Machismo estrutural, feminismo e omissão masculina


Graças a uma pesquisa divulgada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), surgiu nos últimos dias um enorme debate sobre o machismo estrutural da sociedade brasileira. A pesquisa chocou a maioria dos cidadãos ao revelar que, para 65% dos brasileiros, a mulher que usa roupas curtas merece ser atacada. Para chegar a tal resultado assustador, os pesquisadores do Ipea entrevistaram 3.800 pessoas de diferentes regiões e segmentos sociais. Dentre os entrevistados, 66% eram mulheres - o que reforça o argumento de uma "cultura do estupro" enraizada nas pessoas, independentemente do sexo (cf. a repercussão na Época, EBC, Terra e Estadão).

As matérias relacionadas à pesquisa incitaram uma reação por parte das mulheres, especialmente as mais jovens. Teve início nas redes sociais o movimento Eu não mereço ser estuprada, organizado por Nana Queiroz. Nessa campanha, incentiva-se que homens e mulheres tirem uma foto, com ou sem roupa, com a frase do movimento. Em poucos dias, a campanha conseguiu mais de 40.000 apoiadores no Facebook -- o que ainda é pouco. Como reação, surgiram novas ofensas por parte do segmento machista da população. Alguns afirmaram que "mulher que fica em casa lavando louça não é estuprada". Outros chegaram ao extremo de afirmar que já estupraram e estuprariam de novo (onde está o setor de inteligência da polícia para identificar e indiciar tais criminosos?).

Natalia Portinari, em um texto que desmonta o argumento de que a roupa causa o estupro, afirma que a reação machista, no fim das contas, traz algo de positivo: "É ótimo desmascarar pessoas que sempre pensaram assim, mas nunca tiveram uma oportunidade de manifestar isso em um ambiente público em que pudessem ser denunciados e contestados. Afinal de contas, não devemos nos surpreender com existirem pessoas assim, já que a própria pesquisa que gerou o movimento já atestava que 65% dos entrevistados acreditava que mulheres que mostram o corpo merecem ser atacadas".

O argumento de Natalia é interessante e merece ser melhor explorado. Esse é o momento mais adequado de identificação de posturas machistas ou pró-feministas no Brasil. O debate está posto e as reações são extremas. Esse é o momento de provocação e observação, para um diagnóstico mais preciso das crenças e opiniões de homens e mulheres sobre a existência do machismo estrutural no Brasil do século XXI. A observação (desmascarar as pessoas) apenas antecede um segundo momento, de crítica e contestação.

Em especial, esse é o momento de provocar reações masculinas e mostrar de que modo nossa visão de mundo está impregnada por uma cultura machista baseada na opressão. Não há tarefa mais urgente no pensamento progressista brasileiro -- que acredita na cooperação e no uso da razão -- do que desestruturar o machismo. É preciso atacar suas bases. Essa não é uma tarefa exclusiva das mulheres, que há anos organizam coletivos e promovem discussões sobre feminismo e patriarcalismo no Brasil. Esse é um empreendimento coletivo, no qual os homens não podem se omitir.

Escrevo na condição de homem que acredita na pauta feminista por seus valores e objetivos de transformação. Não quero entrar no debate teórico sobre a possibilidade de homens serem feministas ou apenas pró-feministas -- ou seja, se a minha própria condição de homem já me coloca em uma posição que impossibilita o engajamento completo na luta feminista ou na própria compreensão do que é ser uma mulher e lutar por igualdade de gênero. O meu argumento é bastante simples e baseia-se no óbvio diagnóstico do professor Michael Flood de que os homens são minoria nos grupos de estudo de teoria feminista e nos coletivos focados em ações políticas. O que Flood tenta mostrar é que o engajamento dos homens nessas discussões provoca uma "mudança feminista" (they adopt more progressive understandings of gender, show greater support for feminism, and increase their involvement in antisexist activism). Esse cenário de feminist change é justamente o que não temos no Brasil.

Como mudar tal situação?

O primeiro passo já foi dado. Mulheres de atitude estão provocando as reações dos setores machistas no Brasil com diversas ações. Desde 2011, as marchas das vadias levaram para os grandes centros a questão da liberdade feminina e o debate sobre a "mulher estuprável" (cf. 'A luta das vadias'). Antes disso, já existiam alguns coletivos feministas no Brasil, como o Dandara, criado em 2006 na Faculdade de Direito da USP. Tais articulações já geraram resultados e é possível ver a proliferação de organizações dedicadas à pauta feminista em outras cidades do país. Tome-se como exemplo o Coletivo Maria Lacerda, criado em 2012 em Maringá, como resultado da marcha das vadias na cidade.

Tais organizações proporcionam espaços de reflexão sobre o machismo estrutural e fomentam a articulação de ações em conjunto para avançar as discussões sobre a opressão das mulheres. O segundo passo pode ser dado agora, com um debate empiricamente robusto sobre o apoio cultural à violência contra a mulher e necessidade de ações concretas de educação e mudança social. 

O desafio é enorme e são vários os fatores que impedem transformações significativas em diferentes regiões do país. Além da influência da igreja católica, há um movimento recente -- dos últimos trinta anos -- de avanço do "neopentecostalismo" e igrejas evangélicas nas camadas mais pobres da população, que consiste na maioria dos brasileiros. A influência da cultura italiana e portuguesa também importa, o que se reflete na reprodução de valores machistas pelas mães (vale lembrar: "até 1975, o homem italiano podia considerar sua esposa como um tipo de serva; o crime contra a honra somente foi abolido em 1981 e em 1996 o Supremo Tribunal estabeleceu que a violência física praticada pelo homem contra sua esposa não representa maus-tratos"). É fácil estabelecer uma conexão do panorama italiano com o brasileiro.

Precisamos unir esforços por uma sociedade mais razoável e igualitária. Os homens não podem se calar. Esse é o momento de difusão de campanhas, desmascaramento, discussões e denúncias de comportamentos opressores e inaceitáveis. Como escreveu o filósofo Stefan Zweig em 1918, anos antes de se mudar para o Brasil: "para dizer a verdade, somos todos criminosos se ficarmos calados".

2 comentários:

  1. Ótima reflexão. Acredito que, mesmo sendo triste tal "onda machista", é interessante o fato de alguns estarem mostrando a cara. Acredito que ontem - dia 31/03 - foi compartilhado um vídeo de um cara falando que pró-legalização do estupro. Por mais que seja "alucinado" uma defesa deste tipo, é pertinente porque estão emergindo os indivíduos, do universo cotidiano, que pensam assim. A metáfora é a seguinte: se deixarmos um copo sujo de terra parado, a terra irá se acumular no fundo e podemos até acreditar que aquela água é limpa; agora quando chacoalhamos e fazemos "tempestade em copo d'água", a terra volta a aparecer. Acho que isso tudo é muito válido!

    Novamente, é ótimo passar por aqui! Parabéns pela reflexão!

    ResponderExcluir
  2. PS: Hoje (04/04), várias notícias foram publicadas após o Ipea reconhecer um erro na pesquisa. 26% acreditam que a mulher "merece" ser atacada, e não 65%, como dizia a pesquisa anteriormente.

    Ver notícia da Folha.

    ResponderExcluir

Mais lidos no mês