[ por Anna Carolina Papp, em colaboração para o e-mancipação ]
Na tarde da última quinta-feira, segundo dia
do NETmundial -- evento global realizado em São Paulo para discutir princípios
para a governança da internet --, membros de uma comitê técnico discutiam em uma sala a versão final do documento cuja função seria funcionar como uma carta de princípios norteadores para uso e gestão da rede. Nas sessões plenárias, abertas a sugestões ao texto, muitos participantes evocavam um endurecimento da defesa à privacidade e menção clara ao megaesquema norteamericano de vigilância em massa denunciado pelo ex-agente da NSA Edward Snowden. A sugestão era acrescentar ao texto um parágrafo que afirmasse categoricamente que a vigilância em massa ia contra os direitos humanos.
Se no grande salão do Hyatt, palco das
sessões plenárias abertas, o clima predominante era de diplomacia apesar das
divergências entre países, naquela sala afastada acima do restaurante francês
do hotel, os ânimos de homens de paletó começavam a se exaltar. É nesse
momento que se percebe que, no jogo político, uma obviedade jamais é
suficientemente óbvia. Começa um burburinho e representantes dos Estados Unidos
rapidamente contestam a alteração.“O texto fala que
a vigilância é sempre uma violação da privacidade, e os EUA não concordam com
isso.” Não é preciso pensar muito para supor qual posicionamento venceu.
O texto final, em outras palavras, afirma que a vigilância, para ser
realizada, deve estar em conformidade com a legislação internacional de
direitos humanos.
Outro ponto abordado -- e notadamente o maior
impasse para consenso no evento -- foi a questão de neutralidade. O ministro das
Comunicações Paulo Bernardo, que presidia a comissão, afirmou: “Nós acabamos de aprovar uma lei que foi discutida por
mais de três anos [o Marco Civil] e, para o governo brasileiro, ficou muito
claro que a neutralidade de rede é importante, uma demanda dos cidadãos. Bom,
acredito que já podemos passar para o próximo tópico”, afirmou talvez
ingenuamente o ministro, tentando dar a discussão como encerrada. A oposição
que se seguiu foi ferrenha, sobretudo da parte dos Estados Unidos e da Índia.
Resultado: a defesa ao princípio ficou fora do texto, com discussão prevista
para o Fórum de Governança da Internet (IGF), em setembro, na Turquia.
Paul Mitchell, representante da Microsoft, afirmou na sessão
plenária que se opunha a um parágrafo do rascunho da carta que, apesar de não
usar a expressão “neutralidade”, previa “tratamento técnico igualitário
de todos os protocolos e dados”. “É ótimo que o Brasil tenha chegado a um
consenso e aprovado a neutralidade em forma de lei, mas ainda não há consenso
global sobre o tema. Assim como vocês tiveram tempo de sobra para discutir a
questão, nós também precisamos”, disse ele ao Link.
Infelizmente, creio que Mitchell estava errado. A garantia do
princípio da neutralidade de rede no Marco Civil da Internet (ou lei nº
12.965), que o relator Alessandro Molon sempre definiu como “o coração do
projeto”, foi certamente uma vitória brasileira. É ir na contramão de países como os Estados Unidos, que
discutem legalizar a cobrança “vias rápidas” de acesso a um conteúdo específico. No entanto, a neutralidade ainda está longe de se tornar
consenso por aqui. Mal o Marco Civil foi sancionado e as operadoras de telefonia já
buscam formas de burlar o princípio, apelando sobretudo
para a gratuidade e o caráter promocional de certos serviços, cuja parceria não
significaria, em sua visão, discriminação de tráfego por velocidade. No
contra-ataque, Molon afirmou que o “princípio da neutralidade é cristalino” e
que “não
há como contornar o que está no Marco Civil”.
Está então declarada a guerra das letras, das interpretações. A
caça às brechas, às ambiguidades, às meias-palavras. É nesse sentido que a
regulamentação do Marco Civil terá papel fundamental, pois é por decreto que
serão ditadas as exceções do princípio, bem como suas formas de aplicação. E
este é um debate do qual os “stakeholders” não podem ficar de fora, com
destaque para a sociedade civil, que acompanhou o projeto desde o início e o
despertou da letargia parlamentar.
Muito se discute sobre os preços do consenso. A sociedade civil
classificou o documento final do NETmundial como “decepcionante”,
por deixar de fora a neutralidade de rede, omitir-se em relação à vigilância em
massa, incluir proteção à propriedade intelectual, entre outros. Isso
invalidaria a carta de princípios e o fato de mais de 90 países terem se
reunido para discutir os rumos da internet?
