no Brasil - e uso a primeira pessoa do plural para me referir à comunidade de proteção de dados pessoais no Brasil -, a introdução da “ética dos dados” é crucial no debate sobre o futuro da proteção de dados pessoais. Buttarelli foi um defensor dessa visão e será permanentemente lembrado como um dos precursores de uma renovada agenda de afirmação de direitos no século XXI centrada na dignidade das pessoas.

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