[ por Ana Carolina Bittar, em colaboração para o e-mancipação ]
Século 51. O Doctor chega em uma espécie de Biblioteca de Babel e explica para sua acompanhante de viagem no tempo: “Agora temos hologramas, downloads direto para o cérebro, nuvens de e-books… mas você precisa do cheiro dos livros” (Doctor Who, quarta temporada, oitavo episódio). Se é verdade que nem em trinta séculos um livro digital vai substituir a experiência de ler um livro físico, também é um fato que essa tecnologia chegou para ficar.
Rumo a uma cultura de leitura digital
As primeiras ideias sobre livros digitais surgiram nos anos 70, mas esse mercado só começou a se desenvolver em meados dos anos 2000, quando a Sony e a Amazon lançaram seus e-readers (Sony Reader e Kindle, respectivamente). Desde então, seu crescimento foi considerável: os e-books já representam 20% das vendas de livros nos Estados Unidos e o Brasil, juntamente com China e Índia, é uma das maiores apostas da indústria para os próximos anos.
Esse avanço tão rápido pode ser creditado a vantagens como praticidade de deslocamento e fácil acesso ao livro, que pode ser adquirido online e lido segundos após a compra. Já o preço costuma a ser 20% a 30% inferior ao preço do livro físico, sendo que as obras em domínio público podem ser encontradas de graça. Além disso, há facilidades de uso como grifos, notas, dicionário integrado, compartilhamento de trechos preferidos e pesquisa de termos.
As editoras, por sua vez, percebem uma considerável redução de custos com impressão, armazenamento, distribuição e atualização das obras. Para os autores, os livros digitais podem significar um aumento na participação dos royalties e na possibilidade de autopublicação, o que representa uma significativa democratização no mercado editorial. Outras vantagens são a eliminação de problemas como livros fora de circulação ou fora de estoque, sustentabilidade, e adoção de recursos que promovem a acessibilidade para deficientes visuais.
O "gerenciamento de direitos" como bloqueio à democratização
Apesar disso, um fator é comumente apontado como obstáculo à popularização dos e-books: o uso de "gerenciamento de direitos digitais" (digital rights management - DRM). O DRM é um conjunto de técnicas utilizado para controlar o acesso e o uso de arquivos digitais com o objetivo principal de combater a pirataria.
Por meio do DRM é possível, por exemplo, controlar quantas vezes o arquivo pode acessado, em quais plataformas e por quanto tempo. O grande problema é que esse controle tem outros impactos além de evitar a distribuição ilegal do arquivo.
Em primeiro lugar, a maior parte das livrarias adota esquema de DRM próprio, compatível apenas com o seu dispositivo de leitura. Isso significa, por exemplo, que um livro comprado na iBook Store, da Apple, não pode ser lido no Kindle, da Amazon, e um livro comprado na Amazon não pode ser lido no Nook, da Barnes & Noble.
Em alguns casos a incompatibilidade pode ser contornada pelo download de aplicativos de outras livrarias nos dispositivos de leitura, mas ainda que a ininteroperabilidade não seja absoluta, há um fechamento considerável do mercado. Do ponto de vista da defesa da concorrência, essa situação pode criar barreiras à entrada de novas empresas e criar custos de mudanças, na medida em que o consumidor que sempre comprou livros em uma loja tenderá a não trocar o seu dispositivo de leitura por um de outra livraria caso isso signifique abandonar a sua biblioteca.
Também há sérias preocupações no que diz respeito ao consumidor. Como as políticas de DRM das lojas são pouco transparentes, é comum que o leitor só se dê conta dessas restrições após a compra do arquivo. Além disso, os limites do DRM são estabelecidos pelas próprias livrarias que, não raro, bloqueiam usos que seriam legais pela legislação autoral, como o back up do arquivo e a conversão para outro formato. Com isso, o DRM vai além de ser um obstáculo a atividades ilícitas, passando a interferir na maneira pela qual o consumidor gere o produto que adquiriu.
O discurso do combate à pirataria
Muitos críticos do DRM -- como o grupo Defective by Design -- alegam que essa prática acaba por estimular a pirataria, uma vez que ao baixar um arquivo ilegal o usuário pode administrá-lo com maior flexibilidade do que quem o comprou.
A própria eficácia do DRM no combate à pirataria é questionada, uma vez que se trata de uma tecnologia cara, mas facilmente quebrável (embora a quebra de DRM seja ilegal na maior parte dos países e infrinja o termo de uso das livrarias). Tanto é assim que a indústria fonográfica e mesmo algumas editoras, como a Tor, especializada em ficção científica, já abandonaram seu uso.
Ainda assim, a proteção contra a pirataria ainda é vista como um requisito necessário para o investimento nesse nicho, e o estabelecimento de um DRM padrão possui outros tipos de desvantagens, como riscos de segurança e dificuldade de coordenação entre as empresas do mercado.
Enfim, os livros digitais representam uma ótima oportunidade para maximizar e democratizar o acesso ao conhecimento, mas seus benefícios são minimizados pelos complexos e incompatíveis esquemas de DRM adotados atualmente. Dentre as possíveis alternativas a esse quadro estão uma maior transparência nas políticas das empresas, permitindo ao consumidor selecionar o regime de DRM que mais lhe agrade, e políticas mais flexíveis de direito autoral que consigam melhor conciliar os valores aqui em jogo.
Ótimo texto! Bem que a ABNT podia ter uma norma específica para citação de e-books.
ResponderExcluirps: deu até vontade de ver o episódio mencionado de Doctor Who...