Aniversários são muito reflexivos. Eu, particularmente, sinto uma mistura de alegria e angústia. Quando acordo no dia catorze de outubro, costumo pensar: "estou vivo, que maravilha!". Porém, segundos depois minha mente me trai e coloca um velho questionamento angustiante: "isso é tudo? o que fazer?".
Ao invés de tentar responder essa questão filosófica de ordem prática -- capaz de imobilizar as mentes mais ativas --, vou fazer um esforço de compreensão de quem eu era há dez anos (2004). Nesse texto bastante pessoal, farei uma tentativa de reconstrução dos meus desejos e do ambiente intelectual que provavelmente influenciou meu modo de ver o mundo. Peço licença para o exercício egoísta.
Ideal socialista e impulso individual
Lembro que aos dezessete anos eu tinha um enorme desejo de ser alguém. Sentia uma espécie de "impulso de diferenciação", talvez motivado por um livro de um filósofo argentino chamado José Ingenieros (1877-1925). Na época, não tinha lido Friedrich Nietzsche (1844-1900), que certamente reforçaria esse caráter individualista que impulsiona a ação. Li a obra O Homem Medíocre com atenção e admiração, tentando entender a crítica do autor ao "comportamento de rebanho" daqueles sem ideais. Ao lado de Ingenieros, outro argentino me ensinava o papel do desejo de mudança e de um certo "humanismo teórico", porém em uma chave de interpretação marxista: Ernesto Che Guevara (1928-1969).
Na minha adolescência era muito comum ver a imagem de Che em camisetas ou colares vendidos em feirinhas hippies no litoral catarinense. Porém, na minha cabeça, Che era mais que um ícone para vender roupas. Através de um pequeno livro de Michael Löwy intitulado O pensamento de Che Guevara, fui introduzido a suas ideias e sua interpretação das teses de Karl Marx sobre emancipação e rompimento da alienação. Obviamente, eu não era um estudioso de Marx e tampouco possuía rigor metodológico para interpretar tais textos. No entanto, em razão do engajamento de meus pais em movimentos sociais e no ambiente universitário, creio que minha adolescência foi parcialmente influenciada por tais autores socialistas, como o estadunidense Leo Huberman (1903-1968), autor de um livro bastante popular no Brasil chamado A História da Riqueza do Homem.
Essa literatura de caráter humanista não religioso talvez tenha servido como alicerce para minha formação na adolescência, já impactada pelos ideários franceses de ética, solidariedade e cooperação -- propagados pelos irmãos maristas no Brasil.
Valores cooperativos?
Naquela época, entretanto, eu não conseguia estabelecer algumas conexões entre os livros e romances estudados no Colégio Marista e essa literatura de vertente progressista. Em que grau, por exemplo, Capitães da Areia de Jorge Amado (1912-2001) estaria próximo do pensamento crítico? A denúncia da desigualdade e da pobreza não consiste em um dos pisos comuns entre tais textos? Creio que sim, porém isso não estava articulado para nosso grupo de adolescentes em Maringá.
Olhando com mais cuidado para a formação dos irmãos maristas no Paraná, consigo agora perceber que o tipo de educação forjada nas bases de Marcellin Champagnat (1789-1840) estava intimamente conectado com a caridade e o sentimento de empatia com aqueles em situações mais vulneráveis. Eram comuns as idas a bairros pobres para o "Dia da Convivência", no qual compartilhávamos conhecimento com crianças de escolas públicas. Esses exercícios pedagógicos me marcaram, pois escancaravam as disparidades existentes entre nós (crianças de classe média e crianças de classe baixa). Os educadores fomentavam compaixão. Dizia Champagnat: L'humilité et la charité sont le fondement et le principe de toutes les bonnes qualités qui captivent et gagnent l'affection et l'estime des hommes. O Colégio Marista ensinava, pela religião, a importância do olhar para o outro e a ação colaborativa. Mesmo distante da prática religiosa hoje, acredito que essas experiências ainda rendem pensamentos voltados à colaboração e cooperação com o próximo.
Obviamente, o Marista preocupava-se com índices de aprovação e resultados. A lógica da competição, tipica da educação privada atenta às oscilações do mercado, também permeava o colégio. No entanto, esse não era o valor dominante. Havia uma mensagem constante, talvez implícita, de amor e solidariedade -- algo indissociável da filosofia socialista de matriz europeia. De certo, é possível ver uma conexão entre tais valores e a aceitação dos ideais propagados por Huberman, Guevara, Ingenieros e outros.
