Que democracia queremos? O debate em torno da Política Nacional de Participação Social


O principal debate que tem ocupado as mentes dos juristas brasileiros nas últimas semanas é a Política Nacional de Participação Social. Desde que foi publicado o Decreto 8.243, em 26 de maio de 2014, acadêmicos e professores têm discutido se o método de participação social implementado pelo Executivo é legítimo e desejável. O debate, entretanto, não é somente acadêmico. Há uma verdadeira polarização motivada por fatores político-partidários.

A oposição aproveita o momento para criticar o caráter supostamente antidemocrático da criação da política via decreto. Eles alegam que a política nacional foi criada sem diálogo com o Legislativo e a sociedade civil. Afirmam, também, que a procedimentalização da participação social na formulação de políticas públicas seria competência do Congresso Nacional. Por ser matéria de "ordem processual" (artigo 22, CF), a política de participação social deveria ser criada por Lei, seguindo as regras do processo legislativo (artigo 59 em diante, CF). 

Os defensores do governo, por outro lado, argumentam que a política aprofunda a fusão de democracia representativa e democracia direta, nos termos da Constituição. Alegam que é competência da Presidente da República dispor, mediante decreto, sobre a organização e funcionamento da Administração Pública (artigo 84, VI, a, CF). Argumentam, também, que a "participação social como método de governo" tem sido estudada pelo governo federal, e discutida com a sociedade civil, há anos. Como argumentam pesquisadores do IPEA, a implementação da política é resultado de um longo processo de debates sobre a "disseminação de formas de interação e colaboração de cidadãos, grupos da sociedade e atores privados na formulação, implementação e monitoramento de políticas públicas".

Entender as críticas e defesas do decreto é tarefa central para o cidadão brasileiro. É preciso ir além das matérias produzidas pelos grandes veículos de comunicação para formulação de um juízo de valor crítico sobre a política nacional.

Uma visão geral da política nacional de participação social
Audaciosamente, o que o decreto faz é criar diretrizes para a formulação, execução, monitoramento e avaliação de programas e políticas públicas. Seu objetivo é consolidar a participação social como método de governo. Seu princípio norteador é a ideia de "complementariedade, transversalidade e integração entre mecanismos e instâncias da democracia representativa, participativa e direta".

A leitura e compreensão do decreto é obrigatória para todos aqueles interessados em políticas públicas e no debate sobre o aprofundamento da experiência democrática brasileira. Os 22 artigos que compõem a norma jurídica propõem mudanças importantes, especialmente para aqueles que acreditam que é possível "promover e consolidar a adoção de mecanismos de participação social nas políticas e programas de governo federal".

Basicamente, o Decreto 8.243/2014 tenta organizar e sistematizar diretrizes para que a Administração Pública considere, no momento de criação e avaliação de políticas públicas, as instâncias e mecanismos de participação social. Para tanto, a política oferece um "cardápio institucional" para os gestores públicos:

  • conselho de políticas públicas (instância colegiada de diálogo entre sociedade civil e governo para promover a participação no processo decisório);
  • comissão de políticas públicas (instância colegiada entre sociedade civil e governo em torno de objetivo específico);
  • conferência nacional (instância periódica de debate, formulação e avaliação sobre temas específicos, com participação de representantes do governo e da sociedade civil);
  • ouvidoria pública federal (instância de controle e participação social responsável pelo tratamento das reclamações, solicitações, denúncias e elogios relativos às políticas e aos serviços públicos);
  • mesa de diálogo (mecanismo de debate e negociação com participação de setores da sociedade civil e do governo para prevenir e solucionar conflitos sociais);
  • fórum interconselhos (mecanismos para diálogo entre representantes dos conselhos e comissões de políticas públicas);
  • audiência pública (mecanismos participativo de caráter presencial, consultivo e aberto, para subsidiar decisões governamentais);
  • consulta pública (mecanismo participativo de caráter consultivo para receber contribuições por escrito da sociedade civil sobre determinado assunto); e
  • ambiente virtual de participação social (mecanismos de interação social que utiliza tecnologias de informação e de comunicação, em especial a internet, para promover o diálogo entre administração pública federal e sociedade civil).
É interessante notar que o governo utiliza um conceito de sociedade civil para implementação da política. Diz o decreto que entende-se por sociedade civil "o cidadão, os coletivos, os movimentos sociais institucionalizados ou não institucionalizados, suas redes e suas organizações". Para muitos cientistas políticos e sociólogos, essa é uma resposta do governo aos protestos de junho de 2013 -- que impulsionaram a pulverização de coletivos e movimentos não institucionalizados (em rede) em todo o país.

