Uma vez verificada a influência de Foucault -- mesmo que com frágeis instrumentos --, podemos retomar o texto de Safatle. Ele diz que Foucault conseguiu produzir dois feitos notáveis: "complexificar nossa compreensão a respeito dos mecanismos de funcionamento de poder e injetar uma desconfiança profunda a respeito do pretendo realismo de conceito e práticas científicas, em especial no campo das ciências humanas e das práticas clínicas. Como se não fosse o bastante, seus últimos trabalhos compõem uma reflexão sistemática a respeito de um modo de autonomia e governo de si que abre caminhos para a reflexão ética distantes daqueles que a filosofia moderna conheceu, com sua fixação pelas figuras jurídicas da lei, do tribunal e da norma universalizável. Dessa forma nasce uma experiência filosófica na qual epistemologia, ética e teoria social caminham de forma compacta".
Foucault, na opinião de Safatle, nos dá instrumentos para a capacidade de suspeita e desconfiança em relação às ideias de progresso e de esclarecimento -- uma polêmica travada com Jürgen Habermas naquilo que ficou conhecido como o "debate Foucault-Habermas" (na explicação de Michael Kelly: "Foucault introduces power while analyzing the genealogy of various forms of knowledge and nondiscursive practives; he claims that power ir, in fact, productive of both knowledge and practice. While acknowledging power, Habermas insists that it be tempered by a critical theory able to make normative distinctions between legitimate and illegitimate uses of power").
Sem dúvidas, as relações de poder estão no centro da análise de Foucault. Em uma entrevista dada em janeiro de 1984, um pouco antes de sua morte, ele reforçou a centralidade do poder em seu intenso projeto intelectual: "As análises que tento fazer se centram fundamentalmente nas relações de poder. E entendo por relações de poder algo diferente dos estados de dominação. As relações de poder possuem uma extensão extraordinariamente grande nas relações humanas. Isto não quer dizer que o poder político esteja em todas as partes, mas sim que nas relações humanas se imbrica todo um feixe de relações de poder que podem ser exercidas entre os indivíduos, no interior de uma família, numa relação pedagógica, no corpo político, etc. A análise das relações de poder constitui um campo extraordinariamente complexo. E esta análise se encontra, às vezes, com aquilo que podemos denominar fatos ou estados de dominação, em que as relações de poder ao invés de serem instáveis e permitir aos diferentes participantes uma estratégia que as modifiquem, encontram-se bloqueadas e fixadas".
É preciso entender o poder nas suas diferentes dimensões disciplinares e instituições; entender, se governar e se defender. Não sou um foucaultiano -- li com cuidado apenas dois livros (Vigiar e Punir e Microfísica do Poder) e uma coletânea de artigos críticos publicada em 1991 (Foucault: a critical reader) -- mas parece ser esse o recado do pensador francês.
Mas, então, como avançar nesse empreendimento crítico?
Um primeiro passo é a disseminação destas reflexões foucaultianas para fora do ambiente universitário -- ou, ao menos, para o maior número de pessoas. Nesse sentido, iniciativas como a do Grupo de Estudos Foucaultianos, coordenado pela Cristina Marinho, são louváveis. Eles disponibilizaram grande parte da bibliografia de Michel Foucault e seus intérpretes para download na internet. Assim, garantem a disseminação das ideias de Foucault -- aplicáveis na história, na sociologia, no direito, na ciência política, na filosofia, na psicologia -- na rede.
É interessante observar a presença de Foucault tanto nos grafites das ruas de Paris quanto em caixas de DVDs de documentários piratas vendidos na Rua Augusta em São Paulo. Isso é um avanço que pode auxiliar a superar o divórcio de que fala Safatle.
Penso que precisamos de mais popularização e menos fechamento acadêmico (um tipo de poder?) das ideias de Foucault -- e é por isso que continuo achando o debate entre Michel Foucault e Noam Chomsky na televisão holandesa em 1971 algo incrível. Obviamente, não há um "único Foucault", como ponderou David Couzens Coy. De todo modo, qual seria o problema de amplificar as formas de acesso para esses vários Foucaults no século XXI? Quais seriam os riscos da livre interpretação de suas pesquisas e hipóteses de trabalho?
Não vejo grande problema em sair das amarras acadêmicas e das "formas corretas" de ler Michel Foucault. Aliás, definir essas formas já não seria uma "prática social de controle e vigilância"?
O segundo passo é a manutenção de seu pensamento (uma postura ou um método?) de forma atualizada e crítica. Como afirmou Murilo Correa, um jovem professor que tem trazido Foucault constantemente para o debate das instituições no Brasil, "ler Foucault, hoje, tornou-se mais do que um prazer, uma urgência – nem que seja para ficar à espreita dos micro-fascismos que, como diria Espinosa, diminui-nos a potência e a liberdade". Tal urgência tem um desdobramento duplo em termos políticos. Não se trata somente de uma leitura que auxilia na reflexão constante sobre nossas aproximações com o fascismo ("como expulsar o fascismo que está incrustado em nosso comportamento?"). Ler Foucault, como afirmou Michael Walzer, também oferece uma "caixa de ferramentas" para a resistência local. Uma resistência contra as inúmeras formas de controle que se formam na transição da sociedade disciplinar para a sociedade de controle, com seus dispositivos de biometria, vigilância, registro de dados e redes regulatórias (cf. 'Biopoder e Direito', 2010).
Em 2012, Murilo publicou uma tradução do texto “Se Défendre”, que contem uma potente reflexão de Foucault sobre o direito e sobre a prática da liberdade. Disse Foucault: "Não é porque há leis, não é porque eu tenho direitos que eu estou habilitado a me defender; é na medida em que eu me defendo que meus direitos existem e a lei me respeita. É, antes, toda a dinâmica da defesa que pode dar às leis e aos direitos um valor, para nós, indispensável. O direito não é nada se é vivificado na defesa que o provoca; e apenas a defesa atribui, validamente, força à lei (...) Trata-se, com efeito, de inscrever a vida , a existência, a subjetividade e a realidade mesma do indivíduo na prática do direito. Defender-se não quer dizer se autodefender. A autodefesa significa querer fazer justiça a si mesmo, quer dizer identificar-se com uma instância de poder e prolongar, baseado em sua própria autoridade, suas ações. Defender-se, ao contrário, é recusar-se ao jogo das instâncias de poder e servir-se do direito para limitar suas ações. Assim entendida, a defesa é um valor absoluto. Ela não seria limitada ou desarmada pelo fato de que a situação fora outrora pior, ou poderia ser melhor mais tarde. Não nos defendemos senão no presente: o inaceitável não é relativo".
Em tempos de vigilância e limitação de liberdades como associação e expressão, teria outra lição mais valor?
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