Em 2018 tive a proeza de publicar apenas quatro textos no e-mancipação. Dois ficaram engavetados como rascunho, um deles escrito durante minha última viagem para Itália. É uma quantia ínfima. Beira o ofensivo e passa uma mensagem de que o blog está abandonado.
Não quero aqui arrumar desculpas. Acho que nem as tenho. O fato é que 2018 foi um ano muito atribulado e repleto de atividades. Foi o ano de minha retomada à vida acadêmica, com meu ingresso no doutorado na USP com o Prof. Ricardo Abramovay, uma pessoa que tenho profunda admiração e que se tornou um grande parceiro de pesquisas. Juntos, fundamos o Grupo de Estudos de Ética, Tecnologia e Economias Digitais, um pequeno grupo sediado no Instituto de Energia e Ambiente da USP que se dedica a uma discussão um pouco mais rigorosa sobre os fundamentos da filosofia da tecnologia e debates contemporâneos sobre como a tecnologia está redefinindo valores sociais e nossa própria estrutura sócio-econômica.
Com Abramovay, organizamos um grupo bastante interdisciplinar de alunos que se reunia em salas do IEE ou da FEA. No primeiro semestre, nos dedicamos à leitura de um livro clássico do filósofo Hans Jonas chamado Princípio Responsabilidade. Valeria um texto apenas sobre a obra e sua atualidade, tamanha sua importância. No segundo semestre, lemos dois bons relatórios. Um do Cédric Villani, matemático e parlamentar francês, sobre políticas industriais de inteligência artificial; e outro elaborado pelo Luciano Floridi, Jaron Lanier e outros filósofos, intitulado Towards a Digital Ethics, elaborado para a European Data Protection Supervisor (EDPS), comandada pelo jurista italiano Giovanni Butarelli.
Além dessas atribuições com o grupo, tive uma imersão em algumas disciplinas oferecidas na pós-graduação. Fiz algumas na Faculdade de Direito e outras no próprio Instituto de Energia e Ambiente, como uma disciplina sobre metodologia da pesquisa científica, muito focada em debates epistemológicos e cânones como Karl Popper, Thomas Kuhn, Paul Feyerabend e Silvio Funtowicz. Houve uma grande influência dessa disciplina na elaboração do meu paper Regulatory Studies, Post-Normal Science and Personal Data Protection: rethinking complexity and uncertainty in the 21st century, que coloquei online no Research Gate. Digamos que foi apenas um flerte com o debate sobre "ciência pós-normal", que, posteriormente e após longas discussões com Abramovay, compreendi que não era central para minha pesquisa.
Em julho, participei do Privacy Law and Policy Course da Universidade de Amsterdam (Instituut voor Informatierecht). Foi uma oportunidade incrível de ter mais conhecimento sobre a legislação europeia de proteção de dados pessoais e ter aulas com acadêmicos que há muito tempo leio, como o Prof. Dennis Hirsch e o Prof. Chris Hoofnagle (se você pegar o meu texto A proteção de dados pessoais entre leis, códigos e programação, escrito em 2014 durante meu período de pesquisa no Núcleo de Direito, Internet e Sociedade da USP, você vai notar uma influência forte de Hirsch na discussão sobre co-regulação e uma menção ao trabalho de Hoofnagle no debate sobre propaganda comportamental e a insuficiência do modelo contratualista do Marco Civil da Internet, exigindo-se uma Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais).
Não bastasse a intensidade da vida acadêmica, minha vida profissional no Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor foi catapultada em razão da prioridade que a pauta de proteção de dados pessoais ganhou no Brasil. Julgo que essa priorização esteve profundamente ligada com (i) as discussões sobre reforma do cadastro positivo, (ii) o escândalo Facebook/Cambridge Analytica, (iii) a entrada em vigor da General Data Protection Regulation e (iv) a força política conquistada pelo Deputado Orlando Silva para finalizar os trabalhos da Comissão Especial de Proteção de Dados Pessoais na Câmara dos Deputados, o que resultou no relatório final que unificou o Projeto de Lei 4060/2012 com o Projeto de Lei 5276/2016.
Meu envolvimento com a elaboração da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais durante o ano de 2018 foi imensa, junto com dezenas de ativistas e pessoas especializadas no tópico. Além de audiências públicas (ver, por exemplo, uma delas aqui e a apresentação feita aos parlamentares), coordenei uma campanha nacional chamada "Chega de Desproteção", elaborei textos técnicos de monitoramento das discussões que aconteciam no Congresso -- afinal, para tornar mais complexa a coisa, havia um outro projeto de lei em votação no Senado, gerando uma espécie de "corrida de cavalos" entre projetos de lei após o escândalo do Facebook e o buzz gerado em torno do tema --, concedi entrevistas, gravei programas especiais sobre o tema (ver Panorama da TV Cultura) e tive que gastar muita energia e saliva para dialogar com assessores de Deputados e Senadores para que houvesse uma priorização da votação da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD).
Esse trabalho todo foi apenas para conseguir a formulação e aprovação daquilo que se tornou a Lei Federal 13.709/2018, após o trabalho louvável do Deputado Orlando Silva. Além desse enfoque em incidência legislativa para o bem comum, tive um gasto de energia muito grande com duas outras pautas, que valem ser relembradas.
Primeiro, a investigação que conduzimos no Idec sobre as ilegalidades do Sistema de Biometria do Estado de São Paulo. Para quem não sabe, a equipe do então governador Geraldo Alckmin teve uma ideia brilhante. Eles pensaram: por que pegamos as bases de dados da polícia e do Detran e não oferecemos um sistema pago de validação desses dados para o comércio?
