O sangue e a luta dos índios Guarani-Kaiowá: uma análise a partir da sociologia jurídica

O caso do protesto dos índios Guarani-Kaiowá contra a violência dos fazendeiros do Mato Grosso do Sul e do Poder Judiciário é permeado de complexidades e problemas que se agravam há anos no Brasil. Tais problemas envolvem questões históricas de violência dos colonizadores ocidentais contra populações indígenas tradicionais, uma legislação de proteção ao índio criada pelo próprio "homem civilizado", procedimentos administrativos complexos de demarcação de terras pela União, disputas fundiárias entre investidores ambiciosos, e projetos desenvolvimentistas encampados pelo Estado brasileiro - que envolvem a expulsão de comunidades indígenas para instalação de usinas, fábricas e indústrias, uma vez comprovado o "interesse nacional". Entender completamente a questão envolve um estudo sério e longo, preferencialmente por uma equipe interdisciplinar, o que não pode ser feito pelo cidadão comum. Por outro lado, é preciso ir além das manchetes de jornais e campanhas de ONGs compartilhadas em redes sociais nos últimos dias. Esse texto aborda temas e problemas na relação entre Poder Judiciário e comunidades indígenas.

A carta que chamou atenção do Brasil "civilizado"
Há uma semana, circulou uma notícia nos principais veículos de comunicação acerca de uma carta-protesto que anunciava o suposto "suicídio coletivo" de uma tribo indígena, em razão de medidas judiciais que objetivavam retirar a população de suas terras (para um estudo sobre os elevados índices de suicídios entre os Guarani-Kaiowá, cf. 'The Return of the Native: a cultural and social-psychological critique os Durkheim's Suicide based on the Guarani-Kaiowá of Southwestern Brazil'). Conforme relata a jornalista Júlia Carneiro (BBC Brasil), a carta que chamou tanta atenção expõe o desespero do pequeno povoado de Pyelito Kue, após receber uma ordem de despejo da Justiça Federal no fim de setembro. Há um ano, o grupo de 170 indígenas vive acampado em terras de uma fazenda à beira do rio Hovy, no município de Iguatemi, no Mato Grosso do Sul (cf. 'Carta sobre morte coletiva de índios gera comoção e incerteza').

Eis o teor integral da carta.

Carta da comunidade Guarani-Kaiowá de Pyelito Kue/Mbarakay-Iguatemi-MS para o Governo e Justiça do Brasil

Nós (50 homens, 50 mulheres e 70 crianças) comunidades Guarani-Kaiowá originárias de tekoha Pyelito kue/Mbrakay, viemos através desta carta apresentar a nossa situação histórica e decisão definitiva diante de da ordem de despacho expressado pela Justiça Federal de Navirai-MS, conforme o processo nº 0000032-87.2012.4.03.6006, do dia 29 de setembro de 2012. Recebemos a informação de que nossa comunidade logo será atacada, violentada e expulsa da margem do rio pela própria Justiça Federal, de Navirai-MS.

Assim, fica evidente para nós, que a própria ação da Justiça Federal gera e aumenta as violências contra as nossas vidas, ignorando os nossos direitos de sobreviver à margem do rio Hovy e próximo de nosso território tradicional Pyelito Kue/Mbarakay. Entendemos claramente que esta decisão da Justiça Federal de Navirai-MS é parte da ação de genocídio e extermínio histórico ao povo indígena, nativo e autóctone do Mato Grosso do Sul, isto é, a própria ação da Justiça Federal está violentando e exterminado e as nossas vidas. Queremos deixar evidente ao Governo e Justiça Federal que por fim, já perdemos a esperança de sobreviver dignamente e sem violência em nosso território antigo, não acreditamos mais na Justiça brasileira. A quem vamos denunciar as violências praticadas contra nossas vidas? Para qual Justiça do Brasil? Se a própria Justiça Federal está gerando e alimentando violências contra nós. Nós já avaliamos a nossa situação atual e concluímos que vamos morrer todos mesmo em pouco tempo, não temos e nem teremos perspectiva de vida digna e justa tanto aqui na margem do rio quanto longe daqui. Estamos aqui acampados a 50 metros do rio Hovy onde já ocorreram quatro mortes, sendo duas por meio de suicídio e duas em decorrência de espancamento e tortura de pistoleiros das fazendas.

