[ por Pedro Ramos, em colaboração para o e-mancipação ]
Na
semana em que novamente se promete uma votação do Marco Civil da Internet na
Câmara, o debate em torno da neutralidade da rede parece ainda não ter esgotado
os ânimos dos nossos representantes. Enquanto um lado, atualmente liderado pelo
partido do governo e apoiado por um expressivo setor da sociedade civil,
defende a atual redação da neutralidade da rede, um outro grupo – capitaneado
por uma dissidência da base aliada do governo e com apoio de empresas de
telecomunicação, provedoras de acesso à Internet via banda larga fixa e mobile
– opõe-se não só a redação proposta, mas ao próprio conceito de neutralidade consubstanciado
no projeto de lei.
Entre
os diversos argumentos utilizados pelos opositores da neutralidade da rede no
debate brasileiro (e também internacional), destaca-se o argumento de que uma
regra de não-discriminação de dados teria consequências adversas para a
inovação e a competição no setor de tecnologia da informação (TI), diminuindo
investimentos e reduzindo incentivos para a expansão do acesso à Internet no
país.
Esse
artigo busca apresentar algumas evidências empíricas para analisar esse
argumento – o efeito da neutralidade da rede sobre a inovação e competição.
O
setor de provisão de acesso à Internet no Brasil é extremamente concentrado. Na
banda larga fixa, 87,8% dos acessos são realizados através de quatro companhias
(NET, Vivo, Oi e GVT), segundo dados da Anatel. Na banda larga móvel (3G e 4G),
esse número sobe para 99,1%, divididos
entre Vivo, Oi, Claro e TIM. Todavia, quando falamos do outro extremo do
mercado de TI – ou seja, as empresas provedoras de serviços e aplicações de TI,
e que dependem do acesso à Internet para a oferta de seus serviços –
encontramos um quadro bastante diferente, segundo dados de 2010
disponibilizados pelo Ministério da
Ciência e Tecnologia (MCTI):
A
grande dispersão de agentes econômicos e as baixas barreiras de entrada no
setor de software e serviços de TI é um dos fatores chaves que levaram o
governo brasileiro a implementar, em 2012, uma série de políticas públicas
estratégicas para encorajar investimentos e incentivar o desenvolvimento dessa
indústria – o chamada “Programa TI Maior”. Entre essas políticas está o
Programa Start-Up Brasil, lançado com o objetivo de desenvolver o ecossistema
de startups de base tecnológica no país. Através de uma estrutura de cooperação
entre agentes públicos e privado (especialmente aceleradoras e fundos de
investimento semente), o Start-Up Brasil fornece a seus participantes uma rede
de mentores, investidores, fundos de P&D, consultoria estratégica e até R$
200 mil como capital semente para as startups. Ainda que a alocação de recursos
públicos pareça pequena, as primeiras duas rodadas do programa apresentam
números interessantes: 1.617 empresas inscreveram-se para o programa, sendo 414
estrangeiras e apenas 118 aprovadas, o que tem levado o governo a já considerar
futuras expansões do programa.
De
fato, ainda se desconsiderarmos as iniciativas realizadas pelo governo, podemos
perceber que o ecossistema brasileiro de startups está vivendo um momento
promissor. De acordo com o site Dealbook, 456 investimentos semente e de venture capital foram realizados no
setor de software e serviços de TI entre 2011 e 2013, o maior número desde o
surgimento da Internet comercial no Brasil. Esses números também representam
uma parcela importante da própria indústria de private equity e venture
capital (PE/VC) no Brasil: segundo dados da FGV, o setor de TI e
eletrônicos representa 20,5% do portfólio dos fundos de PE/VC no Brasil, de
acordo com o último censo do setor.
Muitos
fatores podem explicar a ascensão do setor de software e serviços de TI no
Brasil. Uma maneira de tentar esclarecer esse crescimento é através de uma
ótica de arquitetura de rede. Como tem sido amplamente debatido na academia
desde os anos 1990, diferentes arquiteturas de sistemas exercem diferentes efeitos
na taxa e na concentração da inovação. Em uma arquitetura baseada em um núcleo
central de controle (core-centred
architecture), a inovação será
guiada pelos interesses e motivações dos operadores da rede, que terão a
habilidade de controlar a taxa e o tipo de inovação que desejam, bloqueando e
restringindo a adesão de novas tecnologias a suas redes e, em última instância,
escolhendo àquelas tecnologias que serão vencedoras e àquelas que não serão sequer
participantes da rede. Já em uma arquitetura em que não há um núcleo central de
controle (end-to-end architecture),
as decisões seria fundamentalmente guiadas pelos novos participantes no nível
de aplicações, o que certamente traz maior diversidade de tecnologias e
incertezas sobre quais irão ter sucesso ou não – um ambiente ideal inclusive
para o próprio conceito de investimento de venture
capital.
