[ por Raquel Razente Sirotti, em colaboração para o e-mancipação ]
Memória,
História e Verdade. Estas três imponentes expressões (e atenção para as letras
iniciais maiúsculas, empregadas como forma de dar um tom ainda mais solene a
seus significados) têm sido repetidas exaustivamente nos mais diversos veículos
de comunicação desde que se instalou oficialmente a Comissão Nacional da
Verdade, em maio de 2012 e, mais recentemente, com os cinquenta anos do
episódio mais fatídico da ditadura militar no Brasil: o golpe de estado que
depôs João Goulart do governo e inaugurou um regime ditatorial que duraria
vinte e um anos.
Além
da forte carga histórica e política naturalmente empregada na utilização de
tais palavras, elas geralmente acompanham um clamor pela punição dos agentes
torturadores que atuaram como instrumento de contenção da oposição ao regime,
sendo especialmente comum a demanda por uma severa e exemplar responsabilização
criminal, já que a lei 6.683/79 (vulgarmente conhecida como “lei de anistia”)
garantiu ainda durante o regime militar a impunidade de tais indivíduos.
É
neste contexto que se insere o Projeto de Lei do Senado n. 237/13 de autoria do senador
Randolfe Rodrigues (PSOL/AP), que foi recentemente aprovado na Comissão
de Direitos Humanos (CDH) do Senado e cuja principal finalidade é a
criação de mecanismos legais que permitam a punição dos agentes torturadores
anistiados.
Em síntese, o PL propõe uma espécie de derrogação da lei de anistia,
prevendo alguns casos excepcionais de inaplicabilidade da prescrição da
pretensão punitiva (instituto penal que tem como função a extinção da punibilidade
com base no período de tempo existente entre o fato criminoso e o início do
processo) e do próprio benefício da anistia. Tais casos são precisamente
aqueles dos crimes cometidos por agentes públicos, militares ou civis, contra
pessoas que de qualquer forma se opunham ao regime de governo vigente, o que
torna explícita a intenção de (re)criminalizar um grupo muito específico: o dos
torturadores. Traduzindo para termos menos técnicos, significa a manutenção da
lei - e por conseguinte do direito à anistia - para alguns crimes e pessoas, e
a retomada de possibilidades punitivas para outros crimes e outras pessoas.
De acordo com o senador, o projeto de lei
seria uma tentativa de corrigir um erro histórico, já que “importa para o País
e para toda a humanidade que os crimes contra os direitos humanos sejam
punidos, para que a impunidade não estimule a sobrevivência da cultura da
tortura e da aniquilação violenta dos adversários políticos”.
A
lei 6.683/79 prevê em seu artigo 1o
a anistia geral e irrestrita: “a todos quantos, no período compreendido entre
02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979,cometeram crimes políticos ou
conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos
suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações
vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e
Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos
com fundamento em Atos Institucionais e Complementares”, mas no artigo 2o,
estabelece um sorrateira exceção: “Excetuam-se dos benefícios da anistia os que
foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e
atentado pessoal.”
Nota-se
pelo ano da lei que, muito embora ela tenha sido promulgada em um período de relativa
“transição democrática” (prova disso é que, além da lei de anistia, a lei de segurança
nacional havia sido reformada em 1978 com vistas à “abrandar” alguns de seus
institutos), seu conteúdo permaneceu eivado de mecanismos de exceção, na medida
em que conferiu tratamentos distintos a determinados tipos de crime com vistas
à favorecer os militares e prejudicar os militantes políticos. É evidente que
os delitos excluídos do benefício da anistia no artigo 2o são
condutas típicas da Lei de Segurança Nacional (sendo o artigo 26
especialmente ilustrativo), que por sua vez foi um dispositivo legal criado com
a finalidade de reprimir a resistência e afastar eventuais ameaças ao governo
instituído.
Qualquer
semelhança com a lógica aplicada no PL 237/113 não é mera coincidência.
Um
mínimo distanciamento histórico permite perceber que o projeto de lei se vale
de um mecanismo de exceção muito semelhante àquele da lei de 1979, com a
diferença de ser protagonizado pelos atores que antes ocupavam os porões da
história oficial.
Ao promover um tratamento legal específico (e mais rigoroso)
para torturadores assim como fizeram os militares com os opositores do regime,
o projeto de Randolfe abandonou sutilmente as tão importantes categorias da
Memória, História e Verdade e sucumbiu à manipulação contingencial da
legislação, que é uma velha tática de governos ditatoriais. Esqueceu-se de que
as tentativas de reparação histórica, luta contra o esquecimento e recuperação
de lembranças, por mais necessárias e urgentes que se façam, não devem ser
dispensadas da passagem pelo crivo daquela mesma tríade evocada como seu
próprio fundamento. Esqueceu-se, por fim, de que uma reflexão que se proponha
minimamente crítica e coerente a respeito da ditadura deve buscar, em primeiro
lugar, afastar-se do paradigma de exceção que permeou o governo militar e
prezar por uma interpretação mais historicizada e menos circunstancial dos
acontecimentos.
Na minha opinião esse PL é fruto do infeliz julgamento da ADPF 153, quando o STF perdeu a oportunidade de interpretar a Lei de Anistia e "empurrou" para o Legislativo a incumbência de revisá-la. Alguns dos Ministros mencionaram em seus votos que caberia ao Legislativo trazer uma nova Lei.
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