Evitei fazer qualquer comentário ou análise sobre os acontecimentos de março no Brasil por dois motivos. Primeiro, pois não estou no país e minhas fontes de informação estão progressivamente fechadas nos filtros-bolha das redes sociais. Segundo, pois continuo crente que é dificílima a tarefa de interpretação do presente, sendo mais prudente aguardar alguma espécie de decantação, na esteira hegeliana.
No entanto, nesse momento delicado, o silêncio pode ser mais prejudicial que a tentativa fracassada de compreensão dos fatos. Por isso não me furto da observação de alguns pontos da política brasileira que merecem ser discutidos, refutados ou simplesmente pensados.
Primeiro ponto: a rua não é só da esquerda
Junho de 2013 foi um momento de catalização da política e de transformação da vida de muitas pessoas. Falo por experiência própria. Estar em São Paulo em meio aos protestos da multidão contra o aumento da tarifa foi algo único, muito mais potente que outras manifestações que havia previamente participado.
Essa mesma sensação está sendo vivida agora por setores conversadores e trabalhadores justamente indignados com o governo Dilma. Eles foram para as ruas depois de muito tempo -- refiro-me às passeatas da década de 1960 -- e sentiram o sabor de paralisar a Avenida Paulista com a potência da multidão.
Como bem notou Pablo Ortellado, é natural esperar que tais grupos peguem gosto pela coisa. Eles irão para as ruas cada vez mais. A lição que tiramos disso é que a rua não é mais só dos grupos sociais e das pautas de afirmação de direitos. 2015 deixou tudo mais complicado. É o mistério profundo, é o queira ou não queira.
Segundo ponto: nem tudo é golpismo
As primeiras interpretações do 15 de março que tive acesso foram reações alarmadas de um novo golpe no Brasil; uma reinvenção das marchas da família de 1964 ou uma nova forma agitação movida por interesses corporativos internacionais.
No entanto, após a manifestação desse domingo "verde-e-amarelo", ficou claro que as indignações eram maiores e mais diversificadas do que apoiadores do impeachment de Dilma Rousseff ou defensores da intervenção militar. Dias antes, Hugo Albuquerque observou que havia ali "uma sincera insatisfação, mas sinceras insatisfações de massa bem manipuladas geram cenários perigosos". Não discordo. São sim perigosas. Mas também não são somente massa de manobra para uma arquitetação maior, como pensavam alguns na primeira quinzena de março.
Nós vimos sim cartazes absolutamente irresponsáveis pedindo a intervenção militar. Vimos também um neofascismo pueril representado pela febre das "selfies" com as tropas de choque. Mas seria um trabalho analítico muito simplista reduzir tudo isso a golpismo. É um pingo pingando, é uma conta, é um conto.
Terceiro ponto: renovar as formas de observação e diálogo
O 15 de março deu preguiça para muita gente intelectualizada. Não foi fácil ver, por exemplo, cartazes pedindo a eliminação de Paulo Freire nas escolas em razão de sua "doutrinação marxista". Como que se discute de forma minimamente inteligente com pessoas assim? Eles têm compreensão da importância de Paulo Freire no cenário intelectual global?
Observei muitas reações desse tipo por pessoas próximas. Eles diziam: "como é que você leva a sério um protesto contra a corrupção no qual as pessoas vão todas vestidas com a camisa da Confederação Brasileira de Futebol? Não dá para discutir política com esse pessoal".
É difícil entender a incoerência desses atos. Mas é extremamente perigoso deixar as coisas como estão e não se engajar na disputa pela interpretação do problema da corrupção no Brasil. É preciso fazer algo como o cientista político Vitor Amorim Angelo fez na TV Globo: ocupar os espaços de comunicação com os "novos indignados" e dialogar de forma clara com esse público.
Parte da esquerda intelectualizada tem hoje uma certa arrogância e uma propensão ao fechamento do diálogo aos círculos universitários. Um dos erros é esse. Honrar Paulo Freire é ir para as ruas e observar o mundo com os "novos batalhadores", na expressão do professor Jessé Souza: entender o batalhador do microcrédito, a batalhadora empreendedora e superexplorada, o feirante, a família, a igreja neopentecostal (cf. a resenha de Bruno Cava do livro Batalhadores do Brasil).
Isso exige destravar uma certa paralisia da intelectualidade, renovando não somente a agenda de pesquisa em ciências sociais mas também a forma como os diálogos são travados na esfera pública. Não é hora de preguiça, mas de trabalho. É um regato, é uma fonte, é um pedaço de pão.
Quarto ponto: conter a guinada conservadora e repressora
O 15 de março foi um momento, um ponto de virada. O que realmente importa é a interpretação desse momento em relação de continuidade: o que está atrás e o que está por vir. Nossa atenção, portanto, não deve centrar-se somente na compreensão desse dia. É preciso cuidado com o desdobramento dos eventos e a utilização estratégica dessa onda de indignação por outras pautas e grupos.
Um exemplo é o debate sobre reforma da maioridade penal no Brasil. Há alguma dúvida que a oposição arquitetou a aprovação das diversas PECs que tramitam desde 1993 na Comissão de Constituição e Justiça nesse momento? Alguma dúvida que eles utilizarão o correto posicionamento contrário do governo para minar ainda mais os petistas, com o discurso que eles "protegem os bandidos"?
Como dialogar com uma população que, cativada por um discurso repressivo e punitivo, aprova tal reforma constitucional? O esforço dos juristas de contenção dessa medida por argumentos técnico-constitucionais frustrou-se. Agora o desafio é muito maior: convencer cada cidadão brasileiro que esse é um erro histórico. Que o direito penal (como estudado com rigor por Émile Durkheim e Michel Foucault) não precisa ser somente punitivo, mas pode também ser restitutivo, como pretendem as experiências de Justiça Restaurativa e fortalecimento do espírito solidário nas comunidades.
Essa é uma oportunidade para disputar com mais intensidade a esfera pública e coordenar ações na sociedade civil para contenção dessa "guinada conservadora" que está se configurando em 2015. Não é o fim do caminho ou o fim da ladeira. É um passo, é uma ponte.
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