Bentham (1748-1832) é considerado um dos primeiros juristas a estudar o homem econômico, sendo reconhecido como uma das figuras mais importantes da história intelectual ocidental, apesar de ter recebido menos atenção que John Locke, Thomas Hobbes, Adam Smith e John Stuart Mill e por ter sido alvo de críticas de Karl Marx e Michel Foucault[1].
Não obstante o aparente demérito, Bentham foi um dos grandes juristas dedicados à filosofia e à construção de uma teoria geral do direito, ainda muito influente nas Universidades inglesas e norte-americanas, como constata Ronald Dworkin[2]. Em sua vida profissional, Bentham desistiu da prática advocatícia por se sentir repelido pela natureza do direito inglês, a qual o pensador inglês via como “uma intratável e desordenada acumulação de precedentes e práticas, atirada através de técnicas e ficções incompreensíveis para todos, excetos os juristas profissionais”[3]. A partir de 1770, influenciado pelas leituras de Helvécios e Beccaria, dedicou-se ao estudo da legislação, tendo como objeto de análise, ao contrário de William Blackstone, o direito deontológico[4] utilitarista (como deveria ser), e não o ontológico (como ele era).
Em sua obra An Introduction to the Principles of Moral and Legislation, publicada pela primeira vez em 1786, Jeremy Bentham defende a tese de que os princípios da moral e da legislação são construídos a partir de considerações a respeito do indivíduo, e não da sociedade. Esta última, aliás, nada mais é do que a soma dos indivíduos que a integram, ou seja, um corpo fictício. Analisando-se o indivíduo, é possível afirmar que as ações humanas são guiadas pelos sentimentos de prazer e dor. Bentham ressalta que estes são os dois senhores soberanos das ações e do pensamento do homem:
A natureza colocou o gênero humano sob o domínio de dois senhores soberanos: a dor e o prazer. Somente a eles compete apontar o que na realidade faremos. Ao trono desses dois senhores está vinculada a norma que distingue o que é certo do que é errado, e por outra, a cadeia das causas e dos efeitos.[5]
Nesse sentido, a grande premissa do pensamento jusfilosófico de Jeremy Bentham é de que os seres humanos agem como maximizadores racionais de suas satisfações em todas as esferas da vida. Neste viés, o utilitarismo, ou princípio da utilidade, é aquele que aprova ou desaprova qualquer ação, segundo a tendência que tem a aumentar ou diminuir a felicidade da pessoa cujo interesse está em jogo. Assim, uma ação estará em conformidade com o princípio da utilidade, quando a tendência que ela tem para aumentar a felicidade for maior do que qualquer tendência que tenha a diminuí-la.
Bentham propunha que o princípio da utilidade (prazer/dor; felicidade/tristeza) deveria ser uma norteador não só para as ações dos indivíduos, mas do próprio Estado, no tocante à nomogênese jurídica. Deste modo, entendendo os interesses da comunidade como as somas dos interesses de seus diversos membros, caberia aos governantes e legisladores propor leis e políticas públicas no sentido de gerar o máximo de felicidade para todos.
O filósofo John Rawls, um dos maiores críticos do utilitarismo e responsável pelo desenvolvimento da teoria da justiça como equidade, identifica que a ideia principal desta corrente é de que “a sociedade está ordenada de forma correta e, portanto, justa, quando suas instituições mais importantes estão planejadas de modo a conseguir o maior saldo líquido de satisfação obtido a partir da soma das participações individuais de todos os seus membros”[6].
Mas qual a consequência do utilitarismo benhtamiano para a análise econômica do direito? A grande herança deixada por Bentham é a fundamentação filosófica e moral que legitima o cálculo individualista (maior satisfação) para a obtenção de justiça através das instituições: se os homens são maximizadores racionais de suas satisfações pelo viés individual, com base no contraste entre prazer e dor, caberia ao Estado - ao Legislativo e, em última instância, ao Judiciário - atuar com o escopo de maximizar a riqueza na sociedade, garantindo maior felicidade para um maior número de pessoas (the greatest happiness for the greatest number), e consequentemente, promovendo o bem-estar social.