Moramos na margem do rio Hovy há mais de um ano e estamos sem nenhuma assistência, isolados, cercado de pistoleiros e resistimos até hoje. Comemos comida uma vez por dia. Passamos tudo isso para recuperar o nosso território antigo Pyleito Kue/Mbarakay. De fato, sabemos muito bem que no centro desse nosso território antigo estão enterrados vários os nossos avôs, avós, bisavôs e bisavós, ali estão os cemitérios de todos nossos antepassados.
Cientes desse fato histórico, nós já vamos e queremos ser mortos e enterrados junto aos nossos antepassados aqui mesmo onde estamos hoje, por isso, pedimos ao Governo e Justiça Federal para não decretar a ordem de despejo/expulsão, mas solicitamos para decretar a nossa morte coletiva e para enterrar nós todos aqui.
Pedimos, de uma vez por todas, para decretar a nossa dizimação e extinção total, além de enviar vários tratores para cavar um grande buraco para jogar e enterrar os nossos corpos. Esse é nosso pedido aos juízes federais. Já aguardamos esta decisão da Justiça Federal. Decretem a nossa morte coletiva Guarani e Kaiowá de Pyelito Kue/Mbarakay e enterrem-nos aqui. Visto que decidimos integralmente a não sairmos daqui com vida e nem mortos.
Sabemos que não temos mais chance em sobreviver dignamente aqui em nosso território antigo, já sofremos muito e estamos todos massacrados e morrendo em ritmo acelerado. Sabemos que seremos expulsos daqui da margem do rio pela Justiça, porém não vamos sair da margem do rio. Como um povo nativo e indígena histórico, decidimos meramente em sermos mortos coletivamente aqui. Não temos outra opção esta é a nossa última decisão unânime diante do despacho da Justiça Federal de Navirai-MS.
Atenciosamente, Guarani-Kaiowá de Pyelito Kue/Mbarakay

A carta causou enorme polêmica entre jornalistas e ativistas. Imediatamente surgiram notícias sobre o anúncio do "suicídio coletivo" dos índios Guarani-Kaiowá (cf. 'Grupo de 170 índios ameaça cometer suicídio coletivo em aldeia do MS' e 'Decretem nossa extinção e nos enterrem aqui', de Eliane Brum). Além de notícias, vídeos foram produzidos por estudantes (como este abaixo, da Universidade de Brasília) para amplificar a discussão sobre o caso Guarani-Kaiowá na internet.



A repercussão: ativismo e polêmicas
Diante da repercussão do suposto anúncio de suicídio, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) - organismo missionário criado em 1972, vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - interveio com uma nota de esclarecimento na terça-feira: "Os Kaiowá e Guarani falam em morte coletiva (o que é diferente de suicídio coletivo) no contexto da luta pela terra, ou seja, se a Justiça e os pistoleiros contratados pelos fazendeiros insistirem em tirá-los de suas terras tradicionais, estão dispostos a morrerem todos nela, sem jamais abandoná-las. Vivos não sairão do chão dos antepassados".

O anúncio da Cimi, entretanto, não evitou que campanhas fossem engatadas para "evitar o suicídio coletivo dos índios no Mato Grosso". A Avaaz - uma das maiores redes ativistas on-line do mundo -, mobilizou-se e iniciou uma campanha sobre o caso, criando uma petição pública com o seguinte teor: "Os índios da aldeia Guarani-Kaiowá, do Mato Grosso do Sul, pedem há vários anos a demarcação das suas terras tradicionais, hoje ocupadas por fazendeiros e guardadas por pistoleiros. Estes índios sabem que não tem chance de sobreviver longe do rio Hovy, no município de Naviraí, de onde tiram o seu sustento, e hoje estão cercados pelos pistoleiros que trabalham para os ruralistas que os expulsaram de lá. Alguns já foram sequestrados, torturados e assassinados. Desesperados, os líderes indígenas da aldeia Guarani-Kaiowá remeteram ao Conselho Indigenista Missionário (CIMI), uma carta que anuncia o SUICÍDIO COLETIVO de 170 homens, mulheres e crianças se a Justiça Federal mandar retirar o grupo da Fazenda Cambará, onde estão acampados provisoriamente às margens do rio Hovy. Precisamos pressionar a Justiça Federal para que restitua a terra aos índios Guarani-Kaiowá, impedindo que sejam despejados da margem do rio onde sempre viveram. A nossa mobilização pode ser a única chance de impedir esta tragédia e salvar a vida e a cultura desse povo". Até quinta-feira (25/10), a carta contava com mais de 32.000 "assinaturas".

