Parábolas permanentes


Paulo Leminski realizou muitas proezas literárias em seus quase quarenta e cinco anos de vida. É certo que a maioria dos brasileiros conhece, hoje, a obra poética de Leminski, impulsionada pelo antologia lançada pela Companhia das Letras em 2013. O sucesso de vendas de Toda Poesia cristalizou, em cifras e números, uma influência notável de Leminski na cultura popular brasileira. A junção do erudito com o desleixado -- uma das fusões notáveis do malandro que sabia latim -- e a força criadora leminskiana têm sido celebrada e ressaltada por artistas de extrema visibilidade como Arnaldo Antunes, Gregório Duvivier e Rodrigo Amarante. No entanto, Leminski possui muito mais que poemas em seu armário de criações literárias. Há romances experimentais deliciosos, ensaios sobre criação e inovação e biografias. Potentes biografias sobre poetas, santos, mestres e revolucionários.

Sabemos, pela biografia escrita por Toninho Vaz em 2001, que Leminski teve uma formação extremamente heterodoxa para os padrões atuais. Já percebido como um rapaz de inteligência aguda e  enorme curiosidade na pacata Curitiba da década de 1950, foi matriculado no mosteiro de São Bento, no centro de São Paulo, aos 13 anos, onde teve contato com clássicos da literatura ocidental, língua grega e latim. A biblioteca dos beneditos possuía milhares de títulos e obras raras, muitas das quais Leminski devorou com disposição, fazendo anotações pessoais em cadernos e blocos, em língua grega. Mesmo após abandonar o mosteiro -- seu comportamento rebelde e sua potência criativa libidinosa eram incompatíveis com o espírito ora et labora et legere --, Leminski manteve comunicação por carta com professores e monges, demonstrando enorme prazer em realizar leituras originais de textos "orientais", como escrituras em aramaico.

Esse é um detalhe importante que ajuda a entender a visão de mundo de Paulo Leminski. Antes de sua incursão na poesia concreta e o mergulho nas propostas estéticas e conceituais dos criadores da Noigrandes -- Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari --, Leminski era uma espécie de estudioso das humanidades em sentido amplo. E esse contato com textos eruditos, escrituras ditas sagradas e línguas antigas forneceu uma espécie de primeiro "material bruto", que serviria de repertório de criação artística e poética.

Essas reflexões me saltaram à mente depois de ler um pequeno livro escrito por Paulo Leminski em 1984: Jesus a.C., publicado pela editora Brasiliense.

Fazia muito tempo que tinha interesse em ler a biografia de Leminski sobre Jesus -- antes mesmo da compilação Vida, lançada recentemente sob coordenação de Alice Ruiz --, mas foi somente neste Natal que consegui me dedicar a essa leitura. Sabia que Leminski havia concebido sua investigação sobre o judeu de Nazaré dentro de um projeto mais amplo de vidas que o interessavam, incluindo aí Bashô e Trotski, por exemplo. Me faltava, porém, uma noção clara de que tipo de voz Leminski teria como biógrafo. Eis um dos prazeres do livro: ele não se assume como biógrafo e despreza qualquer espécie de método que se pretenda mais acadêmico ou formal. É como se Leminski estivesse contando uma boa história em uma mesa de bar.

Mas não se trata de qualquer boêmio falando obviedades sobre uma figura já muito conhecida. O texto de Leminski se sobressai por uma sensibilidade extrema com as estruturas do hebraico e a dificuldade que nós, latinos, temos de conceber uma linguagem que não há tempos, mas apenas modos. Em uma passagem genial, em tom professoral, ele explica:

