Faz sentido falarmos em direito e desenvolvimento após os protestos de junho no Brasil? Ou melhor, faz sentido falarmos em law and development em tempos de crise global, "redes de indignação e esperança" e tentativas de reinvenção da democracia? Quando não há clareza sobre qual desenvolvimento se quer, qual a razão de reformas institucionais instrumentalizadas pelo direito?
Há perguntas que os acadêmicos de law and development não querem responder. Eles argumentam que há questões que não precisam ser resolvidas para que uma agenda de pesquisa aplicada em direito tenha início. Deste modo, não é preciso ter clareza sobre que concepção de development está em jogo. Basta que o pesquisador compreenda o que o direito faz em determinados contextos históricos e qual o impacto das reformas no sistema de justiça em países em processo de mudança.
Essa é a agenda defendida por David Trubek, um dos pioneiros do law and development movement na Universidade de Yale (EUA) nos anos 1960. Em 2007, em um momento de ressurgimento da agenda de "direito e desenvolvimento" (D&D) no Brasil e na Rússia, Trubek clamou pela retomada dos estudos empíricos e funcionalistas em direito. Para ele, os juristas não deveriam abandonar o desejo de mudança e o potencial emancipatório do direito. Aquele seria o momento de revigorar a esperança e "sujar as mãos" com estudos empíricos sobre reforma institucional e a criação de uma rede de acadêmicos ao redor do mundo.
De certo modo, o que Trubek fez foi legitimar o ressurgimento de um campo de pesquisa que ele ajudou a criar. Assim, tornou-se referência para novos entusiastas da pesquisa empírica em direito. Em um momento de crise econômica nos EUA e diminuição dos gastos das U.S. law schools, esse foi um movimento bem pensado: surgiram oportunidades de projetos de pesquisa em diferentes países, com financiamento privado e governamental. A Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI), por exemplo, financiou uma pesquisa sobre o "ambiente jurídico do desenvolvimento". Trubek aproveitou tal momento e, com sua reconhecida experiência em pesquisas acadêmicas, capitaneou diversos projetos no Brasil e em outros países em desenvolvimento. Com o discurso de renovação da pesquisa em law and development, novos financiamentos surgiram, garantindo o pagamento de pesquisadores e gastos para realização de conferências.
Tal discurso pode ter empolgado lideranças e policy makers dos BRICs (Brasil, Rússia, Índia e China) durante o período celebratório das economias emergentes (2007-2011) e seus projetos nacionais de desenvolvimento. Mas parece que, em 2014 -- um ano politicamente instável em grande parte do globo, após meses de revoltas e protestos em rede --, já não faz mais tanto sentido falarmos em reforma institucional, quando não sabemos que direção elas tomarão ou mesmo se o projeto reformista é desejável. Afinal, são reformas arquitetadas por quem? Para qual finalidade? Com qual legitimidade? Com qual visão de longo prazo?
Trubek não enfrenta tais questões ou tampouco reconhece que o momento exige uma orientação normativa (ao menos uma concepção de desenvolvimento democrático, evitando desenvolvimentismos autoritários e opressores). Em um texto recente, publicado nessa semana no blog Law and Development, ele elogia o programa Cross Border Legal Institutional Design da Universidade de Nagoya, no Japão. O programa é voltado à solução de problemas e desenho institucional no velho estilo do law and development: "students engage in real-world projects, meet with leading scholars and experts, travel to developing countries to do field work, and prepare concrete reform proposals". Trata-se da velha concepção de que um pequeno grupo de acadêmicos -- treinados em alguma instituição do "primeiro mundo" -- tem melhores condições de propor reformas institucionais para países em desenvolvimento do que aqueles engajados com a política nacional. Trubek celebra tal programa e defende que mais iniciativas como essa florescam: "If the field of law and development is to realize its promise, there is a need for more programs like this, better ways to share information about research and teaching, and more opportunities to bring senior people in the field and aspiring practitioners and scholars together".
Reconheço a boa fé de Trubek em propor mais programas de pesquisa empírica e o compartilhamento de informações sobre pesquisa e ensino. Mas, ao mesmo tempo, seu discurso não deixa de ser uma forma de manter sua importância no campo, fazendo com que "pesquisadores mais velhos" -- como ele -- estejam presentes em novos projetos.
Será que não é hora de respondermos as perguntas mais difíceis e articularmos alguma posição normativa de qual sociedade queremos? Será que não é hora de dar um passo atrás e questionar os propósitos das instituições? Reforma institucional para quê? O que nós queremos? O que os novos movimentos sociais -- rolezinhos, coletivos de direitos humanos, laboratórios hackers, fazedores, ativistas em geral -- indicam?