No Senado Federal, o historiador e senador Rodrigo Rollemberg (PSB) realizou nesta quarta-feira (24/10) um discurso sobre o elevado índice de assassinatos de indígenas no Mato Grosso do Sul, em especial em Dourados (que segundo a vice-procuradora geral da República, Déborah Duprat, "é talvez a maior tragédia conhecida na questão indígena em todo o mundo").



Direito como instrumento de opressão e como instrumento de luta
No centro da polêmica dos índios Kaiowá está a Justiça Federal e a ordem de despejo dada por um magistrado de Naviraí-MS. A questão maior deste caso, entretanto, é que o aparato burocrático do Poder Judiciário, um dos poderes da República, está sendo operacionalizado por produtores rurais e capitalistas do agronegócios para a tutela de direitos privados patrimoniais. A decisão do magistrado é um detalhe menor. Mais importante é ampliar o foco de análise e visualizar a utilização do direito como instrumento de defesa de interesse de grupos organizados.

O Judiciário atua por provocação. A decisão do magistrado, portanto, é uma resposta a petições e movimentações processuais por parte dos fazendeiros - que ainda contam com um mecanismo de justiça privado e informal, com utilização de capangas, pistoleiros e capatazes para intimidação e violência contra aqueles que desafiam a ordem normativa imposta pelos detentores do poder. Portanto, os fazendeiros de Mato Grosso do Sul atuam em duas frentes: (i) pelos veículos institucionais (Judiciário) e (ii) pelo uso explícito da força e violência direta. 

A atuação dos fazendeiros evidencia a tese do último livro do historiador econômico Douglass North, Violence and Social Orders (2009). A situação revela a existência de suas lógicas distintas de ordem social (caracterizadas por North pela forma como a sociedade cria instituições que apoiam a existência de formas específicas de organização humana, a forma como a sociedade limita ou abre acesso a essas organizações, e através dos incentivos criados pelos padrões de organização): há uma ordem de acesso limitada (estado natural) e uma ordem de acesso aberta. Segundo o argumento de North, sociedades de ordem de acesso aberta são caracterizadas pelo desenvolvimento político e econômico, sociedade civil rica e vibrante com muitas organizações, governo descentralizado, difundidas relações sociais impessoais, incluindo o Estado de Direito, direitos patrimoniais assegurados, justeza e igualdade, com tratamento igual a todos. As de ordem de acesso limitada são caracterizadas por economias vulneráveis a choques, políticas sem o generalizado consenso dos governados, número pequeno de organizações, governo pequeno e centralizado, e a predominância de relações sociais organizadas entre linhas pessoas, incluindo privilégios, hierarquias sociais, leis que sei aplicadas de forma desigual, direitos de propriedade inseguros e um difuso sentimento de que os indivíduos não são iguais.

Sociedades modernas de acesso aberto limitam a violência através das instituições ("regras do jogo", que constrangem o comportamento humano). Instituições formais - leis, normas positivadas - controlam a violência somente com a presença de uma organização capaz de executar as regras de forma impessoal. No Mato Grosso, há um grave problema. Oficiais do Judiciário - delegados, promotores, juízes - que decidem ou agem de forma contrária aos interesses dos grandes latifundiários são ameaçados de morte ou cooptados por determinadas organizações (grupos de atores sociais que agem de forma coordenada, com interesses comuns). As elites possuem suas próprias regras e acordos tácitos de cooperação. Para resolução dos conflitos com grupos externos (pessoas que não pertencem às elites), geralmente não recorrem às estruturas formais (Judiciário), mas sim à violência. Nesses casos, evidencia-se claramente uma ordem de acesso limitada no interior do Brasil - país que se autoproclama como Estado Democrático de Direito.

