Os Beatles e a polêmica de Caetano

Recentemente, os fãs de Beatles ficaram revoltados com uma afirmação do quase sempre polêmico Caetano Veloso. Em uma matéria sobre a origem dos rapazes de Liverpool, um jornalista da Folha de São Paulo perguntou: "Qual foi a sensação de ouvir os primeiros discos dos Beatles na década de 1960?". Caetano, após lembrar de suas próprias sensações, disparou algo assim: "Achei bonitinho. Era muito simples. Quando eu ouvi pela primeira vez, era como alguém hoje ouvir Justin Bieber". O repórter faz uma pausa, provavelmente seguida de um olhar de estranhamento. Caetano conclui: "Veja, eu gostava de Thelonious Monk" (cf. o vídeo '50 anos de Beatles').

O comentário de Caetano provocou a ira irracional dos fãs brasileiros de Lennon, McCartney, Harrison e Starr. Na página do vídeo do YouTube, há diversos comentários sobre o Chaetano, muitas delas ofensivas. A ira, entretanto, é irracional, pois a análise do músico baiano, por mais estranho que possa parecer ("como assim, comparar Beatles com Justin Bieber?"), faz todo sentido. Basta um pouco de reflexão fundamentada. Para resolver essa polêmica é importante ter em mente dois pontos fundamentais. O primeiro é que a resposta de Caetano é temporalmente contextualizada. O segundo é que os primeiros discos dos Beatles são colocados em uma perspectiva comparativa com outro gênero, o jazz, e com outro artista, Thelonious Monk.

O primeiro ponto a ser esclarecido é o aspecto temporal. Os Beatles tiveram muitas fases entre 1960 e 1970. Mas a ousada comparação de Caetano Veloso é bastante delimitada. Sua resposta refere-se ao momento em que os Beatles surgiram como fenômeno global. Esse não é o período das composições sofisticadas e psicodélicas de Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, mas sim o Beatles prematuro, pautado no blend do folk irlandês com o rock estadunidense extremamente simplório, tocado exaustivamente em pequenos clubes de Liverpool e Hamburgo. Trata-se do período em que o empreendedor Brian Epstein convence George Martin a gravar as canções da banda em Abbey Road. A ambição de Epstein era tornar os Beatles um fenômeno global. George Martin, produtor educado no tradicional conservatório londrino Guildhall School of Music and Drama, considerava as composições de Lennon e McCartney simples e cruas. Entretanto, Martin também vislumbrava um enorme potencial de crescimento e aprendizado, baseado na coragem daqueles rapazes que "vieram de baixo".

Após as gravações de 1962, os Beatles foram catapultados para a fama na Inglaterra com as canções Love Me Do e Please, Please Me. O empresário da banda investiu não somente nas gravações, mas também no aspecto visual do grupo. A estratégia era a mesma de Elvis Presley na América: vender não somente a música, mas, principalmente, a "pose" e o estilo quase-sensual de jovens rapazes de 20 anos. Buscava-se um fenômeno de massa. O resultado foi a Beatlemania no Reino Unido, disseminada nos Estados Unidos por apresentações em programas de televisão que ressaltavam não a música, mas sim a histeria adolescente (uma fórmula que aparentemente tem dado certo até hoje).



Esse é o Beatles que chega ao Brasil em 1963, através da tentativa de domínio cultural anglo-saxônico. A questão é que diante de outros gêneros musicais mais sofisticados, o "produto sonoro" parecia, de fato, uma coisa de criança. Isso fica muito claro na crítica escrita por Eric Hobsbawm em 1963 para o New Statesman, que dizia que os Beatles eram adolescentes cujo apelo não estava na música, mas sim na postura, nas roupas, nos cortes de cabelo e no som elétrico - a musique concrète para as massas. Hobsbawm, que assinava a coluna de jazz com o pseudônimo Francis Newton, somente errou ao fazer uma previsão (algo que ele se recusava a fazer enquanto historiador): que ninguém lembraria dos Beatles em 1983, vinte anos depois do sucesso global.

Por que Hobsbawm errou? Pois ao fazer a previsão, ele não considerou a hipótese de amadurecimento dos músicos dos Beatles, que foi justamente o que ocorreu. O "mega-sucesso" da banda - a primeira a fazer um show em um estádio de beisebol nos Estados Unidos, em 1965, uma ousadia técnica que definiu as bases dos espetáculos musicais de massa - também foi acompanhada do crescimento musical dos rapazes de Liverpool, presente em discos progressivamente mais complexos como Rubber Soul, Revolver e Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band - um dos discos preferidos de Hobsbawm, que posteriormente reconheceu o erro de sua previsão feita em 1963.

