Ontem, no escritório do meu antigo orientador Paulo Roberto de Souza, conversávamos sobre os efeitos dramáticos da crise econômica global - a misteriosa chaga de nosso tempo -, em especial sobre como tal fenômeno escancarou a falácia da democracia, ou ao menos mostrou o verdadeiro "fetichismo institucional" (nos termos de Unger) que temos com a democracia, revelando que quem manda mesmo são os investidores internacionais, detentores de títulos de dívida pública. A crescente onda de tecnocratas no poder na Europa mostra que a prioridade central é manter a confiança no mercado, mesmo que isso implique em adotar medidas não aceitas por grande parte da população europeia.
Há uma nação, entretanto, que optou por um caminho distinto daquele tomado por Grécia, Itália, Espanha e outros países em crise. Trata-se da Islândia, pequeno país europeu que viveu um boom especulativo junto a uma forte desregulamentação do sistema financeiro a partir do começo da década de noventa (o filme Inside Job retrata com precisão o ocorrido). Em abril de 2011, após o colapso do banco Icesave, o governo se deparou com um dilema: (i) cobrir o rombo de aproximadamente 4 milhões de reais deixados pela instituição privada com dinheiro público, honrando os compromissos com credores ingleses e holandeses e garantindo um ambiente seguro para investimento, ou (ii) fazer com que a população entenda o problema e se dirija às urnas para decidir através de um plebiscito.
Para desespero dos economistas do Fundo Monetário Internacional e investidores ingleses, o presidente Ólafur Grímsso optou pela segunda opção, aprofundando ainda mais a experiência democrática do país (cf. 'O "não" do povo da Islândia'). A lição foi dada pelos gélidos e muito bem formados líderes islandeses: a população não pagará por erros cometidos pela ganância de banqueiros e agentes privados.
Meses depois, em julho, a Islândia novamente mostrou ao mundo o que é democracia: anunciou que havia formado um Conselho Constitucional com 25 representantes da sociedade, que seriam responsáveis por elaborar um texto constitucional prévio. Após o início dos trabalhos, o material foi disponibilizado para ser debatido on-line através de mídias sociais (como o Facebook) e reescrito, se necessário, por toda a população (cf. 'Democracia e Tecnologia').
A repercussão sobre a inovação institucional da Islândia foi pequena. O jornal inglês The Guardian publicou uma matéria sobre a tal "crowdsourcing constitution", mas pouco se falou sobre a relação entre revolução tecnológica e radicalização da democracia.
No Brasil, o debate sobre a experiência islandesa de democracia direta infelizmente ainda é tímido. Textos como o de João Telésforo Medeiro Filho - que se propõem a amplificar a rica discussão sobre a revolução democrática colocada em prática pelos cidadãos daquela ilha - são exceção (cf. 'A resposta da Islândia à crise “econômica”: a invenção democrática'). A mídia silencia. Não haverá um Globo Repórter sobre a democracia real na Islândia. Não se trata de paranoia inspirada em Noam Chomsky, é fato: há um amplo controle dos conglomerados midiáticos no sentido de silenciar discussões que possam induzir comportamentos que provoquem a ruptura da escravidão da dívida. Imagine o efeito da propagação da guinada democrática da Islândia? Quais seriam as implicações de novos calotes? Para que serviriam os políticos se já é possível exercer diretamente as funções legislativas?
É óbvio que o caso islandês é dotado de peculiaridades e questões conjunturais que lhe são próprias. A questão não é tão simples a ponto de pensar na mera replicação da ação dos governantes islandeses. Mesmo assim, o episódio de 2011 merece ser discutido com mais profundidade, pois oferece uma alternativa à cruel rendição dos devedores europeus frente às exigências do sistema financeiro pós-crise.
Poucos trabalhos acadêmicos exploraram esta rica experiência política. O trabalho de Paul Blokker, da Universidade de Trento, é um exemplo de como se pode produzir discussões acadêmicas ricas a partir da inovação institucional islandesa. Em um trabalho publicado há duas semanas, intitulado Grassroots Constitutional Politics in Iceland, Blokker reconhece que a história da "revolução constitucional por baixo" da Islândia é claramente um processo único, mas ao mesmo tempo conflitivo, que levanta complexas questões sobre mudança constitucional e inovação. O autor utiliza o termo "grassroots" para designar um modelo de organização política local e espontânea, no qual os membros de uma comunidade criam espaços de deliberação independentemente de "políticos profissionais". Ao invés de uma política de elite, a proposta islandesa é uma horizontalização plena, com plena participação através de seções cívicas de brain-storming e proposição de normas.
A conclusão de Blokker é que mesmo que o texto constitucional seja rejeitado em 2012, o processo de criação da nova constituição foi, por si só, inovador, gerando repercussões em toda a política nacional ("The whole process of Icelandic grassroots constitution-making has been original in its civic-participatory nature and in its explicit rejection of formal political interference"). Não há dúvidas de que o modelo islandês é inédito e proporciona um grau mais aprofundado de democracia e auto-governo.
Com os novos meios de comunicação, a Islândia mostrou o que é um governo de um povo bem informado e dono do próprio destino. Ou ao menos tentou. Em tempos de erosão democrática, essa é uma história que deve ser contada.
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