Obviamente, a tipologia de Douglass North tem fins heurísticos, inspirada na tradição weberiana de construção de tipos-ideais. O caso dos índios Guarani-Kaiowá envolve formas institucionais formais e informais de violência, mesclando elementos de ordens de acesso limitadas e abertas. Neste ponto, é interessante observar que a pobreza organizacional das tribos indígenas é um fator prejudicial para proteção de seus interesses, considerando que as batalhas são travadas nos tribunais, mediante procedimentos judiciais.

A sociologia jurídica ajuda a entender melhor o presente cenário. Joaquim Falcão, ao estudar os movimentos sociais de lutas habitacionais em Recife, percebeu que a assessoria jurídica era fundamental para instrumentalizar a luta de populações oprimidas, tornando o direito um poderoso instrumento de contestação. Não bastava a ocupação da propriedade e reivindicação do direito à habitação. Havia também, em Recife, um competente trabalho de advogados e estudantes para apoiar as transgressões coletivizadas, em defesa da aplicação de normas constitucionais (direito à moradia e respeito à função social da propriedade privada).

Em linha semelhante é desenvolvido o raciocínio do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos. Ele propõe o conceito de "legalidade cosmopolita subalterna", ou seja, a utilização do direito pelos movimentos sociais do mundo todo para contestações contra desigualdades e regimes exploratórios sustentados por normas jurídicas. No caso dos indígenas Guarani-Kaiowá, poderíamos nos perguntar: de que forma o direito poderia ser utilizado para defesa dos interesses deste grupo marginalizado?

A situação é muito delicada. As lutas dos movimentos sociais de direito à moradia de São Paulo e Recife contam com o apoio dedicado de estudantes, sociólogos, antropólogos e juristas formados em instituições como Universidade de São Paulo e Universidade Federal de Pernambuco. Os grandes centros urbanos conseguem unir marginalizados e detentores do conhecimento. O problema é quando você pensa em comunidades indígenas que vivem nas margens dos rios do Mato Grosso. A capital fica distante. Não há o rico contato entre estudantes, profissionais liberais e grupos marginalizados. Fica, assim, muito mais difícil a tarefa de instrumentalizar "transgressões coletivas" amparadas juridicamente ou efetivar a "legalidade subalterna".

Contrarrevolução jurídica e o papel do STF
O ativismo de movimentos sociais em defesa dos direitos de membros de comunidades indígenas pode gerar um movimento reverso à expansão garantista através do próprio Poder Judiciário. Essa reação pode indiciar a emergência de uma "contrarrevolução jurídica". Tal ideia é proposta por Sousa Santos: "Entendo por contrarrevolução jurídica uma forma de ativismo judiciário conservador que consiste em neutralizar, por via judicial, muito dos avanços democráticos que foram conquistados ao longo das duas últimas décadas pela via política, quase sempre a partir de novas constituições. (...) A contrarrevolução jurídica não abrange todo o sistema judicial, sendo contrariada, quando possível, por setores progressistas. Não é um movimento concertado, muito menos uma conspiração. É um entendimento tácito entre elites político-econômicas e judiciais, criado a partir de decisões judiciais concretas, em que as primeiras entendem ler sinais de que as segundas encorajam a ser mais ativas, sinais que, por sua vez, colocam os setores judiciais progressistas em posição defensiva. (...) Exige uma efetiva convergência entre elites e não é claro que esteja plenamente consolidada no Brasil. Há apenas sinais, nalguns casos perturbadores, noutros revelam que está tudo em aberto. Nesta disjunção entre revolução e contrarrevolução, especial cuidado deve recair sobre as reações do sistema ao reconhecimento dos direitos territoriais das comunidades indígenas e quilombolas, bem como aos casos frequentes de criminalização dos movimentos sociais" (cf. 'Para Uma Revolução Democrática da Justiça', 2011).

A judicialização da política e o ativismo judicial inevitavelmente consagram um papel maior ao Supremo Tribunal Federal, que inúmeras vezes se manifestou sobre conflitos envolvendo comunidades indígenas, realizando a interpretação da Constituição. Ao passo que pode haver uma contrarrevolução jurídica nos tribunais, o Supremo se torna o órgão de cúpula que decide o que é constitucional e o que não é. É função do STF interpretar o Capítulo VIII (Dos Índios) do Título VIII (Da Ordem Social) e seus dois artigos, pouco estudados das Faculdades de Direito (afinal, quantos estudantes de direito são de origem indígena?):

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. § 1º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. § 2º - As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. § 3º - O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei. § 4º - As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis. § 5º - É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, "ad referendum" do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco. § 6º - São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé. § 7º - Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, § 3º e § 4º. 
Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.

