Não é só a questão da competência que está em jogo. É a visão conservadora de um lado, arraigada na idéia de tribunais soberanos, de juízes soberanos, inalcançáveis, incensuráveis, inquestionáveis e impermeáveis, refratários inclusive ao calor humano do mundo que os cercam. De outro lado, a transparência, a eficiência, a responsabilidade e a consciência de poder fundado na razão pública, protegendo os valores e direitos fundamentais da sociedade. A Justiça ideal e a Justiça real.
A declaração acima foi pronunciada ontem (31.01) pelo Presidente Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Ophir Cavalcante. Para quem não está informado, explico o motivo: hoje, o Supremo Tribunal Federal julga a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4638, contra a Resolução nº 135 do CNJ, “que dispõe sobre a uniformização de normas relativas ao procedimento administrativo disciplinar aplicável aos magistrados, acerca do rito e das penalidades, e dá outras providências”. Segundo o portal do STF, "A AMB [Associação dos Magistrados Brasileiros] sustenta a inconstitucionalidade formal e material da resolução ao argumento de que a matéria nela tratada não se encontra dentre as competências constitucionais do CNJ, por entender tratar-se de matéria de competência privativa dos tribunais (penas de censura e advertência) ou matéria de competência privativa do legislador complementar (penas de remoção, disponibilidade e aposentadoria). Em 19/12/2011, o relator deferiu parcialmente a liminar, ad referendum do Plenário. Em discussão: Saber se estão presentes os requisitos necessários à concessão da medida cautelar".
A discussão no Supremo será intensa. Segundo entrevista do Ministro Carlos Ayres Britto, "o debate promete". Afinal, é concorrente ou subsidiária a competência disciplinar do CNJ, tendo em vista a reserva de lei, a autonomia dos tribunais e os direitos fundamentais previstos na Constituição?
A questão tornou-se polêmica em razão das manifestações de entidades profissionais, como a dos magistrados, que fez duras críticas à atuação da corregedora Eliana Calmon. Ela falou da existência de "bandidos de toga" (alguém duvida?), o que gerou um mal-estar generalizado entre os magistrados, inclusive Cezar Peluso, juiz de carreira e Presidente do STF. A OAB também entrou em cena e criticou “as paixões corporativas” que vêm se manifestando no embate entre a Corregedoria Nacional de Justiça e o Poder Judiciário.
Não obstante as discussões políticas, a questão será tratada como jurídica. Em razão do desenho institucional do Estado Democrático de Direito, o poder de interpretação está nas mãos dos onze ministros, que deverão realizar a "representação argumentativa dos cidadãos" (nos termos do muito citado jurista alemão Robert Alexy), através da defesa da Constituição.
No caso da polêmica atual sobre o CNJ, está em jogo a interpretação dos seguintes termos da Constituição, inseridos pela Emenda Constitucional nº 45/2004: "Art. 103-B. § 4º Compete ao Conselho […] III – receber e conhecer das reclamações contra membros ou órgãos do Poder Judiciário, […], sem prejuízo da competência disciplinar e correicional dos tribunais, podendo avocar processos disciplinares em curso e determinar a remoção, a disponibilidade ou a aposentadoria com subsídios ou proventos proporcionais ao tempo de serviço e aplicar outras sanções administrativas, assegurada ampla defesa; […]".