Entre ideais e realidade
Creio que, aos 17 anos, toda essa base de formação foi ligeiramente corrompida pela lógica da competição típica dos vestibulares brasileiros. Isso por que, uma vez fora do Marista e matriculado no Colégio Nobel, a mensagem dominante era a da preocupação com o acúmulo de conhecimento e a necessidade de ser melhor que seu colega. Todo o formato de educação e de avaliação era baseado em exames individuais. Éramos treinados para saber mais sobre a Revolução Francesa que os alunos de outros colégios. Não discutíamos os valores da Revolução e que tipo de conhecimento poderíamos construir de forma colaborativa. Muito pelo contrário. Tudo era pensado e estruturado para aumentar desempenhos individuais, como se fossemos atletas em preparação para esportes não coletivos.
Além disso, a internet já proporcionava um culto ao narcisismo e ao "espetáculo do indivíduo". Lendo esse relato talvez você possa imaginar que eu era algum jovem intelectual enfronhado em literatura socialista -- algum jovem Antonio Gramsci ou coisa do tipo. Tal imagem está muito longe da realidade. Essas eram apenas algumas leituras que fazia em casa. A verdade é que eu era um adolescente que tinha uma banda de rock, namorada, muitos amigos e um Fotolog (página para divulgação de fotos). Gostava -- e ainda gosto -- de música e festa. Talvez residisse ali um pequeno curto-circuito entre o ideal e a realidade. O desejo de diferenciação chocava-se com o desejo de inclusão e participação de um pequeno clube: o das "pessoas descoladas" que compartilham fragmentos de suas vidas em redes sociais. Por mais que eu me encantasse com o "impulso de diferenciação" de Ingenieros, ainda sim estava repetindo as mesmas ações e comportamentos dos adolescentes de classe média do Brasil.
Talvez eu esteja sendo muito crítico comigo mesmo. Porém, é preciso cautela para não romantizar os fatos. Tenho plena consciência da situação de normalidade desse período e desse sujeito de 17 anos. Eu não tinha nenhum grande feito e nenhuma grande maturação intelectual. Era apenas um rapaz curioso -- e se Aaron Swartz estiver correto em seu insight, talvez esteja aí uma das explicações da inteligência.
O que eu era é o que sou?
Esse era o adolescente confuso que optou pela graduação em Direito no ano de 2004. Depois disso, muita coisa mudou. O amadurecimento foi forjado pelo passar dos anos, pelo contato com discussões sociais mais profundas e pela necessidade de escolhas -- a condenação de nossa própria liberdade, como diria Jean-Paul Sartre. Esse período, porém, é objeto para outro texto e reflexões de outra ordem.
Peço desculpas se a leitura causou aborrecimento ou frustração. Essa tentativa de interpretação de um sujeito em transformação, preso no mesmo corpo, tinha um objetivo puramente egoístico. Creio que tudo não passou de um exercício de interpretação de mim.
Em um mundo progressivamente caótico, complexo e inundado de notícias que prendem nossas atenções e consomem nossas energias, tudo o que eu precisava hoje era de um momento para pensar em quem eu era e quem eu sou.
Essa literatura de caráter humanista não religioso talvez tenha servido como alicerce para minha formação na adolescência, já impactada pelos ideários franceses de ética, solidariedade e cooperação -- propagados pelos irmãos maristas no Brasil.
Valores cooperativos?
Naquela época, entretanto, eu não conseguia estabelecer algumas conexões entre os livros e romances estudados no Colégio Marista e essa literatura de vertente progressista. Em que grau, por exemplo, Capitães da Areia de Jorge Amado (1912-2001) estaria próximo do pensamento crítico? A denúncia da desigualdade e da pobreza não consiste em um dos pisos comuns entre tais textos? Creio que sim, porém isso não estava articulado para nosso grupo de adolescentes em Maringá.