Talvez os japoneses estejam tranquilos -- o que eu, sinceramente, duvido -- e não estejam vivendo momentos intensos de transformação política e social. Mas nós estamos. E em momentos como esse, precisamos retornar a questões normativas e procedimentais fundamentais (aquilo que se quer enquanto sociedade e a forma como se pretende chegar aos objetivos concebidos democraticamente). O erro de Trubek consiste em ignorar tais questões e acreditar que não precisamos respondê-las. Os acadêmicos brasileiros precisam decidir se a agenda se sustenta em nosso novo contexto. Eu acredito que não.
Rafa,
ResponderExcluirLi seu post sobre L&D e, como vc sabe, concordo bastante contigo. Essa é uma discussão que nós temos faz algum tempo.
Isso não significa que o campo como um todo esteja fadado ao fracasso, nem que não tenha relevância (algo que vc não afirma, mas que parece ser a mensagem que fica do texto).
Tampouco acho que a saída seja nós, os juristas, "articularmos uma posição normativa sobre qual sociedade queremos". Acho que o passo seria justamente o contrário: como diferentes forças sociais disputam normativamente o direito em um contexto democrático? Quais forças sociais apontam para uma saída emancipatória? A relação entre pesquisa e emancipação seria um pouco mais complicada do que a articulação normativa prévia (realizada pela pesquisa dos juristas) e a sua aplicação prática. Essa minha observação retoma um pouco dos meus comentários sobre sua leitura do Unger na resenha que vc apresentou no mestrado. O que vc acha?
Grande abraço,
Flávio Prol
Flávio,
ResponderExcluirEu acho sua provocação instigante.
Unger é criticado justamente por colocar nas mãos dos juristas a tarefa de imaginação institucional e aprofundamento da experiência democrática. Eu concordo com essa crítica. Acho que Unger ainda acredita no lawyer como public intelectual/leader típico de uma sociedade elitista. Tem uma crítica do Cornel West que é precisa, nesse sentido. Uma leitura mais atenta do Boaventura de Sousa Santos também desemboca aí: Unger é incapaz de articular uma visão pós-colonial e verdadeiramente democrática.
Meu post de hoje pode parecer confuso, pois falo na condição de cidadão ao mesmo tempo que acadêmico de direito. Não fiz essa separação claramente, pois uso o blog como espaço em que essas vozes se confundem. O texto também é muito preliminar. Quis apenas criticar uma publicação recente do Trubek. Talvez seja o caso de retomar esse argumento -- muito incipiente -- e dizer que a “articulação normativa prévia” não é cabível somente aos pesquisadores. Não defendo isso. Quando falo que “precisamos articular uma posição normativa”, penso na sociedade como um todo. Nesse sentido, alguém poderia me criticar dizendo que não é possível mensurar o desejo da sociedade como um todo. Não entrei nesse ponto e acho ele interessantíssimo.
Que papel você concebe ao jurista ao afirmar que o passo é entender “como diferentes forças sociais disputam normativamente o direito em um contexto democrático”? Os desejos são conflitantes e diluídos em diferentes forças? Nossa missão é apenas entender como elas colidem?
Abraços,
Rafael
Rafa,
ResponderExcluirObrigado pela resposta!
"Que papel você concebe ao jurista ao afirmar que o passo é entender “como diferentes forças sociais disputam normativamente o direito em um contexto democrático”? Os desejos são conflitantes e diluídos em diferentes forças? Nossa missão é apenas entender como elas colidem?"
Essa é justamente a questão que me persegue faz tempo. Me parece que sem termos um bom diagnóstico de época sobre o que está acontecendo, quem são as forças que suportam diferentes iniciativas e modelos de estado, não seremos capazes nem mesmo de começar nossa empreitada como pesquisadores que têm alguma voz normativa relevante. Veja bem, a questão não é simples: não se trata de dizer que temos que ser simples observadores empíricos da realidade. Mas também não podemos ignorar que um normativismo descolado das lutas sociais não deve gerar bons resultados. Pode inclusive servir para legitimar um estado completamente corrupto.
Nesse sentido, acho sim que temos diversos conflitos na sociedade atual, como seus diversos posts sobre internet demonstram. Nossa missão como pesquisadores do direito é justamente demonstrar como diferentes narrativas estão fundadas em diferentes atores e interesses, e podem levar para lugares totalmente distintos. Se houver alguma força com a qual podemos nos conectar, perfeito. É da própria realidade social que retiramos as forças normativas para fundar um mundo novo, mais democrático e mais justo. Essa é minha crítica ao Unger, da forma como você o lê: a separação entre mapeamento e crítica é muito dualista e não concebe como o próprio diagnóstico deve de alguma maneira conduzir a crítica.
Gostei do texto, Zanatta!!
ResponderExcluirConcordo que falta uma posição normativa e esse também sempre foi um incômodo pra mim. Por outro lado, ela não é incompatível com a agenda de pesquisa empírica que ele busca criar (ou retomar). Mais do que isso, a tal reforma institucional, que na minha opinião é inevitavelmente política, ganha muito se for pensada a partir de estudos que "sujam as mãos"... ou não?