Ao analisar o conceito de justiça na perspectiva utilitarista, John Rawls critica um ponto fundamental desta teoria: o utilitarismo não leva a sério as diferenças entre as pessoas, elemento essencial para o desenvolvimento de sua teoria de justiça distributiva. Assim aduz Rawls:
Nessa concepção da sociedade os indivíduos isolados são vistos como um número correspondente de linhas ao longo das quais direitos e deveres devem ser atribuídos e os parcos meios de satisfação distribuídos de acordo com certas regras, de modo a permitir o preenchimento máximo de carências. A natureza da decisão tomada pelo legislador ideal não é, portanto, substancialmente diferente da de um empreendedor que decide como maximizar seus lucros por meio da produção desta ou daquela mercadoria, ou da de um consumidor que decide como maximizar sua satisfação mediante a compra desta ou daquele conjunto de bens. Em cada um desses casos há uma única pessoa cujo sistema de desejos determina a melhor distribuição de meios limitados. A decisão correta é essencialmente uma questão de administração eficiente. Essa visão da cooperação social é a conseqüência de se estender à sociedade o princípio da escolha para um único ser humano, e depois, fazer a extensão funcionar, juntando todas as pessoas numa só através dos atos criativos do observador solidário e imparcial. O utilitarismo não a sério a diferença entre as pessoas.[7]
Noutro aspecto, o problema da utilização da teoria utilitarista benthamiana é a vagueza do conceito de utilidade (ou amplitude semântica) e a ausência de critérios de mensurabilidade de felicidade. Como aponta o pesquisador português Nuno Garoupa, o conceito econômico de utilidade é bastante abrangente, não havendo, no utilitarismo clássico, uma medida exata de utilidade individual:
O bem-estar social mede-se pela agregação do bem-estar dos indivíduos. Também aqui não há uma medida única de agregação, sendo o utilitarismo puro (a soma simples e não ponderada da utilidade individual) apenas uma possibilidade, talvez a mais habitual e não menos isenta de polémica. Outra medida possível é aquela que se designa por rawlsiano e consiste na preponderância absoluta dos indivíduos com menor utilidade na função de bem-estar social.[8]
No tocante aos estudos e teorias sobre a legislação, Ronald Dworkin afirma que Bentham é o “fundador da forma inglesa de positivismo jurídico” em razão da compreensão do ponto fundamental e verdadeiro valor da legalidade. Constata Dworkin que:
Sua concepção da virtude da legalidade não estava baseada na exatidão, mas na eficiência. A moralidade política, pensava ele, encontra-se no bem maior para o maior número, e a melhor maneira de assegurar que isso aconteça não é por meio das diferentes decisões coercitivas ou políticas tomadas por diferentes autoridades com base em seus julgamentos imediatos e divergentes, mas sim por meio de esquemas políticos detalhados cujas conseqüências complexas podem ser objeto de um cuidadoso estudo preliminar, e que podem ser formulados detalhadamente, de preferência em complexos códigos jurídicos, e aplicados ao pé da letra.[9]
Bentham pensava, portanto, que um complexo sistema de normas estabelecidas pelos detentores do poder e da legalidade seria a forma mais eficiente de instrumentalizar um sistema capaz de garantir a maximização da riqueza e do bem-estar[10] dos homens.
Esta concepção utilitarista do ordenamento jurídico, fundada em princípios modernos individualistas, além de influenciar alguns economistas como David Ricardo[11], serviu de pressuposto moral para a estruturação lógico-racional das teorias jurídico-econômicas da Escola de Chicago, como constata Carlos Santiago Niño[12]. Neste sentido, compreender o utilitarismo benthamiano é um pressuposto para a análise da teoria da eficiência da law and economics.
É possível observar elementos centrais do pensamento utilitarismo benthamiano na análise econômica do direito (law and economics), corrente acadêmica norte-americana que tem como Richard Posner um dos seus principais expoentes e que será analisada num momento posterior.
É a partir de Bentham que se pode compreender de que forma Richard Posner substitui o conceito de maximização das satisfações individuais (utilitarismo na forma clássica) pelo conceito de maximização da riqueza (eficientismo econômico) como critério de decidibilidade e avaliação do próprio sistema Judiciário.
[1] John Dinwiddy aponta que um dos motivos de Jeremy Bentham ter sido negligenciado e duramente criticado por alguns autores é que, na academia em geral, somente seus primeiros trabalhos são analisados (A fragment on Government e An Introduction to the Principles of Morals and Legislation) e não toda sua obra: “From this partial perspective there emerged an image of a thinker whom some hostile commentators depicted as simplistic, shallow, philistine, extreme, and easy to criticize. Karl Max dismissed Bentham as ‘the insipid, leather-tongued oracle of the commonplace bourgeois imagination’; Charles Dickens satirized Bentham’s followers in Hard Times through the character of Mr. Gradgrin, portraying them as mechanistic social engineers who suppressed all aspects of the imagination in favour of brute facts. In modern times, Michel Foucault further damaged Bentham’s reputation by making his design for prisons and like institutions (the Panopticon) the archetypal symbol for repressive authoritarian control. Finally, Bentham’s remains are publicly displayed, fully clothed, in a cupboard in University College London and this ‘auto-icon’ is often treated with a mixture of bewilderment and disgust or is dismissed as an example of English eccentricity combined with bad taste”. DINWIDDY, John. Bentham: selected writings of John Dinwiddy. Stanford: Stanford University Press, 2004, p. 2.