Os aspectos mais polêmicos do decreto, sem dúvidas, estão nas inovações institucionais dos artigos 7º, 9º e 19. Eles tratam, respectivamente, do Sistema Nacional de Participação Social (SNPS), coordenado pela Secretaria-Geral da Presidência da República; do Comitê Governamental de Participação Social (CGPS), órgão de assessoria técnica e administrativa da Secretaria-Geral da Presidência da República; e a Mesa de Monitoramento das Demandas Sociais, uma instância colegiada interministerial responsável pela "coordenação e encaminhamento de pautas dos movimentos sociais e pelo monitoramento de suas respostas".

É justamente pelo teor das mudanças -- que tenta coordenar a implementação da política de participação social pela Secretaria-Geral da Presidência da República -- que a oposição tem feito tanto alarde. Entretanto, as críticas não se limitam a esse aspecto "centralizador" de monitoramento das demandas dos movimentos sociais.

Para maior clareza analítica, as críticas ao decreto podem ser separadas entre críticas procedimentais, voltadas à forma como a norma foi criada, e críticas substanciais, voltadas ao conteúdo da política. Vale a pena aprofundar a análise das críticas a partir dessas lentes de observação.

Os argumentos da oposição: críticas procedimentais e substanciais
Como apontado por Ramon dos Santos no texto Participação social e democracia representativa: os erros da direita, a revista Veja e o Estadão atacaram o decreto dizendo que o Partido dos Trabalhadores estava arruinando a democracia representativa ao "extingui-la por decreto". Para esse setor da mídia, o decreto seria "repleto de barbaridades jurídicas", pois tornaria "dispensável o Poder Legislativo" ao implementar autoritariamente a participação direta.

Tais críticas já foram rebatidas por Ramon e não merecem maiores comentários. Aliás, elas são muito frágeis em conteúdo. Quais seriam as barbaridades jurídicas do decreto?

Esse ponto tem sido avançado por figuras públicas da área jurídica. Ives Gandra Martins, em um depoimento gravado para a Fecomércio, alegou categoricamente que o PT demonstrou sua "vocação antidemocrática" ao tentar instituir um "modelo bolivariano" de República. Segundo Ives Gandra, o decreto cria uma separação entre poderes de primeira ordem (povo e Executivo) e poderes de segunda ordem (Legislativo, Ministério Público e Judiciário) -- aos moldes do desenho institucional de Venezuela e Equador. Por tal motivo, a política nacional feriria o artigo 2º da Constituição brasileira, que trata da separação de poderes entre Executivo, Legislativo e Judiciário -- poderes independentes e harmônicos.

Essa parece ser uma crítica substancial, pois não se limita à forma de criação da norma (via decreto ou lei). Mas será que a simples procedimentalização da instâncias deliberativas implicaria no esvaziamento do Legislativo? E o que dizer das agências reguladoras criadas durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, órgãos com capacidade normativa também abertos a canais de participação?

Esse ponto foi levantado por José Rodrigo Rodriguez, pesquisador do Cebrap: "Na presença de agências reguladoras e mecanismos de participação social, vale menos tomar aquele cafezinho exclusivo com o Ministro ou com o Secretário, para falar sobre seus interesses, do que debater publicamente as medidas a serem tomadas diante de outros representantes da sociedade civil. Quem defende a importância das agências reguladoras não pode se opor à Política Nacional de Participação Social sem entrar em contradição consigo mesmo". Para Rodriguez, "a eventual perversão dos mecanismos de participação social não invalida suas possibilidades democráticas".

Nesse sentido, o argumento de Ives Gandra é frouxo. Não é pela possibilidade de perversão dos conselhos de participação -- que poderiam ser inicialmente ocupados por movimentos sociais mais próximos ao PT -- que nós devemos abandonar a crença em seu potencial democrático. Os mecanismos de participação social não exterminam o Legislativo e não corroem a democracia. Pelo contrário, ampliam o potencial democrático da administração pública brasileira.