Zanatta, fiquei com a mesma impressão do Flávio Marques Prol. O texto tem um tom estranho sobre o movimento. Além disso, se couber aos juristas a tomada de uma decisão normativa sobre o que queremos das instituições, não estaríamos incorrendo no mesmo erro de elitizar o debate, apenas com um retoque de renovação? Se a provocação é para os juristas/cientistas sociais se articularem melhor com outros atores para entender qual sociedade queremos, aí sim.
ResponderExcluir"Dar de barato" que desenvolvimento é aumento do IDH ou do PIB (vide Rodrik e outros estudos) é simplificador demais. Essa é uma importante agenda, mas não pode ser igualmente elitista.
Quanto à posição da Flavinha, concordo inteiramente. Ainda que precisemos entender melhor o aspecto normativo do debate, na hora de implementar será muito mais fácil e/ou melhor se tivermos aprendido sujando as mãos. Ou seja, se o debate virar puramente normativo, vamos perder o pouco que aprendemos nos últimos anos.
"Trata-se da velha concepção de que um pequeno grupo de acadêmicos -- treinados em alguma instituição do 'primeiro mundo' -- tem melhores condições de propor reformas institucionais para países em desenvolvimento do que aqueles engajados com a política nacional."
ResponderExcluirEu iria além nessa crítica ao Trubek. Ele promoveu não só uma fuga de cérebros nos anos 60 no ensino jurídico brasileiro, como, ainda por cima, devolveu alguns cérebros com modelo de estudo empírico e teórico americano voltado para o Direito muito mais livre, mas com uma liberdade duvidosa, completamente a mercê do Mercado.
E isso reflete prejudicialmente em países com o social democrático ainda frágil. Países em que o Estado não é tão forte, como no Peru, por exemplo, seres intelectuais bizarros como Hermano De Soto - que consideram que a regularização mobiliária deve seguir a corrente do mercado e que tudo se ajeitará socialmente - aparecem como uma clara deturpação dessa tão "boa vontade" da teoria de Trubek.
No Brasil, o caso é diferente porque aqui, muito embora o mercado e os grandes detentores do poder econômico controlam a legislação e o Judiciário em geral (basta citar quão tendenciosa a Justiça é para ricos em detrimentos dos pobres), ainda sim, a política desenvolvimentista getuliana se faz presente, mantendo certo controle e benefícios sociais a fim de conquistar o apoio do banco e do proletário. O que traz "pacificação social". Dá-se o pão e o circo.
Assim, há o controle do mercado, mas com o consentimento estatal.
Nesse sentido, as manifestações de junho podem indicar uma crítica a este sistema brasileiro de "liberdade democrática até que o mercado diga o contrário". Mas elas não detiveram, ainda, maturidade intelectual ou política para o enfrentamento desse sistema. Interessante como os intelectuais mais de esquerda não estão conseguindo tomar frente nesse complexo momento que estamos vivendo desde junho de 2013 no Brasil. Isto porque não possuem papel de liderança, mas mais de ataque. Isto porque a Igreja da Renovação faz mais sentido para muitos pobres do que a Internacional Comunista.
E tampouco um Trubekiano consegue auxiliar nesta perrenga social em que o Brasil vive há quase 100 anos, desde a Era Vargas. Ora, a promoção de um pensamento liberal, mesmo que com boa vontade, nunca tirará do Brasil a importância que o Estado aqui tem, diferentemente dos EUA. As políticas públicas aqui são manobra de massas.
Assim, mesmo que tenham efeitos positivos, as conquistas são muito mais do próprio político em manter o povo passivo do que conquistas vindas de baixo (historicamente, batalhas são travadas desde sempre, mas a guerra nunca foi ganha pelos setores pobres. Pois ou se lincham grandes líderes populares que não nunca terão estátuas, mas sim pedras pisadas do cais. Ou nem sequer sabemos desses líderes. Ou ainda, grandes líderes se vendem).
Portanto, a lógica do Law and Development aqui, no fundo, não tem o mesmo sentido que nos EUA, país de grandes complexidades de formação histórica liberal, mas que tem uma democracia ao menos mais sincera, ou menos hipócrita que a brasileira (ainda hipócrita, mas menos). Lá, cada um é por si, lute pelo seu lugar ao sol. Ética protestante. Aqui, é aguardamos o messias e, enquanto isso, vamos comendo as migalhas que nos vão jogando democraticamente. Claro que é mais complexo que isso, mas análises como esta indicam a dificuldade da geração espontânea de Direitos sociais por aqui.
Em soma, parece que realmente não querem estes estudiosos responder a tais perguntas, mas não porque não precisamos respondê-las. Todo esse contexto histórico do ensino jurídico, da politicagem e do mercado brasileiro (conhecido por Trubek) indica que, na verdade, realmente não é interessante responder "o que nós queremos?". A resposta poderia ser muito triste. A resposta, apesar de pegar bem em países com menos influencia estatal nas massas como o Peru, aqui daria mais trabalho.