Reconhecimento facial em debate


Reconhecimento facial é o assunto do momento em direitos digitais. A grande questão que se coloca hoje, como muito bem pontuaram Woodrow Hartzog e Evan Sellinger há quase um ano, é saber se esse tipo de tecnologia possui um potencial opressor tão alto -- tão potencialmente lesivo da perspectiva dos direitos civis e das liberdades fundamentais -- que deveríamos simplesmente banir essas tecnologias.

Desde janeiro, tenho escrito sobre esse assunto (especificamente sobre segurança pública e reconhecimento facial, mesmo não sendo minha área de formação). Publiquei aqui no blog um texto curto sobre o assunto, considerando a polêmica da ida do PSL à China e as limitações da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei 13.709/2018) com relação à proteção de nossos direitos nos casos em que o Estado utiliza essas tecnologias para fins de segurança pública.

Em julho, voltei a falar desse tema por meio de diferentes meios. Dia 17 de julho, dei entrevista para a Folha de São Paulo, em matéria assinada pelo Fabrício Lobel ('Metrô de SP terá vigilância com reconhecimento facial'). A matéria deu publicidade a algo bastante sério e que já estava sendo analisado por diversas entidades civis brasileiras: um edital de contratação de reinstalação das câmaras de segurança na Linha Azul do metrô (que corta de Norte a Sul de São Paulo) com tecnologias de reconhecimento facial para fins de segurança pública.

No mesmo dia 17 de julho, foi publicada entrevista com o Tecmundo, conduzida pelo Felipe Payão e gravada no mês de junho. Apesar de não enfocar no caso específico do metrô de São Paulo -- que julgo ser um dos casos mais importantes hoje da perspectiva de direitos digitais --, a conversa girou em torno de alternativas de regulação dessas tecnologias e do grande espectro de opções de Facial Recognition Technologies. A conversa foi longa e tocou em muitos assuntos, indo dos mais distópicos aos mais otimistas (ainda é possível isso no Brasil de 2019?) em termos de alternativas regulatórias.




Por fim, no dia 23 de julho, foi publicado um episódio especial sobre reconhecimento facial no podcast do Fabrício da Mota Alves -- que foi assessor do Senador Ricardo Ferraço durante a criação da LGPD e uma pessoa bastante ativa na modelagem final da legislação no Congresso Nacional, em termos técnicos. 

O episódio (#3), dedicado exclusivamente à proteção de dados pessoais no Brasil, foi gravado em uma segunda-feira à noite e explorou dois pontos centrais de tensão no debate jurídico sobre reconhecimento facial. Primeiro, se seria possível uma interpretação do artigo 4o da LGPD no sentido de que, mesmo nas atividades de tratamento de dados para segurança pública, seriam aplicáveis os princípios gerais da legislação. Segundo, se seria possível um movimento semelhante ao coordenado pela American Civil Liberties Union e pela Fight For Your Future nos EUA, no sentido de mobilizar legislações que imponham uma moratória ou banimento ao uso das tecnologias de reconhecimento facial.

Listen to "The Privacy Cast: Tudo Sobre LGPD e GDPR" on Spreaker.

Com relação ao primeiro ponto, eu entendo que sim, apesar de ser uma tese que precisa ser testada no Judiciário e uma forte mobilização por parte de atores-chave dentro do próprio Poder Público.

Com relação ao segundo ponto, é de se esperar um movimento de refluxo social depois desse temerário estranhamento com a compra irrefreada dessas tecnologias no primeiro semestre no Brasil. Considerando a multiplicidade de iniciativas em andamento -- centros de inteligência no Paraná, implementação de reconhecimento facial em pilotos em Salvador e tentativa de compra dessas tecnologias e utilização no metrô de São Paulo --, seria importante um mapeamento interativo semelhante ao criado pela Fight for Your Future ('This Map Shows Which Cities Are Using Facial Recognition Technology—And Which Have Banned It'). Do mesmo modo, é de crucial importância pensar em metodologias como Surveillance Impact Assessment, como propõem, por exemplo, Mariana Rielli, Bruno Bioni e Renato Monteiro em workshop no próximo Internet Governance Forum ('Data Protection and Surveillance Impact Assessments').

Seria possível uma legislação estadual que criasse a obrigação de elaboração de uma avaliação de impacto à vigilância antes da decisão de compra de tecnologias de reconhecimento facial? Sim, por que não?

Indo além, seria possível ter um sistema de accountability e supervisão, fazendo com que critérios de "custos sociais" e "custos à liberdade" sejam levados em consideração em uma análise de custo-benefício na decisão de implementação dessas tecnologias? Seria possível fazer com que especialistas da academia (e.g. FAU, Poli, IME) e do terceiro setor (e.g. InternetLab, Idec, Instituto Igarapé) também sejam ouvidos nesse processo de tomada de decisão? É hora de pensar seriamente sobre esses desenhos jurídicos.

Raquel Rolink e Leonardo Foletto, escrevendo para o LabCidade da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foram precisos em mostrar o que está em jogo na implementação dessas tecnologias e quais valores sociais são lesados ('Câmeras de reconhecimento facial no espaço público usam dados sem nossa autorização'). Agora é hora de pensar em alternativas institucionais e mobilizar a discussão dessas alternativas em espaços estratégicos.

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