Uma segunda crítica ao decreto foi formulada por Carlos Ari Sundfeld, professor de direito administrativo da Fundação Getulio Vargas. Para Sundfeld, trata-se de um decreto autoritário, com "vagas declarações democráticas, mas sujeita ao puro arbítrio da cúpula a participação social em assuntos administrativos. (...) O texto adota o método do sindicalismo da era Vargas para gerar uma sociedade civil chapa branca, que fale por meio de instâncias sob controle social". Segundo Sundfeld, é um erro criar uma estrutura de controle e monitoramento dos movimentos sociais por um decreto. O problema, enfim, estaria na arquitetura institucional de controle social, que poderá minar a espontaneidade dos grupos da sociedade civil.

As críticas de Sundfeld também são substanciais, mas não levam ao raciocínio de inconstitucionalidade do decreto -- algo que outros administrativistas apontam, através da crítica procedimental de competência do Legislativo para criar normas sobre um processo administrativo normativo.

Tais críticas procedimentais são rebatidas por juristas como Pedro Abramovay, que sustentam que o governo nada mais faz do que avançar formas já existentes de participação social, previstas na Constituição. Segundo Abramovay, o "decreto toma o cuidado de não afirmar, em nenhum momento, que essas novas formas de participação vão gerar obrigação para as pessoas ou para os poderes. Ele deixa claro que os órgãos do Poder Executivo vão ter que 'considerar' (é essa a expressão utilizada) as instâncias de participação social. Ou seja, vão ter que dialogar, ouvir, responder publicamente as razões de se aceitar ou não recomendações feitas por essas instâncias. A dúvida aqui, portanto, não é se o decreto põe em risco a democracia representativa ou se ele é inconstitucional. O que devemos nos perguntar é se esses mecanismos são suficientes - e eficientes - para garantir uma participação efetiva".

Ao que tudo indica, os opositores sentem um certo medo da possibilidade de coordenação estatal dos métodos de participação social na formulação de políticas públicas -- o que parece estar na contramão de literatura de ciência política normativa, que defende o aprofundamento da experiência democrática mediante a institucionalização de instâncias de participação na formulação de políticas.

As questões que devemos nos fazer são: nós queremos ou não o aprofundamento da experiência democrática via participação social? Quem são os opositores dessa política e por que eles têm medo do povo? Como garantir que a coordenação dessa governança pública seja transparente e preste contas à sociedade civil? Como aperfeiçoar essa política nacional e garantir voz aos afetados pelas políticas públicas? Como empoderar o cidadão para que ele faça parte da criação, avaliação e monitoramento das políticas?

O debate é extremamente importante. As movimentações das próximas semanas -- seja o projeto de decreto legislativo de Alvaro Dias, que pretende anular o decreto presidencial; seja uma eventual ação direta de inconstitucionalidade levada ao Supremo Tribunal Federal -- irão definir os rumos da democracia brasileira.

O manifesto da FDUSP: em defesa da participação social
Por se tratar de uma discussão política imbricada em questões jurídicas, o professor Fábio Konder Comparato -- um dos juristas e militantes mais ativos nos debates sobre a redemocratização brasileira em meados da década de 1980 -- liderou recentemente um movimento de defesa da política nacional de participação social.

Ao lado de outros professores de dentro e fora da USP -- como Fabio Nusdeo, Maria Victoria Benevides, Calixto Salomão Filho, Leonardo Avritzer, Gilberto Bercovici, Celso Campilongo, José Geraldo de Sousa Junior, Adrian Gurza Lavalle, Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer, Diogo Coutinho, Conrado Hübner Mendes, entre outros --, Comparato elaborou um Manifesto de Juristas e Acadêmicos em Favor da Política Nacional de Participação Social, que tem circulado nos e-mails de acadêmicos das principais instituições do Brasil.

