Assange, Equador e o Império


A decisão do governo equatoriano de conceder asilo político a Julian Assange, um dos fundadores do revolucionário site WikiLeaks, é um marco. O dia 16 de agosto de 2012 poderá ser lembrado como uma data emblemática nas relações internacionais. O comunicado nº. 42 do Misterio de Relaciones Exteriores, Comercio e Integración, que expõe a declaração do governo da República del Ecuador sobre a solicitação de asilo de Assange, é uma peça de alto rigor jurídico, elaborada com máxima atenção aos princípios de direitos humanos e regras internacionais sobre concessão de asilo por um Estado soberano. Trata-se de um documento que merece ser lido por todos os interessados em relações internacionais e na microfísica do poder (cf. 'Declaración del Gobierno de la República del Ecuador sobre la solicitud de asilo de Julian Assange').

O caso, marcado por um inegável o clima de tensão, está sendo analisado de perto por diplomatas do mundo todo. Como se sabe, Julian Assange está sendo acusado criminalmente na Suécia desde dezembro de 2010, por supostos crimes de violência sexual. A acusação ocorreu quatro meses depois do vazamento dos cables diplomáticos estadunidenses pelo portal WikiLeaks, isto é, de documentos oficiais e secretos da diplomacia da maior potência bélica do mundo, os Estados Unidos da América. Os documentos, que fazem parte da estratégia de jornalismo científico de exibição de documentos oficiais de governos ("trabalhamos com outros media para levar notícias às pessoas, assim como para provar que são verdadeiras. O jornalismo científico permite-lhe ler um artigo e então clicar online para ver o documento original em que se baseia. Esse é o modo como pode julgar por si próprio: Será verdadeiro este artigo? Será que o jornalista informou com rigor?", afirmou Assange), foram amplamente divulgados pelos principais veículos de comunicação independente do mundo em agosto de 2010, tais como o The New York TimesThe Guardian, El País, Der Spiegel. Entretanto, após a "caçada a Julian Assange" anunciada em dezembro de 2010 pelo governo estadunidense, tais jornais deixaram de divulgar as informações vazadas pelo portal independente, sob forte pressão de investidores privados e do governo dos Estados Unidos.

O WikiLeaks foi do céu ao inferno em pouco tempo. Celebrado no mundo ocidental como um dos guardiões da liberdade de expressão em meados de 2010, o website foi silenciado no final do ano, após o início do agressivo plano dos Estados Unidos de prender aquele que tinha soltado os documentos - Bradley Manning, preso em um quartel militar até hoje sem julgamento (cf. 'A coragem da verdade: o caso Bradley Manning' e 'Eu sou Bradley Manning: em busca da verdade') - e o líder do WikiLeaks, o jornalista australiano Julian Assange. A estratégia dos poderosos (que se sentiram ameaçados pelo caráter revolucionário deste tipo de jornalismo) foi dupla: (i) silenciar os reprodutores de notícias, isto é, os grandes veículos que anteriormente disseminavam os documentos reveladores do WikiLeaks, e (ii) cortar a fonte de financiamento do website, que era mantido por doações, principalmente através de mecanismos como PayPal e pagamentos via cartão de crédito, como Visa e Mastercard. A segunda estratégia (bloqueio bancário), sem dúvidas, foi a mais brilhantemente executada. Entre dezembro de 2010 e setembro de 2011, o site perdeu 95% de sua renda, oriunda de contribuições de pessoas do mundo todo. Em outubro, o site anunciou a paralisação temporária de suas atividades (cf. 'O embargo econômico ao Wikileaks').

Em dezembro de 2010, Assange foi preso em Londres pelo justiça britânica, em razão das acusações criminais do governo sueco. A Suécie - que, segundo documentos diplomáticos revelados pelo WikiLeaks é "um membro encoberto da NATO", sendo "a partilha da inteligência dos EUA resguardada do parlamento" - pedia a extradição de Assange. Diversos advogados trabalharam na defesa de Assange, utilizando a tese de que ele poderia ser interrogado em Londres e que uma extradição provavelmente implicaria no envio de Assange aos Estados Unidos, considerando que ele é acusado de "espionagem" no país. Em fevereiro de 2011, a corte britânica decidiu pela extradição de Assange. Os advogados de Assange encontraram uma "brecha jurídica" e apelaram da decisão, alegando que o promotor público sueco que havia feito o pedido de extradição não tinha autoridade judicial para tanto (a norma relacionada ao European Arrest Warrant  dizia "The issuing judicial authority shall be the judicial authority of the issuing Member State which is competent to issue a European arrest warrant by virtue of the law of that State"). Após outras decisões - realizadas pelo Senior District Judge e pela Divisional Court - e apelações, o processo foi levado até a Supreme Court of the United Kingdom, mais alta corte do Reino Unido