O mesmo debate se estende ao Marco Civil. No longo caminho de
peregrinação rumo ao consenso, deixamos três ou quatro pontos delicados em
aberto ou resolvidos de modo insatisfatório, com
destaque para o artigo 15, que obriga provedores de internet a guardar
dados dos usuários por seis meses. “Ainda vamos pagar caro por esse Marco Civil
manco”, ouvi alguns afirmarem. Seriam esses
deslizes suficientes para transformar a Constituição da Internet em um cavalo
de tróia?
Copo meio cheio?
A analogia é mais
antiga do que andar para frente, mas trata-se da velha questão de ver o copo
meio vazio ou meio cheio. O avanço do Marco Civil é inegável – é a primeira
legislação que, em vez de ser estritamente criminal ou punitiva, garante de
antemão direitos básicos dos usuários na rede, bem como princípios de uso e
gestão. É uma lei que, de cara, nos protege de uma série de abusos já
existentes e recorrentes, tais como a remoção massiva e indiscriminada de
conteúdo online, ou a guarda de logs por tempo indeterminado. Se ela é boa ou
ruim, se rompe a presunção de inocência, é outra questão; no entanto, é
esquecido que, apesar da infeliz obrigatoriedade – que sim, também me preocupa
– a lei traz ao menos um prazo para a retenção, o que hoje sequer existe.
Apesar de todo o seu caráter inclusivo,
democrático e participativo, o Marco Civil não foge ao jogo político, bem como
àquilo que é simultaneamente bônus e ônus da democracia, que são os trâmites do
consenso. Nesse caso específico foi ainda pior, uma vez que, em sua reta final,
o Marco Civil foi sequestrado por maniqueísmos partidários baratos típicos de
um ano eleitoral, em que era ignorado todo o histórico plural de construção do
projeto – cujo início remonta a meados de 2006, 2007. Essa história
de construção quase que artesanal ainda é amplamente desconhecida, uma vez
que o discurso circulante de mera censura governamental ainda ecoa (e alto)
diariamente em nossas redes sociais.
Sintetizo minha visão de “copo meio cheio” na
frase que Paulo Rená, jurista e um dos pais do projeto de lei (ops, lei!), me
disse ao telefone instantes após a aprovação na Câmara: “Não é o melhor dos
mundos, mas certamente é o melhor do mundo.” E acredito piamente nisso. Se a
luta pelo consenso deixou o Marco Civil “manco”, vale lembrar que a sanção não
é o fim, mas apenas a primeira etapa no processo de aderência da legislação à
sociedade.
Próximos passos
Segundo a presidente
Dilma Rousseff, o processo de regulamentação do Marco Civil, que deve começar
logo mais, será
aberto à discussão e participação popular. É preciso cobrar insistentemente
essa promessa, bem como revisitar os fantasmas engavetados do anteprojeto de
dados pessoais e a reforma do direito autoral -- que se legislados em
paralelismo com o Marco Civil, deixam-no muito mais amarrado e coerente. Além
do mais, nossos olhos agora devem se voltar ao Judiciário, que terá um papel
crucial nessa fase embrionária, criando -- espero -- bons precedentes da
aplicação da lei.
Trago a mesma reflexão para o NETmundial e seu documento. Como
disse Carlos Affonso Souza, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do
Rio de Janeiro, o trunfo do evento não é sua repercussão, tampouco a carta de
princípios. “A maior vitória do NETmundial é anterior a ele, ou seja, é ele
existir”, disse. Ao fim do evento, sob a ótica simbólica, creio que pude
entender o que ele quis dizer. Como jornalista, foi de fato empolgante ver
líderes do mundo inteiro discutindo a arquitetura da rede, bem como o que seria
a “web que queremos”, como expôs
de forma tão fantástica a ativista Nnenna Nwaknma. “Vocês precisam nos
ajudar a descobrir como fazer algo parecido [ao Marco Civil] por lá [África]!”,
disse-me ela. Foi memorável ouvir Vint Cerf, pai da internet, me dizer poucas
horas antes da votação no Senado que estava torcendo para a lei passar, bem
como foi um privilégio conhecer pessoalmente pais e mães do Marco Civil, com
quem conversara picadinho tantas vezes ao longo dos últimos dois anos. Uma
coisa era clara: as discussões estavam longe de serem encerradas por ali.
A passos de tartaruga, as coisas estão
mudando. E esse frenesi, que poderia estar acontecendo em qualquer outro lugar
do mundo, por alguma razão, desponta aqui, no nosso quintal. É necessário ver o
consenso, ainda que não satisfatório em sua totalidade, como um meio, e não
como fim. A batalha continua, os debates continuam, pois o jogo de interesses
persiste, talvez até mais forte. Se nenhuma obviedade jamais é suficientemente
óbvia, que exponhamos a internet que queremos de novo e de novo e de novo.
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