Pesquisa jurídica: direito democrático, desenvolvimento e emancipação


[ por Flávio Marques Prol, em colaboração para o e-mancipação

Um debate recente reanimou a reflexão incessante sobre o que é fazer pesquisa jurídica em Law and Development. A brevidade dos textos é inversamente proporcional à sua efetiva contribuição. Zanatta escreveu um texto provocativo invocando os acadêmicos de L&D a trabalharem “com questões normativas e procedimentais fundamentais”. Para ele, isso representaria uma mudança radical na agenda do L&D, que insiste em ignorar tais questões. Em resposta à provocação, Trubek, um dos pioneiros dos estudos de L&D, ressaltou a importância de pesquisas orientadas para uma descrição empírica das funções exercidas pelo direito nas diferentes sociedades.

Por detrás das críticas mútuas, Zanatta e Trubek compartilham um aspecto fundamental: ambos pretendem evitar abordagens elitistas na discussão sobre direito e desenvolvimento, nas quais a solução de conflitos sociais é encontrada por especialistas bem informados.  Contudo, e aqui reside a minha tentativa de contribuição, sem uma pesquisa jurídica que rearticule em outro nível ambas as perspectivas, normativa e procedimental do lado de Zanatta, e empírica e funcional pelo lado de Trubek, não há possibilidade de compreender a dinâmica própria da relação entre direito, democracia, desenvolvimento e emancipação.

Acredito que Zanatta não dá a devida importância às pesquisas empíricas quando propõe a realização de pesquisas normativas e procedimentais. A adoção de posições normativas a respeito do direito e desenvolvimento independentemente de uma pesquisa básica de qualidade que demonstre como o direito cumpre funções e é disputado empiricamente pode inclusive ser considerada a característica mais comum das dissertações e teses produzidas hoje no Brasil. Acadêmicos de direito em geral tendem a apresentar diversas “soluções” para “problemas sociais” sem sequer tentar entender o que está acontecendo com a prática jurídica. Não é à toa o diagnóstico de uma discrepância entre a produção acadêmica de alta qualidade no campo da Antropologia, Sociologia e Ciência Política em relação à produção jurídica. Nesse caso, a cura proposta por Zanatta pode ser pior que a doença, já que a convocação de mais pesquisas normativas em um campo quase completamente dominado por esse tipo de reflexão pode sepultar de vez qualquer comprometimento da pesquisa empírica em direito.

Por outro lado, o texto de Zanatta aponta para o que talvez seja uma deficiência das pesquisas de L&D hoje. Na contracorrente da produção acadêmica em direito tradicional, as pesquisas de L&D tendem a reduzir a pesquisa em direito à compreensão de suas funções empíricas. Elas não se engajam com questões normativas – ou ao menos não o fazem explicitamente. E isso ocorre com o incentivo de Trubek, como ele mesmo explicita no texto da discussão: “advogados precisam entender as funções que comunidades e movimentos sociais procuram no direito, e serem capazes de entender empiricamente o que funcionará e o que não funcionará” (grifos originais e tradução livre). Parece que Trubek realmente retira a questão normativa da agenda de pesquisa do L&D, sendo que os advogados contribuiriam principalmente com uma questão de ajuste dos instrumentos para determinados fins.

Porém, e essa é a pergunta que animou Zanatta, o que acontece no momento em que movimentos sociais disputam intensamente o sentido e as próprias funções do direito? Quando parte da sociedade diz que mesmo que algo funcione para determinado desenvolvimento, esse algo não deveria ser levado em consideração? Será que os pesquisadores de L&D não teriam nada a dizer, além de que certas reformas funcionariam, dado um certo nível de conhecimento das funções empíricas do direito, mas outras não?

A resposta apresentada por Trubek é a de que as “práticas de reforma de L&D” deveriam ser complementadas por processos que permitam rearticulação de valores, a participação de interessados no desenho dos projetos de reforma, uma minuciosa atenção a esforços de reforma em contextos semelhantes e monitoramento dos efeitos da mudança. Mas não consigo enxergar em seu texto se é o pesquisador, como quer Zanatta, ou o gestor público, que efetivará o projeto da reforma, quem deve realizar esses processos complementares. Trubek não distingue o papel do gestor público do pesquisador.

Se esse for o caso, talvez Trubek compartilhe até mesmo de certo relativismo radical na concepção de pesquisa de L&D que hoje não é evidente. Reduzida a pesquisa a uma mera descrição das funções empíricas do direito para o desenvolvimento, qual régua pode ser usada para diferenciar desenvolvimentos com os quais pesquisadores deveriam concordar ou não? Devemos esperar as práticas de reforma para saber?

Nesse contexto, talvez seja o caso de rearticular as posições aparentemente antagônicas entre normatividade, do lado de Zanatta, e funcionalidade empírica, do lado de Trubek. Uma pesquisa orientada em descrever as funções empíricas do direito em sociedade pode incorporar a perspectiva de como as funções do direito são disputadas por movimentos sociais e comunidades na esfera pública em um contexto de desenvolvimento democrático. Essa proposta talvez pudesse ser descrita como uma pesquisa sobre os conflitos sociais pela gramática do direito para a solução legítima e democrática desses conflitos. O pesquisador estaria então na posição de discutir qual tendência normativa dos conflitos é a melhor. E talvez a métrica devesse ser um critério normativo estritamente procedimental (independente de posições substantivas) que ressalte a importância da radicalização da democracia.

Talvez seja daí que possamos compreender o potencial emancipatório ou de bloqueio normativo do direito. Ou seja, com uma boa descrição empírica das funções do direito, mas que também traga para o centro do debate os conflitos sociais constitutivos que disputam a normatividade implícita da gramática do direito democrático para o desenvolvimento. No Brasil, esses conflitos são diversos: ações afirmativas, aborto, regulação da internet, casamento entre pessoas do mesmo sexo, redução da jornada de trabalho, reforma política, o papel de um banco nacional de desenvolvimento, entre tantos outros.

Esse tipo de reflexão implicaria uma ampliação significativa da agenda dos pesquisadores de L&D, com a inclusão de um momento explicitamente normativo. Mas isso não deve ser interpretado como um abandono de pesquisas empíricas sobre as funções do direito. Nem como não pertencente ao campo de desenvolvimento, a não ser que a ideia de “desenvolvimento como liberdade” seja ignorada. A controvérsia acadêmica de alto nível, tão rara entre pesquisadores do direito, que insistem em ver qualquer crítica no interior da lógica do amigo-inimigo, não deve ficar restrita a textos curtos em blogs da internet. Tomara que esse debate represente a continuação de uma produção acadêmica de alto nível, que dialogue entre si de maneira profícua.

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