Aproveito esse texto para compartilhar uma visão interna de como essa coalizão surgiu e por que ela se faz necessária no Brasil hoje.
Em eventos e reuniões da sociedade civil em São Paulo, chegamos a um diagnóstico: as ONGs, sozinhas, não podem correr como baratas tontas para lá e para cá. É preciso um mínimo de organização e coordenação das atividades dos ativistas de direitos digitais. Separados, seremos massacrados. Juntos, temos mais força.
Junho de 2016: Rio, São Paulo e Porto Alegre
Na primeira semana da junho, realizei uma reunião no Idec para traçar estratégias em defesa do projeto de lei de proteção de dados pessoais, construído pelo governo com a sociedade civil. Participaram diversas ONGs, centros de pesquisa e ativistas (muitas delas assinantes da Carta Aberta em Apoio ao PL 5.276/2016). Nesse encontro, chegamos à conclusão de que não bastava fazer novas campanhas sobre proteção de dados pessoais. Faltava uma ação de reação à conjuntura mais ampla.
O diagnóstico não foi feito somente na "base" da sociedade civil. Os financiadores da agenda de direitos digitais rapidamente perceberam que esse era um problema a ser resolvido. De forma ágil, a Fundação Ford convocou uma reunião com todos os seus grantees (organizações que recebem recursos, ou grants para projetos) da agenda de direitos humanos e Internet. Dessa reunião, ocorrida no Rio de Janeiro, surgiu a proposta de uma atuação em rede para denunciar os diferentes ataques à Internet ocorrendo no Brasil.
Infelizmente não participei da reunião no Rio de Janeiro, pois estava no México representando o Idec em um debate da OCDE sobre economias digitais, plataformas P2P e direitos dos consumidores. Assim que voltei, tomei conhecimento da proposta de uma ampla rede de defesa de direitos -- o que se conectava às discussões feitas no Idec, com outros ativistas, sobre uma ação mais robusta. Informalmente, estava criada a Coalizão Direitos na Rede.
Rapidamente, o núcleo duro da Coalizão (formado por membros da Actantes, Artigo 19, Barão de Itararé, Coletivo Digital, GPOPAI – USP, Instituto Bem Estar Brasil, Ibidem, Idec, Intervozes, Nupef e Proteste) se dividiu em tarefas. O primeiro objetivo era definir os dez ataques à Internet brasileira, a partir de três eixos: acesso, privacidade e liberdade de expressão.
A partir da definição dos ataques, a Coalizão assumiu duas tarefas: (i) lançar a Coalizão formalmente no Fórum da Internet em Porto Alegre e (ii) estruturar uma plataforma online para que os mais de 100 milhões de usuários de Internet tomem conhecimento desses ataques.
Internet Sob Ataque: uma campanha promissora
A Coalizão se dividiu em grupos de trabalho específicos, para lidar com retrocessos ligados a acesso à Internet, privacidade e liberdade de expressão.
Passei a colaborar com ativistas da área de comunicação para definição da campanha inaugural do coletivo, intitulada "Internet Sob Ataque". Após uma longa rodada de discussões, chegamos a uma definição de quais são os dez ataques à Internet brasileira:
1- Limite de franquia na banda larga fixa
2- Fim da universalização do acesso
3- Jardins murados na internet (zero rating/quebra de neutralidade de rede)
4- Vigilância em massa nas redes
5- Cadastro universal de usuários
6- Big Brother wi-fi (pontos de conexão coletam dados de navegação)
7 - Livre comércio de dados pessoais (ausência de lei geral e autoridade)
8- Bloqueio de sites e aplicativos
9- O lobby dos direitos autorais (aplicações e sites podem sair do ar por violação de copyright)
10- Censura política digital (exclusão de conteúdo supostamente difamatório)
No início de julho, fizemos uma nova reunião no Idec, com participação de Jules, João (Artigo 19) e Amarela (Coding Rights). Discutimos como que os ataques seriam apresentados e a importância de explicar cada um deles com uma linguagem simples. Decidimos também criar memes e stickers para tornar a comunicação menos espinhosa e mais divertida. Janaína Spode, da Casa da Cultura Digital Porto Alegre, assumiu a tarefa de preparar cartazes e adesivos para impressão na capital gaúcha.