[2] “Pode-se encontrar em sua obra uma parte conceitual e uma parte normativa de uma teoria geral do direito e, na parte normativa, teorias bem definidas da legitimidade, da justiça legislativa, da jurisdição e da controvérsia, todas adequadamente articuladas por uma teoria política utilitarista e uma teoria metafísica empiricista mais geral. Cada componente desta teoria foi desde então desenvolvido e aprimorado por diferentes autores, mas a teoria do direito que prevalece nas universidades inglesas e norte-americanas continua sendo uma teoria benthamiana.” DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. XI.
[4] Segundo a pesquisa do Desembargador Arnaldo Lazzarini, “o vocábulo deontologia, ainda hoje, é considerado um neologismo, introduzido por Jeremy Bentham, na nomenclatura filosófica. Esse filósofo e economista inglês, com efeito, o adotou no título de uma de suas obras, aliás publicada postumamente no ano de 1834, ou seja, a sua ‘Deontology or the Science of Morality’. E foi o próprio Jeremy Bentham que explicou o significado do seu neologismo, composto de duas palavras gregas: ‘deon’, que significa o que é conveniente, obrigatório, que deve ser feito, o dever; e ‘logia’, ou seja, o conhecimento metódico, sistemático e fundado em argumentos e provas”. LAZZARINI, Alvaro. Magistratura: deontologia, função e poderes do juiz. Caderno de doutrina e jurisprudência da Escola da Magistratura da 15ª Região, Campinas, v. 1, n. 4, jul./ago. 2005, p. 119. Entretanto, Bentham desenvolve seu conceito de deontologia com base no utilitarismo, diferentemente da deontologia kantiana baseada na dignidade de um dever moral a ser cumprido: “The principle, then, on which Deontology is grounded, is the principle of Utility; in other words, that every action is right or wrong – worth or unworth – deserving approbation or disapprobation, in proportion to its tendency to contribute to, or to diminish the amount of public happiness”. BENTHAM, Jeremy. Deontology; or The Science of Morality. London: Edinburgh, 1834, p. 24.
[5] BENTHAM, Jeremy. Uma Introdução aos Princípios da Moral e da Legislação. tradução Luiz João Baraúna. São Paulo: Editora Victor Civita, 1984, p. 10.
[6] RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Trad. Almiro Pisetta e Lenita Maria Rimoli Esteves. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 25.
[8] GAROUPA, Nuno. Combinar a Economia e o Direito: A Análise Económica do Direito. Systemas - Revista de Ciências Jurídicas e Econômicas, América do Norte, 1, jul. 2009. Disponível em: http://www.revistasystemas.com.br/index.php/systemas/article/view/11/12 . Acesso em: 19 Abr. 2010.
[10] Não cabe aqui aprofundarmos a discussão sobre o conceito de bem-estar social, pois foge ao objeto de análise deste trabalho, mas é preciso frisar que o utilitarismo clássico proposto por Bentham e sistematizado posteriormente por John Stuart Mill, implica que o Estado deve proporcionar de forma eficiente a maximização da felicidade dos indivíduos, principalmente através de um complexo sistema de normas previamente estabelecidas.
[11] A análise da influência do utilitarismo clássico de Bentham no pensamento econômico de Ricardo foi realizada pelo Prof. Stark da Universidade de Edinburgo já na década de quarenta: “It is permitted to use modern jargon, the matter can be summed up by saying that Bentham and the Ricardians had a common ideology. They shared the belief that man is essentially a selfish animal; that it is useless to fight that selfishness, and unnecessary at the same time, because, where freedom is guaranteed, a conflict between personal and public welfare is precluded by the admirable mechanism of modern market relations”. STARCK, Werner. Jeremy Bentham as an Economist. The Economic Journal, v. 56, n. 224, pp. 583-608, dez., 1946.
[12] Niño entende que é difícil mensurar a influência que a concepção utilitarista tem exercido sobre o pensamento ocidental, principalmente nos países de língua inglesa: “Con ciertos altibajos a través del tempo y hasta hace muy pocos años, en que comenzó a desarrollarse en los medios intelectuales una ponderosa reacción en contra de esta concepción, se presuponía corrientemente, en esos ámbitos, que la apelación a consideraciones utilitaristas constituía la única alternativa válida para justificar institicuiones y cursos de acción, y que la negativa a hacerlo era muestra de obscurantismo , confusión conceptual o indiferencia hacia los intereses de otros. La difusión práctica de esta filosofía fue randemente favorecida por el desarrollo de ciertas concepciones económias que tienen al utilitarismo como presupuesto moral. Por otra parte, en lo que nos interesa más directamente a nosotros, el utilitarismo ha influido de innumerables maneras en el derecho; una de ellas es, como veremos más tarde, a través de los enfoques económicos recién mencionados, que han sido aplicados al derecho, principalmente en los Estados Unidos, dando lugar a lo que se ha dado en llamar en los últimos años “el análisis económico del derecho”. NIÑO, Carlos Santiago. Introducción al análisis del derecho. 2ª ed. Buenos Aires: Astrea, 2003, p. 391.
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