Caetano Veloso não fez a ousada comparação entre Beatles e Justin Bieber por desconhecimento da evolução (em termos de complexidade) das composições de Lennon, McCartney e Harrison. Ele mesmo, durante o exílio em Londres, gravou versões bem abrasileiradas de Help e Eleanor Rigby. O ponto central de seu argumento é que os Beatles eram "adolescentes patéticos" quando comparados com músicos geniais como Thelonious Monk, um pianista autodidata negro que reinventou o jazz com um novo padrão estético-sonoro. Músicos negros do underground de Nova Iorque, como Thelonious Monk, desenvolviam uma música incomparavelmente superior aos quatro acordes da música popular. A primeira onda dos Beatles provavelmente surpreendeu "ouvidos crus", mas não "ouvidos treinados" com a complexidade de algo como o jazz monkiano. Daí a fala de Caetano: veja bem, eu gostava de Thelonious Monk.



É claro que Beatles e Monk são incomparáveis. Os primeiros eram rapazes corajosos que queriam conquistar o Ocidente com guitarras e simples melodias vocais; o segundo era um gênio esquizofrênico treinado com os melhores pianistas negros de Nova Iorque. Mas, retomando a fala de Caetano, comparando-os fica fácil entender a analogia com Justin Bieber, mais um produto forjado da indústria cultural para provocar histerias em grandes estádios.

Uma vez considerado o cenário musical brasileiro em 1963 - e não somente o jazz estadunidense -, a tese de Caetano faz ainda mais sentido. Músicos brasileiros haviam criado um novo gênero musical, a bossa nova, uma mistura de samba e jazz forjada nos violões cariocas de inovadores como João Gilberto. 1963 é o ano de gravação do lendário disco Getz/Gilberto - capitaneado pelo saxofonista Stan Getz e os brasileiros João Gilberto e Antonio Carlos Jobim -, que cristalizou o sucesso da bossa nova nos Estados Unidos e na Europa.

Os Beatles, que não eram nada estúpidos, incorporaram elementos da bossa nova após tomarem contato com a popularidade da música latina nos Estados Unidos. And I Love Her, de 1964, é uma mostra clara de que os rapazes de Liverpool estavam abertos ao aprendizado e à experimentação - motivo pelo qual os Beatles são apreciados por diferentes públicos até hoje.

O século 21, de certo modo, conciliou o jazz com os Beatles. São diversos os discos de jazzistas que brincam com versões de músicas da banda inglesa, o que mostra que não há nenhum grande conflito entre os que apreciam rock e os fãs de jazz.

Difícil é acreditar que há alguma possibilidade de Justin Bieber ter algum valor na história da música (na minha concepção, Bieber é integralmente um produto da indústria e não um proletário corajoso como John Lennon que tirou proveito da indústria para ir até o topo). Entretanto, que o estilo "histérico-hormonal" forjado pela indústria cultural é o mesmo, isso é. Esse é o elemento que sustenta a polêmica tese de Caetano. Se não formos muito inflexíveis, sua analogia é válida, por mais provocativa que ela seja para aqueles que, assim como eu, também admiram os Beatles.

3 comentários:

  1. Jazz é masturbação. Eu acredito em canções, no formato popular. Na vitória do riff de guitarra sobre o solo de guitarra.

    O comentário nem foi tão polêmico assim, pra mim faz bastante sentido, com as devidas adaptações históricas e musicais, nem acho que a comparação deprecie o trabalho dos Beatles ou tenha sido feita com tal propósito. Caetano é monstruoso. Os Beatles são igualmente incríveis, ainda que assim o sejam pela referida simplicidade, que agrada meus ouvidos crus. Acontece que na internet todo mundo fica muito ríspido. Eu inclusive.

    E dizer que o Justin Bieber é hormonal sem dizer que hormônio seria esse foi um pouco sacana da sua parte (ohoe!). Um abraço, Rafa!

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  2. não tem uma lei que proíbe escrever "justin bieber" e "thelonious monk" no mesmo parágrafo? pq né?

    (oee rafa, qto tempo!)

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  3. 'melodias simples? fala sério mermão! as múscias de início de carreira são simples se comparado as posteriores mas não menos sofisticadas e atemporais! se cae não assimilou isso na época, azar o dele e pelo visto o seu tb!

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