O lançamento em Porto Alegre
O VI Fórum da Internet teve início no dia 11 de julho. De início, três elementos deram a cara do evento de 2016. Primeiro, a significativa redução da participação de membros do governo e do setor empresarial -- o que sinalizou uma possível tentativa de enfraquecimento do Comitê Gestor da Internet pelo governo Temer e parte do empresariado. Segundo, o domínio dos debates sobre franquias de dados -- uma das maiores polêmicas do país este ano. Terceiro, a participação de uma nova geração de jovens pessoas treinadas em governança da Internet, graças ao esforço ativo do CGI e do seu programa "Youth".
Os membros da Coalizão se organizaram para fazer o lançamento oficial da Campanha Internet Sob Ataque no segundo dia, por meio de uma "desconferência". No dia 12 de julho, na parte da manhã, ocupamos uma sala do centro de convenções da FIERGS para discutir as razões de criação da Coalizão, as três frentes de trabalho (acesso/privacidade/liberdade de expressão) e a importância de tornarmos a campanha menos chata e mais bem humorada, brincando com a linguagem da política na rede.
Antes mim, falaram Flavia Lefévre (Proteste), Veridiana Alimonti (Intervozes), Joana Varon (Coding Rights) e Laura Tesca (Artigo 19) -- mulheres de liderança da Coalizão.
O lançamento não teve um impacto significativo, pois ainda não tínhamos a plataforma disponível online e tampouco a campanha plenamente estruturada. O melhor a fazer -- na realidade, a única opção -- era aproveitar o encontro de pessoas interessadas em governança da Internet para sensibilizar e, quem sabe, conseguir mais membros para nossa Coalizão.
No dia seguinte, participei de um debate do filme Freenet e fiz a apresentação da Coalizão no Fórum Internacional de Software Livre, onde conheci o trabalho de ativistas gaúchos. Lá o espírito era mais anárquico e o debate ocorreu no meio do saguão livre (onde qualquer um poderia sentar, ouvir o debate, pedir a palavra e discutir os ataques à Internet). Sem surpresas, a discussão sobre franquias de dados dominou boa parte do tempo de nossa intervenção.
A defesa do CGI e o "compartilhaço" da Coalizão
Essa semana, a Coalizão realizou sua segunda ação significativa. Em resposta a uma matéria da Folha de São Paulo que especulava sobre possíveis mudanças no Comitê Gestor da Internet, a Coalizão preparou um longo texto para rebater todos os argumentos da Folha e explicar por que as empresas de telecomunicações querem minar o modelo pluriparticipativo do CGI.br.
Escrito a várias mãos, o texto foi divulgado hoje (20/07) -- um dia após a polêmica do bloqueio do Whatsapp pela terceira vez no Brasil -- juntamente com uma ação nas redes sociais para divulgação da campanha #InternetSobAtaque. Em poucas horas, o texto teve duzentos compartilhamentos e atingiu quase dez mil pessoas.
O texto da Coalizão ataca os rumores de que Temer, Kassab e as teles querem mexer na composição do Comitê Gestor -- conhecido mundialmente como exemplo de instituição de governança democrática da Internet (onde sentam juntos ONGs, governo, acadêmicos, técnicos e empresas).
Afirmamos que "uma mudança do CGI.br por decreto, sem debates e sem ampla participação democrática seria uma violência ilegítima rechaçada por toda a comunidade internacional". Defendemos, com unhas e dentes, o modelo de gestão do CGI.br, que torna difícil a captura por grandes grupos econômicos, em especial os players globais de infraestrutura.
Há luz no fim do túnel?
O cenário brasileiro é péssimo, todos nós sabemos. Existe um governo provisório criado para empresários e uma fortíssima onda conservadora no Congresso Nacional. A agenda de inclusão digital e cultura digital -- construída de forma pioneira pela equipe montada por Gilberto Gil no Ministério da Cultura e continuada pelos servidores do Ministério da Justiça do governo Dilma -- está sendo estraçalhada e abandonada.
Nossa única alternativa é a pressão popular, o trabalho estratégico em advocacy e o fortalecimento de nossas redes de ativismo, tornando as discussões "técnicas" relacionadas à Internet mais acessíveis. O trabalho da Coalizão baseia-se nessa crença, consciente de que o trabalho não será nada fácil e demandará enorme esforço coletivo e união. Isso, pelo menos, é o que eu acredito.
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