Enxergando tendências intelectuais: um experimento com o Google Ngram Viewer


O blog Sociais e Métodos é uma das páginas mais bacanas para quem se interessa por ciências sociais e métodos de pesquisa empírica. Com uma linguagem clara e objetivos pedagógicos, os autores do blog -- Rogério Barbosa, Guilherme Duarte e Patrick Silva -- tentam explicar para o público leigo e especializado como utilizar abordagens qualitativas e quantitativas para enxergar fenômenos sociais.

Recentemente, Guilherme Duarte publicou dois textos provocativos sobre tendências da literatura jurídica. Em novembro, Duarte fez um experimento com um código R para coleta de dados no Google Scholar. Seu propósito era "tentar levantar quantas publicações desde a década de 90 tinham um enfoque empírico". Nesse texto, ele mostra o boom da pesquisa empírica em diferentes áreas, mediante coleta de dados no repositório do Google com as palavras "direito" e "empirico/a".

Em um segundo texto, Duarte faz uma brincadeira com o Google Ngram Viewer -- ferramenta que permite a consulta rápida no banco de dados de livros digitalizados pela empresa nos últimos anos (como explica Rogério Barbosa, "o que ela faz é simplesmente contar palavras, mas em milhões de livros ao mesmo tempo — que são parte do acerco do Google Books. Ou seja, faz, de modo quase instantâneo, um procedimento simples de análise de conteúdo"). Ao utilizar as palavras "derecho constitucional" e "derecho civil" nos livros em em língua espanhola, Guilherme tenta enxergar as tendências da literatura jurídica, indicando o declínio do direito civil e o relativo aumento das pesquisas sobre direito constitucional (cf. 'Um pouco de História do Direito com o Ngram Viewer').

Resolvi brincar com a ferramenta e fazer alguns testes. A única limitação existente é que as pesquisas estão disponíveis para livros em inglês, espanhol, francês, italiano, alemão e russo. Não há critérios para busca dos livros em português.

Vamos ao primeiro teste. Pensemos em três pedagogos influentes, de diferentes nacionalidades: John Dewey (EUA), Jean Piaget (Suíça) e Paulo Freire (Brasil). Será que é possível identificar a influência de cada um na literatura de pedagogia e educação em diferentes países?

A ferramente é muito simples de usar. Para essa pequena investigação de tendência intelectual, basta digitar os três nomes (John Dewey, Jean Piaget, Paulo Freire) e determinar um critério temporal. Considerando a limitação para o ano de 2008, utilizarei o espaço de um século (1908-2008).

Vejamos o gráfico sobre os livros em língua inglesa.


Como era esperado, aparentemente existe uma influência maior de Dewey nos EUA. Entretanto, existem fortes indícios de uma maior influência de Paulo Freire em relação a Jean Piaget. Entre 1990 e 2000, há um pico de menções a Paulo Freire na literatura inglesa.

Se fizermos a mesma pesquisa nos livros de língua espanhola, há uma surpresa agradável. Há um momento na década de 1970 em que o nível de citações a Dewey, Piaget e Freire é praticamente o mesmo. Posteriormente, o pedagogo brasileiro torna-se muito mais citado na literatura de língua espanhola (de acordo com o repositório de milhões de livros do Google).


Interessante, não?

Vamos para um segundo teste. Tomemos dois teóricos sociais como referência: Jürgen Habermas e Roberto Mangabeira Unger. Será que é possível ver a influência de cada um deles a partir do número de citações em livros digitalizados pelo Google? Quem é mais conhecido, Habermas ou Unger?

Intuitivamente, podemos pensar que Habermas é muito mais lido e citado que Unger. Será que os testes confirmam essa hipótese? Vamos aos resultados.


Bingo. Hipótese confirmada. Note-se que Unger é um pouco mais lido no final da década de noventa e início da década de oitenta, período em que publicou a trilogia Politics (1987) e livros contra o neoliberalismo. Habermas, por outro lado, tornou-se muito mais citado e conhecido nos departamentos de filosofia, ciência política, sociologia e direito -- especialmente após a popularização da "teoria da ação comunicativa" e seus ensaios sobre democracia deliberativa.

O gráfico sobre a literatura espanhola mostra a diferença existente entre os dois autores. Aliás, é raro encontrar algum crítico de Unger de língua latina.


Façamos uma última brincadeira. É possível identificar a influência de autores brasileiros na literatura estrangeira? Quem é mais lido na língua inglesa, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro ou Celso Furtado? Existe alguma mudança significativa na literatura em espanhol?

Os resultados surpreendem. O impacto de Freyre na década de 1970 é visível. Celso Furtado também tem um "pico de influência" nesta década, declinando em seguida (nas referências em língua inglesa).


Já na literatura espanhola, Furtado torna-se muito mais influente do que Gilberto Freyre. Os motivos para isso podem ser vários: a íntima relação de Furtado com a CEPAL, a coesão de economistas latino-americanos, a relação de Freyre com a antropologia e sociologia de matriz anglo-saxônica.


O mesmo não ocorre com a literatura francesa. Entre os autores franceses, parece haver um "frenesi" recente com relação a Gilberto Freyre e um interesse recente -- e crescente -- com Sérgio Buarque de Holanda e sua interpretação sobre o Brasil. Vejamos o gráfico abaixo.


Obviamente, os dados do GNV não proporcionam evidências exatas, "sobretudo porque é possível ter um viés amostral nos livros digitalizados pelo Google" -- como relembra Guilherme Duarte.

Entretanto, os insights proporcionados por essa ferramenta nos ajudam a entender melhor nossa cultura e algumas tendências intelectuais. Esse é só o começo de um universo de possibilidades gerado pelo avanço da digitalização e do uso dos dados pelos instrumentos de programação.

É hora de explorarmos essas ferramentas, mesmo que por diversão. Faça o teste aqui.

2 comentários:

  1. Que ferramenta interessante essa da Google, hein? Não conhecia. Obrigado por postar essa "experiência"! Aliás, parabéns pelo blog. Sempre passo aqui para conferir seus escritos, e nunca me arrependo. Já utilizei vários deles para debates com meus alunos!

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  2. adorei!

    me diverti com o aplicativo!



    :)


    seu blog tá demais rafa!

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