A pesquisa empírica em direito felizmente tem ganhado força no país. Algumas instituições já começaram a levar a sério o levantamento e análise de dados sobre o funcionamento da justiça, superando o modelo de dissertação dogmático, pautado numa "visão parecerista" de ciência jurídica (refiro-me a crítica de Marcos Nobre sobre a pesquisa em direito). De fato, a sociedade precisa de mais números e reflexões sobre a causa da morosidade do judiciário do que trabalhos acadêmicos dogmáticos que mais são exibições teóricas narcisísticas.
Exemplo interessante de pesquisa empírica é o relatório "Custo Unitário do Processo de Execução Fiscal na Justiça Federal", elaborado pela Diretoria de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia (Diest) do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em parceria com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O estudo aceitou o desafio de estimar o custo médio para a Justiça brasileira de um tipo específico de processo: a execução fiscal que tramita nas varas da Justiça Federal e responde por 34,6% da carga processual deste ramo do Judiciário (CNJ, 2010).
O resultado do trabalho de campo dos pesquisadores Bernardo Medeiros (Ipea) e Paulo Eduardo Silva (FDRP/USP) - os quais tive oportunidade de conhecer e conversar em Ribeirão Preto num evento da Universidade de São Paulo - desvenda a realidade do funcionamento da justiça federal.
Como escreveu Joaquim Falcão após a leitura do relatório, "ao contrário do que se esperava, estudo do IPEA sobre 'O custo unitário do processo de execução fiscal na Justiça Federal' demonstra que as Varas de Execuções Fiscais da Justiça Federal não atuam prioritariamente para cobrar impostos de contribuintes eventualmente faltosos. Nem vice versa. Não atuam para defender os contribuintes do fisco federal quando este extrapola, cobra o indevido. As Varas Federais de Execução Fiscais existem sobretudo para cobrar as anuidades das categorias profissionais, como contadores, economistas, arquitetos, médicos, administradores, etc., que os respectivos conselhos consideram devidas e não pagas. A existência destes polêmicos conselhos deveria ser financiada, não pelo Estado, mas pelos próprios profissionais. Agora, o país se dá conta que é financiada pelo Estado também".
Pois é isso mesmo. Segundo o estudo, a execução fiscal na Justiça Federal brasileira é proposta tanto pela União (59%) como pelos conselhos de fiscalização das profissões liberais (36,4%); contra pessoas jurídicas (60,5%) e também físicas (39,5%); para cobrança de taxas de fiscalização, mensalidades e anuidades (37,3%), impostos federais (27,1%) e contribuições sociais federais (25,3%). Ou seja, em cada cem casos que chegam às Varas Federais, 37 não dizem respeito à disputa de recursos fiscais, referentes aos interesses da União em somente 59,2% dos casos, mas à cobrança de anuidades de conselhos de profissionais liberais. E quem paga os custos da Justiça – do juiz, do escrivão, do oficial de justiça, do diário oficial, da tecnologia da informação, etc. – é o orçamento do Poder Judiciário. Inevitável discordar de Falcão: "os conselhos regionais acabaram por terceirizar para a justiça o custo da cobrança de suas anuidades. É mais barato para os conselhos o Judiciário cobrar, do que eles próprios. Pois assim quem tem o custo de encontrar e notificar o eventual profissional devedor é a Justiça".
O estudo também aponta para uma irracionalidade: o valor médio das execuções dos conselhos (R$ 1.540,74) é muito inferior ao custo médio da cobrança fiscal federal (R$ 4.685,39). Tendo isso em mente, o juiz e doutor em direito Marcelo Martins propõe uma solução baseando-se na economicidade: "as execuções fiscais aforadas pelos conselhos de fiscalização que busquem valores inferiores ao custo médio de cobrança (R$ 4.685,39) devem ser, de plano, remetidas ao arquivo (por ofensa ao princípio constitucional da economicidade), lá devendo permanecer até que o montante da dívida supere o ônus esperado para o respectivo processamento. Conforme visto, há precedente do Superior Tribunal de Justiça nessa linha, decisão que inclusive tomou postura mais rigorosa ao determinar o arquivamento de execução fiscal com valor inferior a R$ 10.000,00. Interpretação contrária, além de agredir a economicidade, não se coaduna com a razoabilidade, parâmetro que, indiscutivelmente, deve inspirar todas as ações e políticas estatais". Seu raciocínio é correto: o Estado perde muito dinheiro com pequenas execuções fiscais.
Os números são claros e iluminadores, pois apontam para um fenômeno não desejável: a justiça utiliza dinheiro do contribuinte (recursos arrecadados de toda a sociedade) para manter um aparato executório ineficiente e que atende aos interesses de determinados grupos corporativos (profissionais liberais).
Algo precisa mudar. Parafraseando Joaquim Falcão, desobstruir a justiça - se é que esse é um dos objetivos do país - e reduzir seus custos implica em rever este uso patológico do Estado (dos juízes e da justiça) por tais conselhos.
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