O caso (Assange v The Swedish Prosecution Authority) foi ouvido em fevereiro de 2012. A argumentação de Dinah Rose, em defesa de Julian Assange, centrou-se na tese de que a "autoridade judicial" deveria ser uma pessoa que é competente para exercer a autoridade judicial e que tal competência requer imparcialidade e independência da execução e das partes. Como, na Suécia, a promotora (Prosecutor) é e permanecerá parte no processo criminal contra Assange, ela não poderia ser considerada "autoridade judicial". Tal autoridade deveria ser de um juiz ou de uma decisão colegiada. A defesa da promoteria sueca, feita por Clare Montgomery, apresentou a tese de que a "autoridade judicial" deve ser entendida em um conceito mais amplo. Ela descreve qualquer pessoa ou órgão autorizado a exercer um papel no processo judicial ("In some parts of the Framework Decision the term judicial  authority describes one type, in other parts another. A prosecutor properly falls within the description judicial authority' and is capable of being the judicial authority competent to issue an EAW under article 6 if the law of the State so provides. Judicial authority must be given the same meaning in the 2003 Act as it bears in the Framework Decision"). Os votos dos ministros da Suprema Corte, chamados de Lords, centraram-se em precedentes judiciais e argumentos sobre a correta interpretação de decisões e textos legais. No final, em maio de 2012, prevaleceu o argumento do governo sueco. Por cinco votos a dois, foi decidido que a promotora pode ser considerada autoridade judicial para expedir o mandato de prisão (cf. a decisão). Moral da história: Julian deve ser extraditado.

Após perder a batalha legal, Assange permaneceu em prisão domiciliar (house arrest) e assinou um contrato com a empresa estatal Russia Today para gravar uma série de programas, chamada The World Tomorrow. O programa, uma espécie de talk-show extremamente politizado gravado semanalmente, contou com a participação de intelectuais da esquerda, como Tariq Ali, Noam Chosmky e Anwar Ibrahim. Em um episódio gravado em maio de 2012, Assange entrevistou o polêmico presidente do Equador, e economista Rafael Correa, conhecido como uma das mentes heterodoxas mais perseguidas pela alta cúpula política dos Estados Unidos. Um mês depois, já certo de que seria extraditado para a Suécia (e posteriormente para os Estados Unidos, onde poderia ser processado por espionagem e condenado à pena capital), Julian Assange descumpriu o regime de prisão domiciliar e refugiou-se na Embaixada da República do Equador em Londres, considerado território equatoriano (cf. 'O clube dos perseguidos'). Este foi um dos pontos altos de tensão na "saga assangiana", mais emocionante que qualquer roteiro hollywoodiano.

Ao bater às portas da Embaixada do Equador em Londres, Assange protocolou um pedido oficial de asilo político ao governo equatoriano. Tal pedido colocou Rafael Correa em uma situação delicada. Deveria ele respeitar a decisão da Suprema Corte britânica de que a autoridade sueca é competente para pedir a extradição de Julian por crimes sexuais? Ou seria esta uma perseguição política mascarada por argumentos jurídicos e acusações criminais obscuras? Entre junho e julho, a mídia ocidental radicalizou o discurso e afirmou que era paradoxal Julian Assange pedir asilo em um país que "persegue jornalistas". Para o estadunidense médio, Correa e Hugo Chávez são sinônimos. Divulga-se o mito de que no Equador e na Venezuela, "homens de bem preocupados com a liberdade de expressão são perseguidos por um governo ditatorial". O consumidor médio deste tipo de mídia esquece que os conglomerados midiáticos equatorianos e venezuelanos são controlados por grupos ingleses e estadunidenses, em defesa dos interesses dos investidores e grandes proprietários. Ao assumir o poder, Correa processou jornalistas que o difamavam. Tais jornalistas, que escreviam em defesa do interesse de grupos econômicos prejudicadas pela política de caráter redistributiva e estatizante de Correa, foram condenados a pagar elevadas multas. Na visão do Ocidente, esse é um governo que não defende a liberdade de expressão. Daí a incoerência do pedido de Assange: um jornalista pedir asilo político em país que supostamente não protege a liberdade de expressão, algo que parece falso diante de uma análise mais profunda do contexto equatoriano.

O clímax diplomático entre Reino Unido e Equador ocorreu no dia 16 de agosto, quando o governo britânico ameaçou a diplomacia equatoriana ao exigir a entrega de Assange (uma nota dizia "You need to be aware that there is a legal base in the UK, the Diplomatic and Consular Premises Act 1987, that would allow us to take actions in order to arrest Mr Assange in the current premises of the Embassy. We sincerely hope that we do not reach that point, but if you are not capable of resolving this matter of Mr Assange's presence in your premises, this is an open option for us"). A ameaça do governo britânico causou profunda irritação ao ministro das Relações Exteriores, Comércio e Integração do Equador, o economista Ricardo Patiño Aroca. Para Patiño, a ameaça do governo britânica fere a Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, em especial o artigo 22, que diz que "os locais da Missão são invioláveis; os agentes do Estado acreditado não poderão neles penetrar sem o consentimento do Chefe da Missão". Patiño declarou publicamente que o Equador "não é uma colônia britânica" e que o Estado tem o poder soberano de aceitar o pedido de asilo político requerido por Assange (cf. a matéria 'UK threatens to assault Ecuadorian Embassy to arrest Assange', do Russia Today). No mesmo dia, William Hague, chefe do Foreign Office, afirmou que o Reino Unido tem uma "obrigação vinculante" de extraditar Assange e que o Reino Unido não fez nenhuma ameaça ao Equador, apenas ressaltou, através de uma nota, que há embasamento legal para prender Julian Assange (cf. "William Hague says there is 'no threat' to storm Ecuadorian embassy").

