O debate sobre alternância do poder: o que mudar ao não mudar


As eleições de 2014 estão proporcionando inúmeras tensões, oscilações e reações nos brasileiros. Os últimos meses foram extremamente dinâmicos e caracterizaram uma disputa eleitoral ímpar, marcada por alguns elementos centrais. Primeiro, houve a sinalização da continuidade da polarização entre PT e PSDB na disputa para Presidência da República e composição do governo. Depois, a trágica e inesperada morte de Eduardo Campos (PSB), com o consequente frisson sobre a possibilidade de Marina Silva ser presidente. Terceiro, um ataque coordenado das campanhas do PT e do PSDB, reforçando a imagem de uma Marina Silva indecisa, muito abstrata e cercada de pessoas e interesses diversos. 

O resultado desse movimento -- "uma campanha massiva em tom acusatório pessoal, de difusão do medo e de hostilização aberta", nas palavras de Bruno Cava -- foi o retorno da polarização entre PT e PSDB, centrado nas figuras de Dilma Rousseff e Aécio Neves. Como resultado, Rousseff conquistou a maioria dos votos da região nordeste, enquanto Neves tornou-se o porta-voz de regiões mobilizadas pelo "antipetismo" como São Paulo, Paraná e Santa Catarina.

Nos dias subsequentes ao primeiro turno, os porta-vozes de candidaturas derrotadas -- Marina Silva (PSB), Luciana Genro (PSOL) e Eduardo Jorge (PV) -- iniciaram um debate nacional sobre a alternância de poder no país. A pergunta central desse debate seria: as mudanças necessárias para o Brasil seriam facilitadas pela alternância de poder? Em outras palavras, há um desgaste do Partido dos Trabalhadores ou mesmo uma incapacidade do governo de avançar as políticas desejadas pela sociedade?

Esse debate tem mobilizado a intelectualidade brasileira, seja ela a da rua ou a dos jornais (sempre há intelectualidade, porém em diferentes níveis, como defendia Antonio Gramsci). Tal cisão é visível em artigos da Folha de São Paulo, com posicionamentos distintos sobre os partidos. Enquanto José Arthur Gianotti fala em "retomar o sentido público das instituições do Estado" e como Aécio pode orientá-las para "criar homens e mulheres livres" na democracia brasileira, Roberto Mangabeira Unger fala em "reorganizar instituições em vez de apenas redirecionar dinheiro" e como Dilma pode "encontrar maneiras para engajar a população, junto do Estado, na qualificação dos serviços de saúde, educação e segurança".

Os debates giram em torno de conceitos como "mudança" e "reforma das instituições". No entanto -- e aí reside um dos problemas centrais do debate político que experimentamos hoje --, não há muita clareza sobre o aspecto normativo da mudança (o que se quer) e seus elementos procedimentais (como fazer).

Como exercício de reflexão colaborativa, proponho um desafio: que o debate sobre alternância do poder seja enfrentado com argumentos sólidos produzidos por nós. Aos defensores de Aécio, peço que apresentem argumentos claros sobre qual mudança a sociedade brasileira deseja e por que o governo Rousseff não é capaz de atingi-lo. Aos defensores de Dilma, peço que explorem a ideia do que se deve mudar ao não mudar de governo. Ou seja, mostrar por que mais quatro anos de governo Rousseff é alinhado com uma pauta progressista (e qual é essa pauta).

Proponho, enfim, abrir o e-mancipação para esse debate nos próximos dias, para o bem de nossa experiência democrática e uso de nossas capacidades intelectuais. Aos invés de consumidores passivos, sejamos os produtores ativos de tal debate.

Não é preciso textos longos ou argumentos dotados de rigor acadêmico. A ideia central é que possamos construir um diálogo franco e sem medos sobre a política. Somos capazes?

Um comentário:

  1. Conforme prometi ao meu estimado amigo Zanatta, algumas reflexões sobre parte de minha percepção desse tema:


    Os novos desafios ao bem estar da democracia parecem ser uma realidade comum em nosso “grande espaço”, a América Latina, região na qual o Brasil também está inserido. A maioria das democracias latino-americanas é muito jovem, ou seja, estão ainda em fase de desenvolvimento e plena consolidação. Esse cenário de maturação apresenta, quase sempre, problemas delicados de instabilidades, incompatibilidades de modelos institucionais e discrepâncias estruturais.

    Em tempos onde modelos os populistas e carismáticos, baseados nas figuras de grandes líderes nacionais ressurgem, a democracia apresenta seus primeiros sinais de subversão. A Venezuela do líder “quase místico” Hugo Chávez, a Bolívia de Evo Morales, o Brasil de Lula, são exemplos de países nos quais prevalecem mais o caráter personalista do “político” do que a própria democracia e os programas partidários de governo. A grande massa popular sempre está preocupada com a figura do líder a ser eleito, na figura quase messiânica do presidente. A recepção que a democracia presidencialista teve na América Latina não se estabeleceu de modo igual segundo a idealizada nos E. U. A., onde essa instituição teve origem. Sendo isso (ou não) um problema de mero transplante de instituições exógenas, o que há de incontroverso é que estamos diante de um obstáculo à manutenção de uma democracia saudável.

    Os sistemas políticos modernos, cuja racionalidade interna específica é a democracia, são marcados pela diferença interna governo/oposição (para seguirmos a distinção de Niklas Luhmann). No contexto brasileiro, essa distinção pode ser muito bem associada com a polarização PT/PSDB. O PT, escorado na “imagem de Lula”, está há 12 (doze) anos no poder e ao mesmo tempo esboça um projeto para fazer sua manutenção nessa posição por um período indeterminado. Um dos grandes dilemas (ou mesmo paradoxos) da democracia é essa possibilidade de um determinado partido, seja ele qual for, perpetuar-se no poder sem uma oportunidade de alternância entre a base do governo e a oposição. Isso se torna ainda mais delicado em países que saíram recentemente de experiências autoritárias, representando um risco à própria democracia. Certamente, a existência de lideranças é necessária à política, todavia, o aspecto pessoal do líder não pode prevalecer sobre a democracia e muitos menos ser refletido nas instituições.
    Diante dessas condições, não discuto aqui os avanços sociais promovidos pelos programas do atual governo, mas antes, a saúde da própria democracia e a importância de derrubarmos a ideia da prevalência do líder no sistema político democrático. Esse resquício do viés personalista da sociedade brasileira representa um forte obstáculo à efetiva democratização das instituições e ao enfraquecimento do patrimonialismo. Em minha opinião, a vitória de Aécio, e consequentemente do PSDB, viria como uma “medida terapêutica” para a democracia brasileira e para as instituições nacionais, já que essa é uma das grandes propostas da oposição. Creio numa reforma política bem alinhada e numa gestão pública mais eficiente no governo de Aécio. Grosso modo (e correndo o risco de ser simplista), a redução do número de ministérios, a eliminação do inchaço burocrático e a abertura das instituições para procedimentos internos mais democráticos, seriam as grandes contribuições de um “novo governo” “com mudança”. Acredito realmente que esses seriam legados positivos para a sociedade brasileira.

    Dentre tantos pontos possíveis (que vão da economia à educação), decidi escolher esse que julgo o mais caro à democracia brasileira, e para o qual a alternância de poder teria mais a oferecer do que a manutenção do partido que aí está. Vamos aguardar a resposta final da sociedade nas eleições.

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