O mal-estar da política brasileira


Há um mal estar generalizado entre todos aqueles em minha volta no Brasil. Há uma semana, concretizou-se o que parecia uma alucinação em 2014: um processo de impeachment para retirada do Partido dos Trabalhadores do governo federal.

Não sejamos tolos, não foi um processo contra Dilma Rousseff. O que houve foi o trunfo de um discurso economicista raso -- "precisamos reverter a crise econômica que assola o país e recuperar o crescimento econômico!" -- somado com uma indignação das massas com os processos institucionalizados de corrupção e financiamento ilegal de campanhas políticas. Tudo isso arquitetado por uma mídia oligopolizada que fez uso seletivo do que expor e do como expor.

Não é sem razão que Glenn Greenwald, um dos mais sérios e respeitados jornalistas do nosso tempo, se indignou com o modo como a Globo e Bandeirantes cobriram os eventos políticos recentes. Foi um trabalho malicioso ter dado toda atenção aos protestos minguados pró-impeachment antes da votação da Câmara dos Deputados e, posteriormente, ter ignorado completamente os debates sobre as fragilidades jurídicas das acusações de crime de responsabilidade e a defesa de Rousseff no Senado Federal. Não é de se espantar que um dos momentos cruciais da democracia brasileira -- o embate argumentativo de uma Presidente perante seus acusadores no Senado -- tenha sido ocultado e substituído por programas culinários?

A seleção na exposição dos fatos pela mídia é um problema gritante. Se é certo que o problema das arrecadações ilegais para campanhas políticas é um dos cânceres da democracia brasileira, por que não há equidade nas acusações e no trabalho investigativo dos jornalistas que cobrem a política no país? A blindagem feita em cima do atual Ministro das Relações Exteriores, José Serra, é algo surreal. A pergunta que João Filho, do The Intercept, faz é fundamental: o que explica o silêncio das grandes mídias com relação ao depoimento de executivos da empreiteira Odebrecht de que Serra recebeu 23 milhões de reais para caixa dois?

Esse tipo de blindagem só se explica quando se entende o projeto de poder sendo instalado anti-democraticamente no Brasil. Blindar José Serra e colocá-lo no Itamaraty é uma forma de contestar as alianças progressistas na América Latina e redefinir o padrão de interação diplomática do país com outras potências emergentes. Dar poderes a Henrique Meirelles -- um dos "czares da economia", nos dizeres de Oliver Sunkel -- é um modo de redefinir os pilares macroeconômicos e de planejamento orçamentário no país, atendendo aos anseios do setor financeiro e de investidores estrangeiros (de modo mais agressivo do que feito por Lula também com Meirelles). E essa é justamente a moeda de troca operada por Michel Temer: o recado dado por ele aos barões da mídia internacional e ao setor financeiro é que ele é (supostamente) capaz de aumentar os lucros de quem investe e tornar o Brasil um "ambiente estável para negócios". Internamente, seu jogo é outro: sua base de legitimidade parece residir na alucinação de que, sem o Partidos dos Trabalhadores no poder, o país "voltará aos trilhos".

Ordem e progresso autoritário?
É intrigante pensar nos "slogans" adotados por Rousseff e Temer. A última gestão do Partido dos Trabalhadores (PT) falava em Brasil, um país de todos. As cores eram múltiplas. O discurso era de diversidade e inclusão -- pelo menos no nível simbólico. Havia uma preocupação com a redistribuição e a redução das desigualdades, amparada por uma legitimidade democrática obtida nas urnas.

Já o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) fala em Ordem e Progresso, sem qualquer preocupação democrática. A equipe de Temer raramente entra em discussões sobre legitimidade democrática e sobre o amparo popular de suas ações. O discurso é sempre de "medidas drásticas, de curto prazo, para retirar o país da crise", retomando as ideias de um desenvolvimento autoritário muito presente na cultura política dos militares da década de 1960. Aliás, as bases do novo regime autoritário de Temer parecem semelhantes ao que Fernando Henrique Cardoso identificou em Autoritarismo e Democratização (1975): "uma aliança do patronato e as classes médias", ou do "setor da burguesia empresarial, organizada em grande empresa, e os setores da classe média que se apoiam no Estado empresarial e na grande empresa". A burguesia de Estado de que fala Cardoso -- a dos funcionários e técnicos, em especial do Poder Judiciário (a primeira a ter benefícios de reajustes negociados por Temer e negados por Rousseff) -- parece ser uma das forças de sustentação do impeachment de 2016. A questão, no entanto, é saber: a base de apoio deste regime se sustenta ou será quebrada pela indignação daqueles que não reconhecem a legitimidade desse governo?

A julgar pelos protestos de quatro de setembro, a oposição ao governo "branco, velho e composto só de homens" de Michel Temer será crescente. Os gritos de Fora Temer ganham mais potência e ressonância, especialmente por ser facilmente demonstrável que não se trata de uma simples transição conduzida por um vice presidente eleito por mais de 50 milhões de pessoas. 