As palavras de Paul Craig Roberts - economista que serviu ao governo Reagan, ex-editor do Wall Street Journal e hoje uma das principais (e mais silenciadas) vozes da crítica estadunidense - foram duríssimas, diante do ocorrido: "O mundo inteiro, incluindo os servis estados fantoches de Washington, entendeu que quando Assange estivesse nas mãos dos suecos Washington apresentaria uma ordem de extradição, a qual a Suécia, ao contrário dos britânicos, cumpriria. O Equador entende isto. O ministro das Relações Exteriores, Ricardo Patiño, anunciou que o Equador concedeu asilo a Assange porque 'há indicações para presumir que pode tratar-se de perseguição política'. Nos EUA, reconheceu Patiño, Assange não obteria um julgamento justo e enfrentaria a pena de morte num processo fabricado. O Estado Fantoche estado-unidense da Grã (sic) Bretanha anunciou que não permitiria que Assange deixasse o país. Já chega quanto à defesa da lei e dos direitos humanos por parte do governo britânico. Se os britânicos não invadirem a Embaixada Equatoriana e arrastarem Assange para fora, morto ou em grilhões, a posição britânica é que Assange viverá o resto da sua vida dentro da Embaixada do Equador em Londres. Segundo o New York Times, o asilo de Assange deixa-o 'com proteção à prisão só no território equatoriano (o que inclui a embaixada). Para deixar a embaixada rumo ao Equador, ele precisaria da cooperação que a Grã-Bretanha disse não proporcionar'. Quando se trata do dinheiro de Washington ou de se comportar honradamente de acordo com o direito internacional, o governo britânico inclina-se para o lado do dinheiro" (cf. "Ecuador President Rafael 'We Are Not A Colony' Correa Stands Up To The Jackbooted British Gestapo").

A situação é dramática. Há um enorme impasse diplomático, que já desgastou as relações entre Equador e Reino Unido. A polícia britânica (a "Brisith Gestapo", nas palavras de Roberts) instalou uma base especial em frente à Embaixada, na Hans Crescent Street, em Knightsbridge, sudoeste de Londres. A palavra de ordem é prender Julian Assange assim que ele colocar os pés para fora do prédio que aloca o corpo diplomático equatoriano. A mídia, ao invés de enfatizar o que está por trás do enredo quase-cinematográfico de Assange - isto é, o papel do WikiLeaks em desmascarar governos e revelar as relações de poder entre  políticos, diplomatas e grupos econômicos - polemiza a situação em tom jocoso. Veículos de comunicação como o CNN publicaram matérias sobre possíveis "planos mirabolantes de fuga" de Assange. O jornal australiano The Australian, na mesma linha editorial, trabalhou com três hipóteses, todas impraticáveis: (i) Assange poderia ser considerado cidadão equatoriano e fazer parte do corpo diplomático, o que dependeria de reconhecimento pelo Reino Unido, (ii) Assange poderia ser nomeado representante da Organização das Nações Unidas e ficar imune durante viagens oficiais para encontros das ONU, (iii) Assange poderia se disfarçar e, aproveitando uma multidão em frente à Embaixada, sair correndo e entrar na Harrod's, famosa loja de departamento de que fica na esquina da rua onde está escondido.

É impossível prever o que irá acontecer. De qualquer modo, é inadmissível o silêncio do mainstream midiático com relação à perseguição política em curso. Basta analisar os fatos desde abril de 2010, época de lançamento do poderoso filme Collateral Murder (que retrata a morte de inocentes no Iraque durante uma operação militar estadunidense), para compreender o que está por trás do ataque contrarrevolucionário ao WikiLeaks e seu líder, Julian Assange. Como demonstra o estudo de Geoffrey Schotter ("Shouting Fire in a Burning Theater: distinguishing fourth estate from fifth column in the age of Wikileask"), há o perigo real de Assange ser processado nos Estados Unidos pelo Espionage Act, sob alegação de que suas ações "causam dano à segurança nacional dos Estados Unidos e/ou beneficiam um poder estrangeiro". Não é por acaso que os ativistas que apoiam o WikiLeaks temem tanto a extradição para a Suécia e a possível segunda extradição para os Estados Unidos.

A frase que surge no início do vídeo que popularizou o WikiLeaks, retirada do ensaio Politics and the English Language publicado por George Orwell em 1946, é bastante oportuna: a linguagem política é desenhada para fazer com que mentiras soem verdadeiras e o assassinato respeitável, e para dar uma aparência de solidez ao puro vento. Há uma enorme trama política por trás das questões jurídicas relativas à acusação de crime sexual e o pedido de extradição do governo sueco. Há mentiras e planos. O apoio do Equador talvez não seja suficiente, mas já é um primeiro sinal de que alguns líderes de Estado reconhecem o caráter político das ações em curso. Estamos em guerra.

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