No ensaio "Old and New Dimensions of Research in the United States Legal History" (The American Journal of Legal History, v. 23, n. 1, jan, 1979), James Willard Hurst (1910-1997), um dos principais nomes da historiografia jurídica estadunidense do último século, formulou importantes críticas ao modelo dominante de pesquisa em "história jurídica" (legal history) nos Estados Unidos da América.
Antes de explicá-las, Hurst ressalta que ponto de partida da discussão é que não é necessário ser jurista para realizar esse tipo de pesquisa (p. 1). Obviamente, é necessário ter um conhecimento mínimo do direito para manejar fontes produzidas por juristas (decisões, atos administrativos, legislações, etc). Mas isso não significa fechar o campo para membros "externos". Basta um treinamento mínimo para que o pesquisador não treinado em uma faculdade de direito seja capaz de analisar tais fontes -- algo que qualquer historiador minimamente capacitado tem conhecimento.
Problemas conceituais do direito dos tribunais
A primeira crítica apresenta por James Hurst é que a pesquisa histórica nos EUA concentrou-se excessivamente em como as cortes decidem. Para Hurst, esse movimento é impulsionado por algumas concepções erradas por parte dos juristas. Uma delas é que "direito" diferencia-se de "governo", sendo que o "direito" é o que os juízes decidem (judge-made law). No entanto, segundo Hurst, o período de domínio do direito criado pelas cortes ocorreu com intensidade entre 1810 e 1890 nos EUA (p. 2-3). Durante o século XIX, o direito estatutário ganhou força e, progressivamente, diferentes setores da sociedade americana passaram a ser regulados por códigos e estatutos específicos, sendo raro algum tipo de revisão judicial.
Outro problema conceitual que afetou a pesquisa histórica é a "identificação do direito com comandos" (p. 5). Essa visão limitada -- que as cortes decidem "o que fazer" e "o que não fazer" -- ignora "maiores setores do impacto jurídico" e possui uma tendência de limitar o papel do licenciamento governamental e "outras permissões que legitimaram e impulsionaram, e incidentalmente regularam, formas de ação coletiva privada" (p. 5). Segundo Hurst, "a partir do final do século XIX em diante, o caráter da sociedade foi moldado, em grande medida, pelas atividades de corporações empresariais e, especialmente no século XX, pela influência do lobby organizado para perseguir fins lucrativos ou não lucrativos; a estrutura e governança das corporações empresariais e dos grupos de pressão derivam primariamente de iniciativas privadas, mas também não podem estar divorciadas do direito administrativo e estatutário que afetou profundamente o escopo dado à vontade privada" (p. 5-6). Trata-se de uma relação complexa de influências entre normas públicas e ações privadas.
James Hurst afirma que a visão centrada nas cortes, por exemplo, não permite ao historiador enxergar o papel do direito na promoção do avanço da ciência e da tecnologia (onde o direito assume papel de alocação de recurso, licenciamento e regulação). Segundo ele, essa "área central da política pública" foi "construída muito mais com contribuições administrativas e legislativas do que judiciais" (p. 6). Há, enfim, um problema conceitual que leva ao olhar exclusivo às cortes e aos juízes, especialmente no ambiente acadêmico estadunidense.
Hurst reconhece que o papel do pesquisador é mais árduo no campo do direito administrativo, considerando que, na tradição americana, "legisladores e criadores de direito administrativo são abertos a um amplo leque de abordagens por interesses afetados" (p. 6). A formulação de políticas públicas (policy making) é, em suas palavras, "um negócio muito mais aberto e fluido na arena legislativa e administrativa do que na judicial, e assim o é, adequadamente, em uma ordem jurídica que busca ser tanto aberta quanto representativa" (p. 6).
Pontos de correção da historiografia jurídica
Ao pensar nas lições que aprendeu em trinta anos de pesquisa como historiador do direito, James W. Hurst identificou, nesse ensaio de 1979, três problemas que precisariam ser corrigidos pelos acadêmicos.
O primeiro é que os historiadores nos EUA não deram muita atenção às "divisões internas" de interesse nos EUA e focaram excessivamente no direito federativo. Além da diferença de interesse de grupos em diferentes regiões nos EUA, Hurst acredita que, entre 1880 e 1920, grandes organizações privadas ganharam importância central na política americana. Os historiadores devem dar mais prioridade em "estudar as relações do direito com as correntes cambiantes de poder associativo privado centralizado e descentralizado" (p. 8).
A segunda crítica de Hurst é o foco dos historiadores em períodos distantes, muito centrados no século XIX. Para Hurst, grandes mudanças estruturais aconteceram entre 1880 e 1920 na relação entre direito e sociedade. O historiador não precisa ter medo de compreender o tempo presente ou a história do século XX. Existem técnicas para evitar a confusão de experiências imediatas por parte do intérprete. No entanto, o tema do estudo deve sempre ser "a dimensão temporal da experiência social, e essa dimensão atinge o hoje tanto quanto o ontem" (p. 8).
A terceira crítica é a ausência de alocação de recursos para compreender a relação do direito com outras instituições, não somente jurídicas, que têm sido os principais componentes da sociedade (p. 9). Os historiadores do direito deram muita atenção à relação entre o direito o caráter cambiante do mercado. Para Hurst, "além de estudar o direito e o mercado, nós precisamos de mais atenção sobre a relação entre o direito e a família e os papéis sexuais, o comportamento do direito sobre a igreja, sobre as tensões entre moralidade convencional e objetivos individuais, educação, e o curso de mudanças no conhecimento científico e tecnológico" (p. 9).
Dar essa atenção não significa dizer que o direito teve um papel dominante na história social. Pelo contrário. Para Hurst, "mais pesquisa em história jurídica pode nos conduzir a estimativas mais modestas sobre o impacto comparativo do direito e fatores institucionais que não sejam jurídicos" (p. 9). Para Hurst, esse esforço pode atender à provocação de Roscoe Pound (1870-1964) sobre a compreensão dos limites da "ação jurídica efetiva". Nesse sentido, a história jurídica poderia dar contribuições para uma "sociologia jurídica rica", com mais dados e análises críticas.
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