Como afirmam os professores da FGV-Rio Joaquim Falcão, Diego Werneck e Pablo Cerdeira em artigo publicado na revista Interesse Nacional, "na Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) nº 4 638, que pode ser decidida pelo STF a qualquer momento, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) afirma que a expressão 'sem prejuízo da competência disciplinar e correicional dos tribunais' deve ser entendida como limitando a competência do CNJ a apenas 'rever' a ação das corregedorias locais. A competência da corregedoria do CNJ seria apenas 'revisional' ou 'subsidiária" em relação à ação das corregedorias dos tribunais inferiores. É construção livre a partir do texto. Mas, como já afirmado pelo próprio STF no julgamento da Adin nº 3 367 (2005), o que o texto indica é uma relação de concorrência (tanto o CNJ quanto as corregedorias locais podem iniciar processos disciplinares contra magistrados), e não de subsidiariedade (o CNJ só entra em cena quando as corregedorias não atuaram) . Em última instância, o que se espera com essa Adin é que o Supremo redefina a identidade constitucional do CNJ. Controlar a 'atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário' e '[controlar] cumprimento dos deveres funcionais dos juízes' foram tarefas atribuídas ao Conselho pelo Congresso Nacional na Reforma do Judiciário. Desde sua criação, setores insatisfeitos da magistratura brasileira – sobretudo desembargadores estaduais, que viram seus poderes diminuídos com a atuação do CNJ – têm sistematicamente tentado obter no Supremo a vitória que não obtiveram no Congresso" (cf. 'O Diálogo entre o CNJ e o Supremo').
A questão é hermenêutica. Como o texto deve ser interpretado? Tal dificuldade - uma das mais intrigantes arenas de debate na ciência do direito - é apontada pelos acadêmicos fluminenses, que apontam para o possível retrocesso, caso as funções do Conselho sejam limitadas por interpretação constitucional: "O que é 'devido processo legal'? 'Poderes harmônicos e independentes entre si'? 'Dignidade da pessoa humana'? 'Duração razoável do processo'? Definir estes conceitos do texto constitucional é necessariamente convidar a atuação de intérpretes futuros. E, em caso de conflito na interpretação, fixar estes conceitos é tarefa típica do Supremo Tribunal Federal. Natural, portanto, que o STF esteja no centro dos debates travados de 2005 para cá. É chamado a revelar a extensão dos poderes constitucionalmente atribuídos pelo Congresso ao CNJ. Neste sentido, a formatação final do CNJ depende em muito do intérprete, sobretudo do Supremo. É, portanto, experimento em construção. Sendo que a inevitável porta aberta da interpretação pode envolver riscos institucionais. Pode levar a retrocessos. É o que pode ocorrer agora. A criação do CNJ foi fruto de um consenso majoritário inequívoco na sociedade: a insuficiência dos mecanismos anteriores à Reforma do Judiciário para garantir a eficiência e moralidade administrativas e a integridade funcional no âmbito do Judiciário. Mas este consenso majoritário não significou unanimidade. Houve perdedores. No julgamento da Adin 4638, o risco é o de que se faça prevalecer, por meio de decisões do STF, concepções do papel e do escopo da atuação do CNJ que foram debatidas e derrotadas em 2004".
Para Cavalcante, representante dos advogados brasileiros, não há o que ser debatido. Segundo ele, "a premissa constitucional (artigo 103-B, § 4º, II) que dá ao CNJ capacidade para atuar de ofício em matéria disciplinar, sem prejuízo da ação correcional das corregedorias de cada tribunal, é uma prova inconteste de que a competência do Conselho é concorrente". A questão maior é de governança e accountability: a magistratura precisa entender que presta um serviço público e que os juízes não são uma casta privilegiada, devendo ser fiscalizados por um órgão público e punidos, caso seja comprovada a existência de irregularidades e atos ilícitos. É preciso, enfim, um controle externo.
O vídeo abaixo reforça essa ideia. Nele, Maria Teresa Sadek (já comentada aqui) explica por que o Conselho Nacional de Justiça é a inovação institucional mais importante desde a criação do Poder Judiciário brasileiro.
É preciso, acima de tudo, desmistificar o papel do magistrado na sociedade contemporânea. A proposta de Roberto Mangabeira Unger de aprofundamento da democracia é radical: "devemos rebaixar o papel do juiz, conferindo-lhe uma responsabilidade especializada, excepcional e secundária. O corpo cívico como um todo deve se tornar o interlocutor primário da análise jurídica. O papel primeiro do jurista deve ser o de servir como assistente técnico do cidadão" (O Direito e o Futuro da Democracia, 2004, p. 133).
Até que esse momento chegue, o Conselho Nacional de Justiça pode desempenhar um papel significativo na iluminação deste obscuro poder para o cidadão comum. O brasileiro já está farto de impunidade.
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