Genial, não? Pois bem. Investigamos a fundo esse caso e identificamos, na ONG, uma série de incompatibilidades com as funções designadas para o Imesp (órgão de imprensa do Estado) e um conjunto de riscos e vulnerabilidades na operação do sistema de biometria. Mais importante, uma violação básica do princípio de adequação e finalidade, considerando que a base era montada a partir de informações cedidas pelos cidadãos para tirar a Carteira Nacional de Habilitação (CNH) e para ter direito a seu Registro Geral (RG). Após três meses do nosso trabalho inicial, a Folha de São Paulo produziu uma matéria de fôlego sobre o assunto e fez o então governador Marcio França recuar.
A segunda pauta é o fabuloso caso da concessionária ViaQuatro, que detém o direito de exploração da Linha Amarela do metrô de São Paulo. Se você não conhece o caso -- o que é difícil, considerando que saiu no Intercept, na Folha de São Paulo e na TV Globo --, vou resumir. Basicamente, a ViaQuatro percebeu que poderia não só exibir anúncios publicitários no metrô, como poderia inovar e fazer algo diferente: oferecer um serviço de avaliação das emoções dos usuários dos metrôs ao olharem uma peça publicitária, por meio de uma câmera de alta precisão e um software de "estudo das emoções" dos passageiros. Para isso eles anunciaram, em abril, o sistema de Portas Interativas Digitais, que passou a operar discretamente nos metrôs de São Paulo.
Tive a ideia de construir uma espécie de Privacy Class Action valendo-se do sistema de tutela coletiva brasileiro, em especial o uso das Ações Civis Públicas. Montei um plano de trabalho e, inicialmente, convidei pesquisadoras da Lavits (Rede Latino-Americana de Estudos de Vigilância) a fazerem parte do projeto, juntamente com a equipe do Idec, especificamente Bárbara Simão e Juliana Oms. Posteriormente, foi-me sugerido um contato com o Prof. Rafael Mafei, em razão do trabalho por ele desenvolvido no Programa de Ensino Tutorial da Faculdade de Direito da USP, que estava com um olhar específico para os debates constitucionais de privacidade. A parceria tríplice deu certo (Idec, Lavits e Pet) e passamos a construir argumentos pela ilegalidade da implementação das tais Portas Digitais. Após três meses de trabalho, protocolamos a Ação Civil Pública e conseguimos uma vitória no Judiciário em termos de obtenção de uma decisão cautelar, proibindo a ViaQuatro de coletar dados dos cidadãos pelo sistema das Portas Interativas Digitais. Uma ação de um pequeno grupo de pessoas atingiu milhares de cidadãos. Foi um caso emblemático.
Bruno Bioni e Renato Monteiro, criadores do Data Privacy Brasil, me informaram que o caso tornou-se objeto de estudo no curso de proteção de dados pessoais por eles ministrados. Bárbara Simão também me alertou que há pesquisadores de fora do Brasil utilizando a ACP como um importante caso de reação civil às práticas abusivas relacionadas a coleta de dados pessoais. Tive também a oportunidade de apresentar a experiência desse caso em uma reunião de ativistas realizadas na sede do CEJIL (Center for Justice and International Law), em Washington, em outubro de 2018, e notei grande interesse de outras organizações civis em utilizarem dessas estratégias de litigância.
Enfim, foi um ano emocionante e cheio de atividades e polêmicas. Isso sem nem entrar em toda a discussão sobre "fake news" e as eleições de Jair Bolsonaro, que rendem um texto à parte -- expus minha visão sobre o assunto em uma entrevista para a Unisinos no primeiro semestre (Fake news e o triunfo do reducionismo) e, posteriormente, em outra entrevista sobre economia política da desinformação.
Um plano para 2019: acumular menos, escrever mais
Este é um ano de profundas inflexões no nível político -- um ano de vivência dos efeitos práticos do bolsonarismo no Brasil -- e também um ano de mudanças pessoais importantes. Por uma série de motivos, encerrei meu ciclo profissional no Idec. Não terei mais a posição de líder do programa de direitos digitais do Instituto. Aceitei um convite do Ronaldo Lemos para integrar sua equipe no escritório Pereira Neto Macedo e assumi uma posição de advogado associado.
Há outras grandes mudanças pessoais, como a chegada do meu segundo filho, que explorarei em outros textos. Não quero gastar toda minha munição agora -- retomando aqui, ironicamente, uma expressão ligada ao mundo das armas em um país prestes a promover intensa liberalização de posse e porte -- e escrever tudo que está acontecendo. Pelo contrário, quero adotar uma outra metodologia de escrita.
O plano é simples. A ideia é acumular menos e escrever mais. Assumir uma rotina semanal de escrita, retomando a praticidade e rusticidade do blog, que completa treze anos. Pode parecer missão impossível em um contexto de emprego novo, segundo filho e doutorado. Mas acho que não é se eu assumir uma visão específica para esse espaço, retomando a ideia de que os blogs servem para a publicação de "ideias cruas" e textos distintos, mais leves e despretensiosos. Isso lembra muito a discussão dos sociólogos Dave Beer e Deborah Lupton sobre o papel dos podcasts e dos blogs em uma "sociologia punk".
Parte do meu balanço é reconhecer que coloquei um grau de exigência grande ao que deveria ser publicado no e-mancipação. É hora de retomar textos mais ágeis e descompromissados -- o espírito original dos blogs --, mantendo uma rotina mais humilde de publicação constante. Mas não no Twitter. Aqui mesmo, no velho caderno de notas.
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