Os cidadãos que votaram em 2014 não optaram por reajustes draconianos na previdência social, privatização dos recursos naturais (como o Aquífero Guarani) e reforma da legislação trabalhista para aumentar o poder dos empregadores. Também não escolheram o corte brutal de recursos do Sistema Único de Saúde e a criação de um "plano básico" com menos direitos, como pretende o paranaense Ricardo Barros. É evidente que esse governo, apesar de ter a pessoa de Michel Temer, não tem nenhuma relação com o programa político que se consagrou democraticamente nas últimas eleições. É isso que causa indignação profunda nos brasileiros. Quem autorizou esses sujeitos a redefinir políticas públicas e mudar radicalmente as instituições no país? Quem eles pensam que são?

O problema dos protestos de São Paulo
Desde junho de 2013, São Paulo tornou-se o símbolo dos novos protestos no Brasil e da ocupação das ruas em prol da democracia real. Tornou-se, também, o cenário de truculências horripilantes pela polícia militar, como o espancamento de jovens e idosos em protestos, o tiro nos olhos de repórteres (caso de Giuliana Vallone, da Folha de São Paulo) e a prisão arbitrária de cidadãos por suspeita de participação em táticas black block (caso de Rafael Marques e Fabio Hideki).

Nos protestos de quatro de setembro -- que pedem a decomposição do governo de Michel Temer e a convocação de eleições antecipadas --, muitos desses padrões de violência tornaram-se salientes. Houve relatos de inúmeros casos de violência policial e prisão arbitrária, o que fez com que a Human Rights Watch exigir que o governo brasileiro tenha um treinamento rigoroso das forças policiais para que o direito à associação e o direito ao protesto sejam respeitados. Afinal, trata-se de um direito constitucional que tanto prezam os "professores de direito constitucional" Michel Temer e Alexandre de Moraes, seu novo ministro da Justiça e Cidadania.

O problema, no entanto, é que os protestos de São Paulo são coibidos por forças militares treinadas por uma polícia do estado. E não é segredo que o governador Geraldo Alckmin despreza movimentos sociais e o direito ao protesto. Ele é um gestor público do tipo law and order, que tinha Alexandre de Moraes -- hoje alçado a posição de ministro no governo Temer! -- como homem de confiança no comando das repressões a atos públicos em São Paulo. As ligações são diretas. Moraes tinha como secretário Mágino Barbosa Filho, hoje secretário de segurança pública do governo Alckmin. Mágino segue a mesma postura de Moraes, de criação de um Estado policial, como criticou o jurista Marcelo Neves. Basta um telefonema de Moraes em Brasília para que Mágino, em São Paulo, autorize uma ação mais ostensiva por parte da polícia militar, como ocorrido no último domingo:



Como presenciado por senadores da República que estavam nos protestos de quatro de setembro, a polícia militar foi instruída a dispersar violentamente a manifestação mesmo sem qualquer risco colocado à coletividade. Esse é um caso que precisa ser enfrentado em São Paulo. Se a polícia militar está subordinada ao poder executivo do estado, é preciso responsabilizar Alckmin por violação de direitos fundamentais perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos -- algo já documentado pela Human Rights Watch há anos.

A tática empregada em São Paulo é a do amedrontamento com fins políticos. A grande mídia presta um desserviço ao ignorar a gravidade dos fatos e deixar de criticar essa tática e as relações existentes entre governo de estado e governo federal. 

Há alguma reação crítica à polícia militar quando um de seus funcionários é agredido sem razão, como ocorreu com um jornalista da BBC no último domingo. Nesse caso, dói na pele -- mesmo que seja a pele do empregado. Mesmo assim, quando isso ocorre, a narrativa centra-se no caso isolado da violência. Os jornais abandonaram as perguntas. Por que as pessoas estão indo para as ruas? Por que a polícia está reprimindo protestos pacíficos? Por que a população pede a saída de Temer? Qual a possibilidade de antecipar eleições? É preciso um retorno às perguntas.

O Hino da Independência tem um trecho que vale resgatar. Diz, em linguagem rebuscada típica do século XIX: não temais ímpias falanges que apresentam face hostil. Ou seja, não tenha medo das mãos opressoras com face hostil. É preciso enfrentar a violência e questionar a legitimidade das ações do governo. Acima de tudo, combater a política do temor servil.

2 comentários:

  1. Rafael,

    Como professora universitária eu lhe digo(independentemente de ser sua mãe, rsrsr), esse seu artigo deveria ser discutido em cada sala de aula com o devido tempo merecido. Nosso povo, esta sofrendo com a forma mais perversa de violência, a falta de informação. Obrigada por essa bela e triste descrição do cenário da política brasileira. Não há como não sentir um mal estar, quando vc percebe esua arquitetura perversa: mídia que seleciona, judiciário junto ao Executivo, repressão policialguma sobre qualquer manifestação e um presidente que não respeita a CF. Nossa? Onde chegamos e para onde vamos? É de fato, angustiante. A informação é matéria prima para tomada de decisões para um pensar bem. O que estão fazendo com nosso povo é um prejuízo incalculável.

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  2. Rafael, a clareza com que conduzes teus escritos é algo encantador. Li teu texto sobre a feminilidade, creio que de 2013, e acabei nesta tua postagem sobre nosso momento brasileiro.
    Coisa boa que sou curiosa...
    Abraço

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