O tema concernente aos direitos sobre as terras indígenas transformou-se, como defende o progressista José Afonso da Silva, no ponto central dos direitos constitucionais dos índios, eis que para eles a terra tem um valor de sobrevivência física e cultural. "Não se ampararão os direitos dos índios, se não lhes assegurar a posse permanente e a riqueza das terras por eles tradicionalmente ocupadas, pois a disputa dessas terras e de suas riquezas constitui o núcleo da questão indígena hoje no Brasil" (cf. 'Curso de Direito Constitucional Positivo', 1996).

Dalmo de Abreu Dallari, na obra O que são os Direitos das Pessoas (1984), adverte para a tentativa de compra de terras ocupadas por índios e a necessidade de proteção por parte do Estado: "Ninguém pode tornar-se dono de uma terra ocupada por índios. Todas as terras ocupadas por indígenas pertencem à União, mas os índios têm direito à posse permanente dessas terras e a usar e consumir com exclusividade todas as riquezas que existem nelas. Quem tiver adquirido, a qualquer tempo, mediante compra, herança, doação ou algum outro título, uma terra ocupada por índios, na realidade não adquiriu coisa alguma, pois estas terras pertencem à União e não podem ser negociadas. Os títulos antigos perderam todo o valor, dispondo a Constituição que os antigos titulares ou seus sucessores não terão direito a qualquer indenização".

Os argumentos de Silva e Dallari foram reunidos pelo ministro Celso de Mello no julgamento do Recurso Extraordinário nº. 183.188-0/MS, em dezembro de 1996 (Comunidade Indígena de Jaguapiré vs. Octávio Junqueira de Moraes). Nessa decisão foi declarada a finalidade institucional da questão das terras indígenas: "As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios incluem-se no domínio constitucional da União Federal. As áreas por elas abrangidas são inalienáveis, indisponíveis e insuscetíveis de prescrição aquisitiva. A Carta Política, com a outorga dominial atribuída à União, criou, para esta, uma propriedade vinculada ou reservada, que se destina a garantir aos índios o exercício dos direitos que lhes foram reconhecidos constitucionalmente, visando, desse modo, a proporcionar às comunidades indígenas bem-estar e condições necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. A disputa pela posse permanente e pela riqueza das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios constitui o núcleo fundamental da questão indígenas no Brasil. A competência jurisdicional para dirimir controvérsias pertinentes aos direitos indígenas pertence à Justiça Federal comum".

Demarcação de terras indígenas e direitos originários: novamente, o Supremo
A demarcação de terras indígenas - que é de competência da União (art. 231, CF) - tornou-se um assunto constante na pauta do Supremo Tribunal Federal durante o governo Lula. A corte enfrentou casos diversos nos últimos anos, envolvendo matérias administrativas e constitucionais, como por exemplo, (i) a validade da Portaria 1.128/2003 do Ministério da Justiça que aumentou a área de demarcação de terras indígenas, fazendo-a incidir sobre propriedades particulares e sobre reserva ambiental do Estado (cf. Reclação 3.205-1/SC), (ii) a validade da homologação pelo Presidente da República de demarcação administrativa promovida pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI) da Área Indígena Jacaré de São Domingos - Paraíba (cf. Mandado de Segurança 21.896-7/PB), e (iii) inadmissibilidade de recurso extraordinário que objetiva rediscutir decisão do Superior Tribunal de Justiça que nega provimento a recurso em ação declaratória de nulidade de processo administrativo, em face da FUNAI e da união, relativo à identificação e delimitação da área indígena Tremembé - Ceará (cf. Agravo Regimental no Agravo de Instrumento 529.105/CE).

Os casos mencionados acima, entretanto, não se comparam com o caso da Reserva Raposa Serra do Sol, no norte de Roraima. Trata-se de um julgamento histórico do Supremo Tribunal Federal, que ensejou acirrados debates sobre a validade da demarcação das terras indígenas e a retirada de produtores e agricultores de áreas demarcadas pela FUNAI.

