Uma das expectativas do Marco Civil da Internet é o estímulo à mudança cultural e o respeito aos direitos. Trata-se de uma perspectiva liberal. A legislação define como fundamento maior o "respeito à liberdade de expressão". Essa reafirmação é importante, considerando a frágil proteção da liberdade de expressão no Brasil e nossa completa dificuldade em concebê-la de forma substantiva (como um valor em si) e não numa visão instrumental (necessária para certos fins). Tome-se como exemplo a tendência punitiva dos tribunais em razão de supostas "ofensas a honra", especialmente em contextos políticos: os juízes se mostram favoráveis a condenar por supostas ofensas, quando muitas vezes as mesmas são críticas a figuras públicas (eis uma hipótese que exige comprovação empírica).
Além desta necessária orientação normativa sobre liberdade de expressão, definida já no artigo 2º, há outros fundamentos, como o reconhecimento da escala mundial da rede; os direitos humanos, o desenvolvimento da personalidade e o exercício da cidadania em meios digitais; a pluralidade e a diversidade; a abertura e a colaboração; a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor; e a finalidade social da rede. Os fundamentos parecem muitos - e são. O Marco Civil faz questões de reafirmar algumas balizas do sistema jurídico brasileiro (concorrência, defesa do consumidor, proteção aos direitos humanos) e incluir outras tendências do século XXI, como uma economia crescentemente colaborativa (compartilhamento de design e a nova revolução industrial) e a pluralidade (postulada em termos abstratos).
Demi Getschko - engenheiro pioneiro da internet brasileira - afirmou que o Marco Civil "não é uma proposta de mudança, mas uma vacina contra futuras doenças". Ao fazer tal declaração, Getschko refere-se à importância dos princípios na legislação, que definem uma moldura de normas que operam como "mandamentos de otimização". Muitos alegam que os princípios do Marco Civil são demasiadamente amplos (I – garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento, nos termos da Constituição; II – proteção da privacidade; III – proteção aos dados pessoais, na forma da lei; IV – preservação e garantia da neutralidade de rede; V – preservação da estabilidade, segurança e funcionalidade da rede, por meio de medidas técnicas compatíveis com os padrões internacionais e pelo estímulo ao uso de boas práticas; VI – responsabilização dos agentes de acordo com suas atividades, nos termos da lei; e VII – preservação da natureza participativa da rede). Mas há aí uma confusão entre a finalidade do Marco Civil, que é a de definir princípios e não regras específicas sobre privacidade, dados e funcionamento da rede.
A confusão entre regras e princípios é natural. Mesmo na teoria do direito, esta é uma questão não resolvida, presente em debates que perduram há mais de quarenta anos. Um exemplo é a terceira parte do artigo The Models of Rules, de Ronald Dworkin (1967), e sua famosa distinção de "princípio" (principle) e "política" (policy): I call a principle a standard that is to be observed, not because it will advance or secure an economic, political, or social situation deemed desirable, but because it is a requirement of justice or fairness or some other dimension of morality. A discussão sobre o grau de distinção entre regras e princípios - mesmo sendo uma parte menor do projeto dworkiniano - persiste até hoje.
De fato, se um pesquisador sair da zona de conforto e investigar a opinião de teóricos como Robert Alexy sobre o tema, encontrará relatos da variedade das opiniões dos teóricos sobre "princípios" e a dificuldade de defini-los: "Principles are reasons for concrete judgments as to what ought to happen just as much as rules are, even if they are reasons of a very different nature. THe distinction between rules and principles is thus a distinction between two types of norm. There are many suggested criteria for distinguishing rule from principles. Probably the most common is that of generality (Raz, 1972; Esser, 1979). According to this, principles are norms of relatively high generality, and rules are norms of relatively low generality. An example of a norm of relatively high generality is the norm that everyone enjoys freedom of religion. By contrast, a norm which states that every prisoner has the right to seek to persuade other prisoners to abandon their faith is a norm of relatively low generality. One might think that one could divide norms into rule and principles according to this criterion of generality. Other alternative criteria considered in the literature are the 'ability to state precisely the situations in which the norm is to be applied' (Esser, 1982), the manner of creation, perhaps in the distiction between 'creates' and 'evolved' norms (Shuman, 1971), the explictiness of evaluative content (Canaris, 1983), connection with the idea of law (Larenz, 1983) or with a higher legal statute (Wolff, 1955), and significance for the legal order (Peczenik, 1971). Principles and rules have also been distinguished by whether they are reasons for rules or rules themselves (MacCormick, 1978), or whether they are norms of argumentation or norms of bevaviour. (...) The decisive point in distinguising rules from principles is that principles are norms which require that something be realized to the greatest extent possible given the legal and factual possibilities (Alexy, 1979). Principles are optimization requirements, characterized by the fact that they can be satisfied to varying degrees, and that the appropriate degree of satisfaction depends not only on what is factually possible but also on what is legally possible. The scope of the legally possible is determined by opossing principles and rules. By contrast, rules are norms which are always either fulfilled or not. If a rule validly applies, then the requirement is to do exactly what it says, neither more nor less. In this way rules contain fixed points in the field of the factually and legally possible. This means that the distinction between rules and principles is a qualitative one and not one of degree. Every norm is either a rule or a principle" (A Theory of Constitutional Rights, 2010).
Eu não tenho a pretensão de elaborar aqui uma definição sofisticada de princípios, tampouco recapitular o debate teórico sobre uma possível ontologia do conceito - que deve ser feito com cautela e rigor metodológico em teoria. Mas é interessante aproveitar a oportunidade de discussão do Marco Civil da Internet para refletir sobre a importância destes princípios. Afinal, por que declará-los ou positivá-los? Há um efeito simbólico? Há algo mais? Qual será o impacto destes princípios quando os mesmos "colidirem" com outros? E se uma regra posterior específica contrariar um princípio? Como eles podem, na prática, ser "mandamentos de otimização"? De que modo os juízes utilizam princípios em suas decisões? Como "sopesar" liberdade de expressão e privacidade?
Os problemas são muitos e a discussão sobre os princípios do Marco Civil tem sido feita sem muito rigor conceitual. Como pontapé inicial de leitura para enfrentar algumas das questões acima, sugiro um artigo elaborado há dez anos - e que se tornou referência central no debate brasileiro sobre o tema. Trata-se do texto Princípios e Regras: mitos e equívocos sobre uma distinção, escrito pelo professor Virgílio Afonso da Silva. Além de ter uma breve exposição das ideias de Dworkin e Alexy, há um debate saudável com autores brasileiros, em especial Humberto Ávila. Obviamente, esse é um texto teórico que pode ser inacessível para quem não tem formação acadêmica (assim como os atuais 70 textos que citam Afonso da Silva). Entretanto, precisamos sair do discurso raso sobre a "importância dos princípios" e investigarmos as consequências de normas principiológicas, como estas contidas no PL 2126/2011. Esse é um tema de enorme complexidade. Para o momento, a provocação basta. A preocupação imediata é a votação no Congresso, que ainda não sabemos qual resultado terá.
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