Paternidades


A paternidade é um processo transformador em muitos sentidos. Transforma um homem (e uma também uma mulher se formos falar de maternidade) internamente, no seu senso de responsabilidade e na nova visão que assume de si mesmo (não mais o filho de alguém mas agora o responsável por alguém), como também renova sua fé na humanidade e na esperança de que um novo mundo, de fato, pode surgir.

Não escolhi por acaso a pintura de Joan Miro para ilustrar o que estou sentindo no momento. Com o nascimento de meu segundo filho, Francisco, no dia de ontem, sinto como estivesse no meio de um processo de gênese do mundo. É um sentimento que me conecta, também, com o pensamento de Hannah Arendt: uma das ontologias da condição humana é o nascimento. Há muito na expressão "uma criança veio ao mundo". É como se pudéssemos renovar nossas crenças de que há uma potência aí, uma possibilidade de as coisas se reinventarem, de mudar, de irmos para outro caminho. Liberdade, na concepção de Arendt, é essa capacidade de começar, de fazer algo novo, de fazer o inesperado - um poder que nos é dado pelo nascimento. A paternidade é bonita ao trazer esse sentimento, para além, claro, do amor único criado com o próprio filho.

Um outro lugar
O nascimento é a introdução da novidade no mundo. No caso de Francisco, sua introdução se deu numa situação diferente de Antonio. Não só pelos vários fatores conjunturais que se modificaram em três anos -- estamos em empregos diferentes (Priscila como coordenadora pedagógica da escola Casa de Aprendizagens e eu como advogado associado em um escritório especializado em direito e tecnologia de São Paulo), governados por um presidente que detestamos, porém com mais estrutura financeira e carreiras mais definidas --, mas especialmente por ser uma segunda paternidade.

A diferença fundamental é, evidentemente, a experiência e os conhecimentos enraizados que você adquire no processo da primeira paternidade, que te beneficiam enormemente na segunda vez. Em outras palavras, o caminho percorrido na primeira te ensina lições valiosíssima, que tornam a segunda paternidade mais leve e segura.

Antonio foi um impulsionador de grandes transformações no modo como enxergamos a educação, bebendo diretamente da fonte da uma renovada agenda influenciada por Maria Montessori, Donald Winnicot, Emmi Pikler e outros educadores estudados por quem se dedica à primeiríssima infância. Tudo que líamos, tentávamos colocar em prática, mudando radicalmente algumas intuições primárias que muitos pais possuem, como, por exemplo, ajudar o bebê a se movimentar ou induzir processos cognitivos, por meio de brinquedos com músicas e parafernálias (Walter Benjamin já falava, há muito, sobre a importância de brinquedos rudimentares e a inventividade espontânea das crianças).

Durante o primeiro ano de vida do Antonio, entre 2016 e 2017, conseguimos impedir comportamentos que hoje julgamos inadequados, estimulando, muito mais, uma arquitetura propícia à autonomia e uma espécie de serenidade metodológica na observação (um dos grandes desafios dos adultos é, de fato, observar). Francisco chegou, em 2019, com pais que possuem uma outra visão sobre a primeira infância. Como a Priscila costuma dizer, hoje conseguimos enxergar as coisas de um outro lugar.

Um outro parto
Francisco nasceu quase nove da manhã em um sábado ensolarado em Perdizes, após um trabalho intenso, eu diria monumental, no nível físico e psicológico da parte de Priscila. Nasceu em casa, com parto humanizado realizado por uma equipe incrível, liderada pela obstetra Betina Abs Cruz. A Betina, segundo depoimento feito em 2013 que considero atualíssimo, "com seu jeito meigo e discreto, desafia a indústria da cesariana em São Paulo e segue ajudando muitas mulheres a terem seu parto humanizado tão sonhado". É uma das grandes impulsionadoras do movimento de parto humanizado na cidade, com milhares de partos realizados. A ideia de tê-la como obstetra foi da Priscila, após ouvir relatos positivos de muitas colegas da Casa de Aprendizagens.

Não vou entrar em detalhes do parto -- acho que o relato de parto é algo tão potente e simbólico que deve ser feito pela mãe, pois o homem é apenas suporte e não protagonista --, mas o ponto é que Francisco foi privilegiado por ter chegado em casa e não ter sofrido violências hospitalares. Não tivemos a mesma sorte com Antonio em 2016, que teve que ser transferido no final do parto domiciliar e foi vítima de tentativas de internação infundadas no Hospital Cândido Portinari (apenas para que o hospital ganhasse dinheiro do plano de saúde por procedimentos de internação).

Francisco -- ou simplesmente Chico -- chegou depois de duas horas de trabalho de parto e já caiu nos colos da mãe. Eu mesmo cortei seu cordão umbilical, assessorado por Betina. A placenta, esse incrível órgão feminino,  foi guardada em local refrigerado ao invés de simplesmente descartada. Nos últimos anos, cresceu a conscientização sobre a placenta como potente fertilizante ou como possibilidade de alimentação após o próprio parto, como fazem outros mamíferos. Meu irmão, o músico Nanan, experimentou as duas coisas no nascimento de suas filhas, Melissa e Jasmim, por iniciativa de sua esposa Drielly (que nos introduziu ao trabalho de Janet Balaskas).

Imagine a sutileza de, logo após o nascimento do seu filho, você conseguir passar um café mineiro e fazer uns pães com manteiga na chapa na sua cozinha. Tudo ficou em harmonia e, talvez por isso, Francisco tenha nascido com um semblante tão tranquilo.

Minhas primeiras impressões sobre Francisco foram de um menino muito bonito, calmo e seguro. Em uma cirurgia hospitalar, talvez nem tivesse a oportunidade de formar um juízo sobre Francisco, tamanha é a pressa de funcionários em procedimentos protocolares e realizados em ritmo industrial no Brasil. Uma primeira reflexão sobre a reinvenção da paternidade passa, também, pelo questionamento do problema crônico do Brasil com os partos cesareanos. É indissociável o debate sobre paternidade, primeiríssima infância e o modo como encaramos os partos em nossa cultura.

Não é pouco o que está em jogo. Como lembra Montessori, "rendiamoci conto che il bambino è un operaio e che il fine del suo lavoro è di produrre l'uomo. [...] il problema sociale nei riguardi dell'infanzia va considerato di ben maggiore importanza, perché il lavoro dei bambini non produce un oggetto materiale, ma crea l'umanità stessa: non una razza, una casta, un gruppo sociale, ma l'intera umanità".

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