O caso - processualmente enorme (51 volumes que ensejaram mais de 600 páginas de votos no STF) - foi movido por Augusto Affonso Botelho Neto e Francisco Mozarildo Cavalcanti, mas contou com a participação do Procurador-Geral do Estado de Roraima e a União, assistidas pelas comunidades indígenas Socó, Barro, Maturuca, Jawari, Tamanduá, Jacarezinho e Manalai. A decisão, relatada pelo ministro Carlos Ayres Britto, declarou a constitucionalidade da demarcação contínua da Terra Indígena Raposa Serra do Sol e afirmou a constitucionalidade do procedimento administrativo-demarcatório, sob as seguintes salvaguardas institucionais: (i) o usufruto das riquezas do solo, dos rios e dos lagos existentes nas terras indígenas não se sobrepõe ao relevante interesse público da União, tal como ressaído da Constituiçaõ e na forma da lei complementar; (ii) o usufruto dos índios não abrange a exploração mercantil dos recursos hídricos e dos potenciais energéticos, que sempre dependerá (tal exploração) de autoriação do Congresso Nacional; (iii) o usufruto dos índios não alcança a pesquisa e a lavra das riquezas minerais, que sempre dependerão de autorização do Congresso Nacional, assegurando-se-lhes a participação nos resultados da lavra, tudo de acordo com a Constituição e a lei; (iv) o usufruto dos índios não compreende a garimpagem nem a faiscação, devendo-se obter, se for o caso, a permissão de lavra garimpeira; (v) o usufruto dos índios não se sobrepõe aos interesses da política da defesa nacional; a instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, a expansão estratégica da malha viária, a expliração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho igualmente estratégico, a critério dos órgãos competentes (Ministério da Defesa, ouvido o Conselho de Defesa Nacional), serão implementados independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas, assim como à Fundação Nacional do Índio (FUNAI); (vi) a atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal na área indígena, no âmbito das respectivas atribuições, fica assegura e se dará independentemente de consulta às respectivas comunidades indígenas, ou à FUNAI; (vii) o usufruto dos índios não impede a instalação, pela União Federal, de equipamentos públicos, redes de comunicação, estradas e vias de transporte, além de construções necessárias à prestação de serviços públicos pela União, especialmente os de saúde e educação; (viii) o usufruto dos índios na área afetada por unidades de conservação fica sob a responsabilidade do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, respeitada a legislação ambiental; (ix) o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade responderá pela administração da área da unidade de conservação também afetada pela terra indígena, com a participação das comunidades aborígenes, que deverão ser ouvidas, levando-se em conta os usos, tradições e costumes deles, indígenas, que poderão contar com a consultoria da FUNAI, observada a legislação ambiental; (x) o trânsito dos visitantes e pesquisadores não-índios é de ser admitido na área afetada à unidade de conservação, nos horários e condições estipulados pelo Instituto Chico Mendes da Biodiversidade; (xi) admitem-se o ingresso, o trãnsito e a permanência de não-índios em terras indígenas não ecologicamente afetadas, observados, porém, as condições estabelecidas pela FUNAI e os fundamentos desta decisão; (xii) o ingresso, o trânsito e a permanência de não-índios, respeito o disposto, não podem ser objeto de cobrança de nenhuma tarifa ou quantia de qualquer natureza por parte das comunidades indígenas; (xiii) a cobrança de qualquer tarifa ou quantia também não é exigível pela utilização das estradas, equipamentos públicos, linhas de transmissão de energia ou outros equipamentos e instalações públicas, ainda que não expressamente excluídos da homologação; (xiv) as terras indígenas não poderão ser objeto de arrendamento ou de qualquer ato ou negócio jurídico que atente contra o pleno exercício do usufruto e da posse direta por comunidade indígena ou pelos índios; (xv) é vedada, nas terras indígenas, a qualquer pessoa estranha às etnias nativas a prática de caça, pesca ou coleta de frutos, asim como de atividade agropecuária ou extrativista; (xvi) as terras sob ocupação e posse das comunidades indígenas, o usufruto exclusivo das riqueas naturais e das utilidades existentes nas terras ocupadas, observado o disposto nos arts. 49, XVI, e 231, parágrafo 3º, da Constituição, bem como a renda indígena, gozam de imunidade tributária, não cabendo a cobrança de quaisquer impostos, taxas ou contribuições sobre uns ou outros; (xvii) é vedada a ampliação da terra indígena já demarcada; (xviii) os direitos dos índios sobre as suas terras são imprescritíveis, reputando-se todas elas como inalienáveis e indisponíveis; (xix) é assegurada a participação dos entes federados no procedimento administrativo de demarcação das terras indígenas, situadas em seus territórios, observadas a fase em que se encontrar o procedimento.