Até agora, a arquitetura da rede de Internet no
Brasil tem sido desenvolvida em um modelo muito mais próximo do paradigma do end-to-end, ainda que haja evidências de
certos controles mais arbitrários dos operadoras da rede, como alguns
incidentes envolvendo o Skype no início dos anos 2000, diferenças de velocidade
no download através do protocolo Bittorrent identificadas pela Glasnost e a
recente iniciativa de operadoras de celular em oferecer certos “planos
patrocinados” para certas aplicações. Destarte, não nos parece precipitado
afirmar que a imparcialidade (ou inércia) dos operadores das redes, os baixos
custos de inovação no setor e o ambiente de diversidade e incerteza nesse
mercado podem, numa perspectiva de arquitetura de rede, ter exercido um papel
fundamental para o crescimento do setor de software e serviços de TI no Brasil.
Seguramente,
provedores de acesso estão certos quando dizem que uma regra de neutralidade
que limita a sua capacidade de controle na arquitetura na rede e impede-os de
bloquear ou discriminar aplicações e conteúdos específicos irá trazer efeitos
adversos para o setor de telecomunicações. A neutralidade da rede, nesse
sentido, limitará os potenciais de eficiência que os provedores têm hoje à sua
disposição, possivelmente reduzindo seus lucros a longo prazo, aumento custos
de gerenciamento e, assim, reduzindo incentivos para o desenvolvimento de uma
infraestrutura de telecomunicação mais ampla e de melhor qualidade.
Parece
claro que a neutralidade da rede é uma questão de escolha: é, no fundo, um trade-off entre incentivar o setor de
software e serviços de TI, reduzindo o potencial econômico do setor de
telecomunicações; ou promover o setor de telecomunicações, reduzindo incentivos
no lado das aplicações de Internet.
Todavia,
é necessário enfatizar que, independente se a regra de neutralidade da rede
prevista no Marco Civil for aprovada ou não, há uma série de mecanismos
regulatórios disponíveis para incentivar o desenvolvimento da infraestrutura de
telecomunicações no país, alguns deles já são aplicados, e que podem diminuir
os efeitos negativos que uma regra de neutralidade traria ao setor de telecom.
Desde 2012, o governo lançou um incentivo tributário para empresas interessadas
em construir infraestrutura de telecomunicações no país, e projetos
representando cerca de R$ 15 bilhões já foram cadastrados para elegibilidade no
regime. O Ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, tem também defendido
maiores incentivos tributários para as empresas de telecom, conforme
conferência realizado em setembro passado. E mesmo a controversa proposta que
obriga grandes empresas estrangeiras a armazenar dados pessoais em servidores
localizados no país poderia ter um efeito positivo indireto no setor, visto que
a Oi e a Vivo, as duas maiores empresas de provisão de acesso à Internet no
Brasil, recentemente anunciaram investimentos em data centers e serviços de cloud
focados em clientes corporativos.
Como dito acima, a neutralidade da rede é um debate sobre tomar um lado em favor do setor de software e serviços de TI. Como as evidências empíricas aqui apresentadas sugerem, o estabelecimento de uma regra de neutralidade no Marco Civil podem ter um efeito importante para proteger e incentivar os avanços realizados nesse setor e, enquanto uma arquitetura end-to-end é um paradigma vital para os provedores de aplicação, existem outros mecanismos à disposição para incentivar o setor de provisão de acesso e reduzir os efeitos adversos de uma regra de não-discriminação, sem interferir na arquitetura da rede. Mais do que isso, essa escolha também pode trazer um maior benefício social: a pulverização do setor de software e serviços de TI e o crescimento da cena empreendedora no setor sugere que proteger esse lado pode levar a uma maior distribuição de riquezas e atração de investimentos.
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