Olhando com mais cuidado para a formação dos irmãos maristas no Paraná, consigo agora perceber que o tipo de educação forjada nas bases de Marcellin Champagnat (1789-1840) estava intimamente conectado com a caridade e o sentimento de empatia com aqueles em situações mais vulneráveis. Eram comuns as idas a bairros pobres para o "Dia da Convivência", no qual compartilhávamos conhecimento com crianças de escolas públicas. Esses exercícios pedagógicos me marcaram, pois escancaravam as disparidades existentes entre nós (crianças de classe média e crianças de classe baixa). Os educadores fomentavam compaixão. Dizia Champagnat: L'humilité et la charité sont le fondement et le principe de toutes les bonnes qualités qui captivent et gagnent l'affection et l'estime des hommes. O Colégio Marista ensinava, pela religião, a importância do olhar para o outro e a ação colaborativa. Mesmo distante da prática religiosa hoje, acredito que essas experiências ainda rendem pensamentos voltados à colaboração e cooperação com o próximo.
Obviamente, o Marista preocupava-se com índices de aprovação e resultados. A lógica da competição, tipica da educação privada atenta às oscilações do mercado, também permeava o colégio. No entanto, esse não era o valor dominante. Havia uma mensagem constante, talvez implícita, de amor e solidariedade -- algo indissociável da filosofia socialista de matriz europeia. De certo, é possível ver uma conexão entre tais valores e a aceitação dos ideais propagados por Huberman, Guevara, Ingenieros e outros.
Entre ideais e realidade
Creio que, aos 17 anos, toda essa base de formação foi ligeiramente corrompida pela lógica da competição típica dos vestibulares brasileiros. Isso por que, uma vez fora do Marista e matriculado no Colégio Nobel, a mensagem dominante era a da preocupação com o acúmulo de conhecimento e a necessidade de ser melhor que seu colega. Todo o formato de educação e de avaliação era baseado em exames individuais. Éramos treinados para saber mais sobre a Revolução Francesa que os alunos de outros colégios. Não discutíamos os valores da Revolução e que tipo de conhecimento poderíamos construir de forma colaborativa. Muito pelo contrário. Tudo era pensado e estruturado para aumentar desempenhos individuais, como se fossemos atletas em preparação para esportes não coletivos.
Além disso, a internet já proporcionava um culto ao narcisismo e ao "espetáculo do indivíduo". Lendo esse relato talvez você possa imaginar que eu era algum jovem intelectual enfronhado em literatura socialista -- algum jovem Antonio Gramsci ou coisa do tipo. Tal imagem está muito longe da realidade. Essas eram apenas algumas leituras que fazia em casa. A verdade é que eu era um adolescente que tinha uma banda de rock, namorada, muitos amigos e um Fotolog (página para divulgação de fotos). Gostava -- e ainda gosto -- de música e festa. Talvez residisse ali um pequeno curto-circuito entre o ideal e a realidade. O desejo de diferenciação chocava-se com o desejo de inclusão e participação de um pequeno clube: o das "pessoas descoladas" que compartilham fragmentos de suas vidas em redes sociais. Por mais que eu me encantasse com o "impulso de diferenciação" de Ingenieros, ainda sim estava repetindo as mesmas ações e comportamentos dos adolescentes de classe média do Brasil.
Talvez eu esteja sendo muito crítico comigo mesmo. Porém, é preciso cautela para não romantizar os fatos. Tenho plena consciência da situação de normalidade desse período e desse sujeito de 17 anos. Eu não tinha nenhum grande feito e nenhuma grande maturação intelectual. Era apenas um rapaz curioso -- e se Aaron Swartz estiver correto em seu insight, talvez esteja aí uma das explicações da inteligência.
O que eu era é o que sou?
Esse era o adolescente confuso que optou pela graduação em Direito no ano de 2004. Depois disso, muita coisa mudou. O amadurecimento foi forjado pelo passar dos anos, pelo contato com discussões sociais mais profundas e pela necessidade de escolhas -- a condenação de nossa própria liberdade, como diria Jean-Paul Sartre. Esse período, porém, é objeto para outro texto e reflexões de outra ordem.
Peço desculpas se a leitura causou aborrecimento ou frustração. Essa tentativa de interpretação de um sujeito em transformação, preso no mesmo corpo, tinha um objetivo puramente egoístico. Creio que tudo não passou de um exercício de interpretação de mim.
Em um mundo progressivamente caótico, complexo e inundado de notícias que prendem nossas atenções e consomem nossas energias, tudo o que eu precisava hoje era de um momento para pensar em quem eu era e quem eu sou.
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