[ por Raquel de Mattos Pimenta, em colaboração para o e-mancipação ]
Pretendo
com esse texto fazer algumas provocações sobre o papel atribuído às mulheres em
políticas econômicas e sociais para o desenvolvimento. Esse papel é estabelecido
por formuladores e implementadores de políticas públicas e também por juristas
que constroem o arcabouço normativo de tais políticas. Minhas motivações para
escrever esse texto são a ausência de reflexões mais aprofundadas sobre
questões de gênero nas discussões brasileiras sobre direito e políticas
públicas e os trabalhos da Professora Kerry
Rittich.
Em 1790,
Mary Wollstonecraft publicou uma das primeiras obras do feminismo moderno,
chamada “A Vindication of the
Rights of Women”. A
narrativa de Wollstonecraft foi sem dúvida influenciada pelos desdobramentos da
revolução francesa, a ideia de igualdade e a supremacia do indivíduo. Partindo
da premissa que “o intelecto sempre irá governar”, a autora propunha que a
igualdade entre homens e mulheres seria alcançada por meio da educação das
mulheres, transformando-as em sujeitos ativos das mudanças econômicas e sociais
da sociedade. Hoje podem parecer ideias simples, mas entender que mulheres poderiam
ser agentes de transformação da sociedade foi um pioneirismo, que deu pontapé
inicial na discussão da relação nada fácil entre gênero e desenvolvimento.
Essa
relação se desenrolou de forma não linear ao longo do tempo. Vou dar um salto
para as décadas de 1960-1970. No contexto das reformas desenvolvimentistas em
diversos países, a ideia inicial de Wollstonecraft foi retomada. Era o Women In Development (WID), movimento teórico propulsionado
por análises como as de Ester
Boserup, Irene Tinker e outras (os). Elas buscavam combinar argumentos de igualdade com
argumentos de eficiência econômica para criticar as formas de planejamento do
desenvolvimento em voga. Para elas, os formuladores de políticas públicas eram
incapazes de enxergar as mulheres como agentes de transformações produtivas que
impactavam na vida de crianças, idosos, doentes e dos próprios homens.
Em outras
palavras, o WID acreditava que alocar recursos para mulheres traria benefícios
econômicos e sociais a todos. Por exemplo, educação de mulheres não traria
apenas o empoderamento individual de cada uma, mas também daria causa a diminuição
das taxas de fertilidade e alteraria a distribuição dos recursos domésticos,
ocasionando aumento de consumo de proteína.
O WID foi
abraçado pela Organização das Nações Unidas na Década da Mulher (1976-1985) e
rapidamente se espalhou em outras esferas, com as agências nacionais (USAID) e
em programas do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional. Nessas agências, argumentos do WID se
encontraram com estratégias de focalização do combate à pobreza e promoveram muitos
dos programas conduzidos em escala mundial como concessão de microcrédito ou
transferência de renda condicionada para os mais pobres dentre os pobres – as
mulheres.
Por um
lado, o WID e os processos que o acompanharam diminuíram a resistência dos
burocratas do desenvolvimento às causas feministas. Por outro, ao ancorar a
análise na eficiência de alocação de recursos às mulheres, o WID mudou a ênfase
das necessidades das mulheres no desenvolvimento para o interesse do
desenvolvimento sobre as mulheres[1].
A teoria
feminista seguiu em frente: muitas(os) autoras(es) e abordagens vieram depois do
WID. Porém, o debate permanece muito atual: Qual a visão que temos, em nossa
teoria e prática, sobre o papel das mulheres nas políticas de desenvolvimento?
Será que atribuímos às mulheres a condição de agentes de transformação da
sociedade ou queremos que elas atuem como veículos multiplicadores de efeitos
úteis ao desenvolvimento? Ou as duas proposições são complementares?
Pode
parecer um debate abstrato, mas ele é bem concreto para formulação de políticas
econômicas ou sociais na atualidade. No Brasil, uma das principais políticas
sociais dos últimos dez anos, o Programa Bolsa Família é prioritário à mulher. Vale a
provocação: A mulher recebe os benefícios para aumentar seu poder de barganha
(empoderamento) ou porque reforçar o papel das mulheres como responsáveis pela
esfera doméstica é útil para auxiliar o Estado na sua tarefa de cumprir as condicionalidades?
Essa
pergunta tem uma consequência muito séria: Estamos ou não formulando políticas
que reforçam os papéis tradicionais atribuídos às mulheres? Estão faltando
políticas que empoderam as mulheres a exercer outros papéis?
Acredito que as(os) juristas brasileiras(os) não podem se furtar desse
debate ao analisar direito e políticas públicas. As questões de gênero não
estão vencidas e não são secundárias ao desenvolvimento sócio-econômico que
almejamos.
[1] Essa é uma
frase famosa de um paper de Goetz, A.M (1994a:30) “Demonstrating the efficiency
dividends of investing in women meant that WID advocates shifted the emphasis
away from women’s needs and interests in development to calculating what
development needs from women”
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