A desconstrução da democracia no Paraná


Nos últimos dois dias, fui bombardeado por mensagens de pessoas que estão muito próximas da luta dos professores e servidores públicos do Paraná. Tais amigos me enviaram vídeos e textos sobre a desmedida violência policial contra os cidadãos paranaenses no Centro Cívico em Curitiba (cf. a nota 'Democracia de Luto' da OAB/PR). 

O cenário de guerra curitibano ganhou repercussão internacional diante do uso de bombas e balas de borracha contra manifestantes pacíficos (cf. 'Violents heurs au Brésil lors d'une manifestation d'enseignants', Le Monde; 'Más de 200 heridos en una protesta de profesores en Brasil', El País). Para os professores, a ordem de violência partiu do governador Beto Richa e sua equipe.

Os professores pretendiam fazer uso do direito fundamental de livre manifestação e associação para fins pacíficos. Pretendiam se manifestar, como cidadãos, na "Casa do Povo", onde políticos aliados a Richa costuravam uma manobra política para aprovação da austera legislação. Foram impedidos pelo uso da uso força de aparelhos de Estado progressivamente militarizados e opressores.

Um recorte de narrativas sobre indignação
Como observador distante, penso que a melhor forma de compreender o motivo da indignação dos cidadãos paranaenses é um olhar sobre diferentes narrativas sobre o que está acontecendo no Estado. Construo aqui uma colagem de visões e opiniões sobre os protestos paranaenses, sem a pretensão de uma explicação total do fenômeno. Não destaco, nessa colagem, narrativas de pessoas que estavam nos protestos, mas sim de pessoas que "não estão na luta" (no jargão dos movimentos sindicalizados) -- o que é interessante se considerarmos que o maior desafio hoje é a ampliação da causa (a conscientização) para além dos docentes e servidores.

Primeiro, institui-se em favor de alguns poucos servidores benefícios excessivamente onerosos aos cofres públicos e em total descompasso com a situação socioeconômica do país. O arrocho fiscal cujo custo é imposto a toda sociedade e, especialmente, sentido pelo mais pobres, não os atinge. Na sequência, quase que simultaneamente, assiste-se ao lamentável sucateamento da carreira de milhares de servidores públicos cujo papel é tão indispensável para o bom funcionamento do serviço público quanto a função daqueles. Talvez seja esse preço a pagar para manter o privilégio daqueles primeiros, mas uma coisa é certa: de novo, estamos no caminho errado. Isso nos distancia ainda mais da democracia e das promessas de um país menos desigual. Parabéns aos professores e a todos os servidores do Estado do Paraná, a luta de vocês é justa, nobre, indispensável e, sem dúvidas, representa o sentimento da maioria.

A nota acima foi escrita por Gilberto Kalil, advogado em Maringá. Penso que ela é representativa de uma visão de profissionais liberais que se juntaram à causa dos professores por valores compartilhados. A narrativa de Kalil é também valiosa pela sua capacidade de síntese: a classe política tem construído privilégios junto ao Judiciário às custas dos interesses da população. Afinal, qual paranaense é a favor de cortes de gastos na educação? Por que o governo ignora os anseios da maioria?

Meu pai trabalhou a vida toda como professor de educação física, e assim criou a mim e aos meus irmãos. Meu pai nunca roubou, nunca matou, nunca agrediu ninguém. Meu pai vive tentando pegar aulas extras, para que seu salário não tenha um valor ridículo. Meu pai é uma pessoa que sempre detestou brigas. Meu pai não é baderneiro, é um homem honesto e trabalhador, como foi a vida toda. Meu pai teria, portanto, o direito constitucional de ir e vir, mesmo em frente à Alep, mesmo dentro dela, já que aquele é um local público, e não propriedade dos deputados que ali estão, de passagem, porque foram democraticamente eleitos pelo povo, do qual meu pai faz parte. A Justiça, contudo, está ao lado do poder, e proibiu a entrada de cidadãos paranaenses em uma casa que pertence a eles, que pertence a todos nós. Por isso, porque o Sr. Carlos Alberto Richa quer aprovar a todo custo um projeto que atropela os direitos de seu funcionalismo público, meu pai tomou um tiro de bala de borracha. No dia 30 de agosto de 1988, quando o então governador Álvaro Dias soltou a cavalaria em cima dos professores, meu pai só não estava em Curitiba porque faltavam três meses para eu nascer e minha mãe pediu, pelo amor de Deus, que ele ficasse em casa. Hoje, quase 27 anos depois, eu vi uma foto do meu pai deitado no asfalto, sendo atendido pelo Corpo de Bombeiros, porque estava defendendo o que é seu, por direito. Enquanto ele era atendido do lado de fora, do lado de dentro o presidente da Alep, deputado Ademar Traiano (PSDB), dava prosseguimento à sessão para aprovar o uso do dinheiro do meu pai - e de todos os professores e servidores estaduais - para pagar a conta do governo do estado.
O relato acima foi escrito por Carolina Werneck, jornalista em Londrina. O texto foi compartilhado por mais de 20.000 pessoas diante do seu apelo emocional. É uma narrativa visceral de uma filha que vê seu pai atingindo por uma bala de borracha, coberto de sangue -- uma cena que se repetiu exaustivamente no protesto do dia 29/04. 

Não sem razão, o deputado Ênio Verri (PT) escreveu que "o governador Beto Richa proporcionou o maior ato de violência contra professores da historia do Brasil". Será que essa história está sendo contada? Com quais argumentos Richa pretende legitimar o uso da força policial contra os manifestantes?

Lições da violência: qual o caminho?
No texto Primeiro foram os professores, mas eu não me importei, os professores Gustavo Noronha Ávila e Vera Guilherme fazem um balanço do uso instrumental do direito para legitimação dos atos de violência pelo Estado no Paraná. Inspirados em Michel Foucault, os autores falam da fome institucional do governo, dos terrorismos do Estado e do fato de que "opressões e tiranias podem também existir em uma democracia". O ponto do texto é estimular a "capacidade de indignação" daqueles que não estão militando por essa causa.

Esse, de fato, parece ser o ponto mais curioso dos protestos no Paraná. Milhares de paranaenses se juntaram às mobilizações anti-PT de 15 de março, mas poucos ainda se deram conta da violência que está sendo praticada pelo governo Richa e como as medidas que estão sendo aprovadas em 2015 podem desestruturar o modelo de formação de servidores públicos e docentes -- cada vez mais precarizados e sem direitos.

A tarefa, nesse momento, é a de ampliar a luta por direitos e expandir a empatia e solidariedade daqueles cidadãos que não estão afetados diretamente -- mas certamente indiretamente -- pelas medidas de Richa. Além disso, advogados e juristas devem se juntar a coletivos e movimentos sociais para as garantias básicas de um Estado Democrático de Direito. O esforço é de colaboração, união de diferentes movimentos e um grito de basta ao uso ilegítimo da força.

Por fim, é lamentável a cooptação do Judiciário pelo governo do Estado do Paraná por meio de aumento de repasses e verbas. Se há uma esperança de mudança, ela está nos pequenos, nos precários, nos advogados liberais, nos professores, nos programadores, nos técnicos e nos trabalhadores que sonham com uma educação de qualidade para seus filhos. Aos poucos o que se evidencia no Paraná é uma crescente reconfiguração de uma nova espécie de luta de classes, onde elites privilegiadas utilizam da força policial para evitar as manifestações de trabalhadores e professores.

O debate está posto e aberto para todos nós: o que fazer para reverter esse cenário?

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