Eis o teor do manifesto:

“Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” art. 1º. parágrafo único, da Constituição da República Federativa do Brasil.
Em face da ameaça de derrubada do decreto federal n. 8.243/2014, nós, juristas, professores e pesquisadores, declaramos nosso apoio a esse diploma legal que instituiu a Política Nacional de Participação Social.
Entendemos que o decreto traduz o espírito republicano da Constituição Federal Brasileira ao reconhecer mecanismos e espaços de participação direta da sociedade na gestão pública federal.
Entendemos que o decreto contribui para a ampliação da cidadania de todos os atores sociais, sem restrição ou privilégios de qualquer ordem, reconhecendo, inclusive, novas formas de participação social em rede.
Entendemos que, além do próprio artigo 1º CF, o decreto tem amparo em dispositivos constitucionais essenciais ao exercício da democracia, que prevêem a participação social como diretriz do Sistema Único de Saúde, da Assistência Social, de Seguridade Social e do Sistema Nacional de Cultura; além de conselhos como instâncias de participação social nas políticas de saúde, cultura e na gestão do Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza (art. 194, parágrafo único, VII; art. 198, III; art. 204, II;  art. 216, § 1º, X; art. 79, parágrafo único).
Entendemos que o decreto não viola nem usurpa as atribuições do Poder Legislativo, mas tão somente organiza as instâncias de participação social já existentes no Governo Federal e estabelece diretrizes para o seu funcionamento, nos termos e nos limites das atribuições conferidas ao Poder Executivo pelo Art. 84, VI, “a” da Constituição Federal.
Entendemos que o decreto representa um avanço para a democracia brasileira por estimular os órgãos e entidades da administração pública federal direta e indireta a considerarem  espaços e mecanismos de participação social que possam auxiliar o processo de formulação e gestão de suas políticas.
Por fim, entendemos que o decreto não possui inspiração antidemocrática, pois não submete as instâncias de participação, os movimentos sociais ou o cidadão a qualquer forma de controle por parte do Estado Brasileiro; ao contrário, aprofunda as práticas democráticas e amplia as possibilidades de fiscalização do Estado pelo povo.
A participação popular é uma conquista de toda a sociedade brasileira, consagrada na Constituição Federal. Quanto mais participação, mais qualificadas e próximas dos anseios da população serão as políticas públicas. Não há democracia sem povo. 

Um posicionamento e uma agenda
Subscrevo ao manifesto e acredito que a política aprofunda as práticas democráticas no Brasil. É claro que os argumentos de críticos como Carlos Ari Sundfeld são válidos e nos levam a questões centrais sobre como ocorrerá o monitoramento das demandas sociais pelo governo. Entretanto, nossa resposta deve ser a de avançar na democratização do governo e exigir mais transparência e acesso aos dados (publicação de relatórios oficiais e accountability).

Felizmente, estamos distantes da sociedade brasileira da Era Vargas. Somos mais urbanizados, educados, críticos e exigentes -- isso é inegável. Estamos empoderados com novos instrumentos. Os protestos de junho demonstraram esse desejo de participação na política e aprimoramento das políticas públicas. Experiências como o Marco Civil da Internet mostraram que é possível sim um novo método para a produção normativa no Brasil; um método de criação de leis e normas aberto à população, transparente e capaz de aproveitar o potencial da tecnologia para experimentar formas de participação social.

Não devemos ter medo de experimentar formas de aprofundar a democracia brasileira. Por que não podemos estimular a participação social nas empresas públicas, como a Embrapa e o BNDES? Por que não levar a experiência dos Cafés Hackers e Laboratórios Hackers -- formas inovadoras de participação social e monitoramento de gastos públicos -- para outras Prefeituras, para além de São Paulo? Qual é o problema em considerar esses métodos de participação social em toda a Administração Pública?

O decreto é apenas o primeiro passo para um debate robusto sobre participação social na administração pública. É um estímulo ao debate sobre experimentalismo democrático, ainda tímido e incipiente no Brasil. Não se trata de estar contra ou a favor do PT. Precisamos pensar se desejamos levar adiante a ideia de cruzamento de democracia representativa com instrumentos de democracia direta e participativa. Se sim, precisamos assumir de vez a tarefa de imaginação, discussão e execução dos arranjos institucionais que poderão concretizar esse ideal normativo. O desafio está posto, com toda a dificuldade e incerteza que lhe são inerentes.

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