Acordei tarde, de ressaca, confesso. O jornal do meio-dia já estava no fim. Tomei um banho quente, enquanto São Paulo recebia gotas geladas do céu. Vesti uma calça e uma camiseta, peguei o iPod e o guarda-chuva e saí em direção ao mercado mais próximo com quinzão no bolso - o suficiente para o café em pó e a lasanha congelada.
Difícil tarefa a de escolher um álbum ao sair para uma caminhada nas ruas de Sampa. Sempre vacilo. Não sei por que razão, optei pelo Nó na Orelha do Criolo. Provavelmente era alguma vontade inconsciente de ouvir uma batida à lá Fela Kuti para animar o triste fim de manhã chuvoso e cinzento do centro da cidade. Saí do prédio e caí na Augusta ao som da dançante Bogotá (com suas deliciosas linhas de baixo e saxofone).
Enquanto caminhava pela Peixoto Gomide e observava o grafite nos muros e a arquitetura arcaica dos pequenos edifícios ali construídos, Criolo mandava suas rimas em Subirusdoistiozin: "Licença aqui patrão, eu cresci no mundão, onde o filho chora e a mãe não vê. E covarde são, quem tem tudo de bom, e fornece o mal, pra favela morrer". Logo percebi que o disco não é para ser ouvido em casa, mas sim nas ruas da cidade. Criolo só faz sentido nas sujas vias públicas de São Paulo, de preferência longe dos mundos artificiais forjados em Alto dos Pinheiros ou qualquer outro bairro nobre da capital. Quando começou a terceira música do álbum, Não Existe Amor em SP, a ideia se confirmou. Ao dobrar a esquina da Peixoto com a Frei Caneca, imagem e som se uniram de forma plena: "Um labirinto místico, onde os grafites gritam. Não dá pra descrever. Numa linda frase de um postal tão doce, cuidado com doce, São Paulo é um buquê. Buquês são flores mortas num lindo arranjo, arranjo lindo feito pra você".
"Criolo é mesmo o artista do ano", pensei ouvindo as linhas de baixo da introdução de Mariô ao entrar no mercado em busca do meu almoço. "Por que diabos essa cara não é mais conhecido?", me perguntei segurando uma cestinha. A música é cosmopolita, misturando hip-hop, samba, jazz, funk, e qualquer outro gênero forte, com influência africana. As letras são cheias de referência da cultura periférica, como nas primeiras linhas dessa quarta faixa: "Antes de Sabota escrever 'Um Bom Lugar', a gente já dançava o 'Shimmy Shimmy Ya'. Chico avisara 'a roda não vai parar', e quem se julga a nata cuidado pra não quaiar. Atitudes de amor devemos samplear, Mulatu Astatke e Fela Kuti escutar. Pregar a paz, sim, é questão de honra, pois o mundo real não é o Rancho da Pamonha".
Engana-se quem pensa que esse disco do Criolo é um álbum de rap. Na hora que começou a tocar Freguês da Meia-Noite somente nos meus ouvidos - não sei o que o resto dos consumidores estavam ouvindo - fui capaz de perceber a dimensão da versatilidade desse artista. A canção é tão brega quanto qualquer coisa do Sidney Magal ou Odair José, mas, ao mesmo tempo, é extremamente bela e suave. Já nasceu um clássico. Cheguei ao caixa ouvindo os versos aveludados cantados em melodia árabe: "E não há como negar que o prato a se ofertar não a faça salivar". De certo modo, também salivava.
Na caminho de volta, andei pelo mesmo trajeto do Bela Vista ouvindo Grajaeux, que lembra muito Sabotage e os raps da Zona Sul, Samba Sambei, um reagge com influência dub, e Sucrilhos, que, segundo um amigo meu (Bruno Vicentini), é a música mais forte do disco: "Calçada pra favela, avenida pra carro, céu pra avião e pro morro descaso. Cientista social, casas bahia e tragédia gosta de favelado mais que nutella. Quanto mais ópio você vai querer? Uns preferem morrer ao ver o preto vencer. É papel aluminio todo amassado. Esquenta não mãe, isso é uma cabeça de alho. Cartola virá que eu vi, tão lindo forte e belo como Muhammad Ali. E cantar rap nunca foi pra homem fraco, saber a hora de parar é pra homem sábio. Rico quer levar com nois? Cê que sabe, quero ver paga de loco lá em Abu Dhabi. Eu sou nota 5 e sem provoca alarde, nota 10 é dina di, dj primo e sabotage".
Cheguei em casa, desliguei o som e tirei os fones de ouvido. Coincidentemente, o Michel estava com o computador na sala ouvindo Freguês da Meia-Noite, do Criolo. "Pô, cara! Tava ouvindo esse som aí!", disse a ele. "Acabou de lançar o clipe", respondeu o Michel, olhando atentamente para a tela. "O cara é foda", concluiu.
Deixei as compras na cozinha e sentei na mesa da sala, pensando na estranha coincidência. Freguês da Meia-Noite era a música que mais tinha me tocado durante a caminhada feita minutos atrás (talvez por ser a mais diferente, ou talvez pelo fato de ter prestado mais atenção nas três primeiras faixas do disco durante os últimos meses que o escutei). Abri o PC e pesquisei no Twitter o nome da música. Surgiu a própria mensagem do Criolo. @criolomc: "Chegou a hora! Videoclipe do "Freguês da Meia-Noite" no ar! Vamos divulgar fortalecendo a tag #FreguesDaMeiaNoite". Cliquei no link e vi essa pérola abaixo, filmada no Largo do Arouche, no centro de São Paulo.
Uma obra de arte, não? A direção é de Arthur Rosa e Samuel Malbon, que acertaram em cheio. Aliás, se esse não é o melhor clipe musical de 2011, então já não sei o que é arte cinematográfica ligada à música no Brasil.
Criolo fechou o ano com chave de ouro. É questão de tempo para que ele conquiste o país. A crítica já está de joelhos, assim como os fãs de Chico Buarque (que o homenageou recentemente). O músico de Grajaú, que está há mais de dez anos ativo na cena underground, segue inabalável com sua peculiar humildade. E que siga.
Evoé, "jovem" artista!
Os artistas contemporâneos tem muito a nos dizer sobre o agora.
ResponderExcluirSou meio saudosista, mas vibro quando aparece gente fazendo música nova com qualidade e originalidade. Mais ainda quando a qualidade musical se deixa acompanhar do protesto e exposição da realidade social. Criolo é o melhor da música brasileira desde Chico Science e sua Nação Zumbi! Universal, a partir da periferia paulistana, assim como Science o foi a partir dos mangues de Recife. Sensacional!
ResponderExcluirvelho, não lembro de ter dito isso, mas se você disse que eu disse ok. :]
ResponderExcluirtem certeza que você voltou pra Maringá?