A decisão (que pode ser lida aqui), foi celebrada no meio jornalístico. A Folha de São Paulo produziu um editorial a respeito: "O Supremo Tribunal Federal fez história esta semana ao concluir, depois de sete meses, o julgamento da ação movida por dois senadores de Roraima contra o decreto de 2005 do presidente Lula que homologou a reserva indígena Raposa Serra do Sol, em terra contínua, e determinou a saída dos não índios dessa área de 1,7 milhão de hectares, na fronteira do estado com a Guiana e a Venezuela. A reserva, onde vivem cerca de 19 mil indígenas de cinco etnias, havia sido demarcada em 1998, no governo Fernando Henrique. Desde então, agravaram-se dramaticamente conflitos de décadas entre os aborígines e os agricultores do Sul que ali se haviam instalado, atraídos por incentivos fiscais, formando nessas terras públicas um arquipélago de arrozais. Outros plantadores se agregaram a eles mesmo depois da demarcação, apostando que a sua presença na reserva criaria um fato consumado. Perderam. A questão estava tecnicamente liquidada desde dezembro, quando o julgamento no Supremo foi interrompido por um pedido de vista do ministro Marco Aurélio, em razão do voto de oito dos seus colegas pela constitucionalidade da configuração contínua da reserva, com a consequente retirada compulsória dos arrozeiros que reivindicavam para si uma área de 100 mil hectares. Dos três ministros que faltavam votar, apenas Marco Aurélio se manifestou contra a reserva, com o que o resultado final foi de 10 a 1 em apoio à posição do governo".

Há, ainda, outros casos extremamente emblemáticos, como o julgamento, em maio de 2012, da Ação Civil Originária (ACO) 312, que pedia a nulidade de títulos de propriedade de terras concedidos pelo governo da Bahia a fazendeiros e agricultores na área da Reserva Indígena Caramuru-Catarina Paraguassu, localizada ao sul do estado. A ação foi julgada parcialmente procedente e contou com a intensa participação  de lideranças indígenas nas sessões plenárias. O caso entrou para o rol dos "grandes julgamentos do STF".



O que está por vir?
A jurisprudência constitucional recente parece consolidar direitos originários às populações indígenas, garantindo o uso de terras demarcadas pela União, conforme determina a Constituição Federal. O precedente do caso Raposo Serra, entretanto, permite a livre intromissão do Estado para execução de projetos ligados a questões energéticas e extração de fontes primárias para o setor industrial. Aqui surge uma questão pouco explorada pelos juristas: quem disse que a opressão vem somente dos latifundiários e fazendeiros? O interesse econômico, embasado em projetos desenvolvimentistas, pode fazer com que o Estado lese direitos indígenas, aparentemente bem amparados hoje.

Um outro ponto polêmico, ainda não resolvido, é a forma como lidar com invasões de propriedades privadas em casos nos quais os indígenas alegam a posse originária e ainda não há demarcação por parte da União. É o caso da tribo Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul, que se tornou famosa pela ameaça de "suicídio coletivo" em caso de reintegração de posse forçada pelo aparato policial. Nessa situação, como o Judiciário deve se posicionar? É função do Judiciário declarar que determinada área rural deve ser usufruída por indígenas, em razão de sua tradicional ocupação? Ou, no sentido contrário, o Judiciário tem condições de avaliar se a propriedade privada é legítima, sem estudos antropológicos acerca da relação vital dos índios com a terra?

Essas são algumas questões que devem ser enfrentadas. A discussão, na realidade, vai muito além do que se vê.

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