Idioma flexional, como o grego e o latim, o hebraico tem uma forma de verbo que pode significar, ao mesmo tempo, prestígio e futuro. A palavra amarai, em hebraico, pode significar tanto 'eu disse' como 'eu direi'. E para imaginar as possibilidades de ambiguidades proféticas dos hazon (visões), que se expressavam numa língua onde você não sabe se está falando de feitos passados ou eventos por ocorrer. Trocando em miúdos: se um profeta hebreu diz 'cairás, cidade maldita', pelo tempo do verbo, você não pode garantir se a cidade já caiu ou vai cair. Muito difícil, para nós, vivenciar ou mentalizar um universo onde as coisas que já existiram e as que vão existir estão situadas no mesmo plano. Graças a essa característica da língua hebraica, o profeta bíblico parecia se situar num tempo especial, um extratempo, onde todo o por ocorrer já teria ocorrido. Algo como se a ficção científica coincidisse com o realismo socialista. Ou vice-versa. Nisso, Isaías é o máximo. Pela extrema criatividade imagética, vôos quase surrealistas de fantasia, vigor e pujança de expressão e formulação, Isaías tem de ser contado entre os grandes poetas de humanidade, no time de Homero, Virgílio, Dante, Shakespeare, Bashô, Goethe.
Passagens como essa, deliciosamente bem escritas e que contextualizam a estrutura linguística dos antigos profetas (não aquele que diz o futuro, mas o "louco de Deus"), são intercaladas por interpretações de Leminski sobre Joshua -- ou Jesus -- e seu "entendimento profundo, radical e intransigente" da via judaica. O mais interessante, no entanto, me parece ser o argumento de Leminski sobre o caráter poético do nabi (aquele que era visto como profeta). Para Leminski, Jesus não falava claro pois, propositalmente, falava por parábolas.

Daí o caráter poético e subversivo das mensagens de Jesus, na interpretação do artista curitibano. Para Leminski, o essencial de suas mensagens "está longe de ser transmitido por cadeias de raciocínios". As parábolas -- que são estórias paralelas, que conduzem por caminhos tortos -- são unidades poéticas e ficcionais, que "irradiam significados espirituais e práticos". Isso fascina Leminski, especialmente o fato de Joshua, por meio de suas estórias paralelas, pensar concreto e utilizar elementaridades como água, terra, pesca, semeadura. Aqui Leminski encontra um paralelo com toda uma tradição oriental do pensamento:

A parábola é um gênero oriental, encontradiço entre todos os povos da Ásia, a revelação de verdades abstratas através da materialidade de uma anedota, uma unidade ficcional mínima. Aquilo que Joyce chamava de epifania. (...) As parábolas de Jesus são epifanias (em grego, "sobre-aparições"), nós de histórias donde se desprende um princípio geral. Assim fez Confúcio. Assim fez o autor do Gênesis. Assim fizeram os cínicos gregos. Assim fizeram os rabinos. Assim fizeram os gurus da Índia. Assim fizeram os sufis do Islam. Esse procedimento de relevar ocultando tem um sabor, indisfarçavelmente, zen.

O ensaio biográfico possui curtos capítulos, cada um com uma espécie de reflexão original de temas muito diversos. Em um deles (Jesus Macho e Fêmea), Leminski discute a relação de Jesus com as mulheres, aparentemente muito distinta da tradição patriarcal e machista dos povos daquele tempo. Em outro (Jesus Jacobino), Leminski discute uma espécie especial de subversão e revolução que ele provocou -- não uma revolução política no sentido que concebemos hoje, mas uma invenção da alma e uma crença absolutamente utópica, negadora e desregrada. É nessa ideia de limites inatingíveis -- amar inimigos, vender tudo e dar aos pobres, ser prudente como as serpentes e simples como as pombas -- que Leminski defende que "o programa de vida proposto por Jesus é, rigorosamente, impossível. Nenhuma das igrejas que vieram depois invocando seu nome e cultuando sua doutrina o realizou".

Para Leminski, pouco importa a discussão sobre a fé cristã ou sobre o que as igrejas estruturaram como programa ou institucionalização da religião. Interessava-o Jesus como poeta, como criador de parábolas potentes, como ideia, como momento de significação ininterrupta, como signo de leitura infinita. Daí o alerta do ex-seminarista e poeta marginal logo no início do livro: pouco importa definir se Jesus foi reformador ou revolucionário, fariseu dissidente ou profeta iluminado; ele sabia se esconder muito bem entre as muralhas e as palavras. O livro de Leminski é um despretensioso pega-pega com esse maestro dos jogos de significação. Basta ler para ver.

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