O espectro de Hans Kelsen no Brasil do século XXI

"Trecho da obra 'Quadrinhos Puros do Direito', escrita por Luis Alberto Warat, com desenhos de Gustavo Cabriada"

Se existe um autor polêmico na teoria do direito este é o austríaco Hans Kelsen. Odiado por uns, idolatrado por outros, são poucos os teóricos que despertam tanto interesse na ciência jurídica como Kelsen - seja para refutá-lo, seja para reafirmá-lo. Ao mesmo tempo - e este é um fenômeno muito peculiar - Hans Kelsen é um dos autores mais comentados e (paradoxalmente) menos lidos entre os bachareis e juristas contemporâneos. De acordo com o senso comum teórico (adaptando uma expressão de um pensador que conhecia muito bem as ideias kelsenianas), a versão caricatura de Kelsen é a de uma fígura que sintetiza o formalismo jurídico voltado ao estudo autista da norma jurídica e as relações de hierarquia da mesma.

Essa semana, o jusfilósofo austríaco (falecido há 38 anos) voltou à pauta jurídica nacional em razão do lançamento da obra "Autobiografia de Hans Kelsen". O livro contém um estudo introdutório do jovem ministro do Supremo Tribunal Federal, José Antonio Dias Toffoli, que publicou um artigo na Folha de São Paulo sobre a importância de Kelsen para o direito brasileiro, celebrando o centenário da "teoria pura" kelseniana. Escreve o ministro brasileiro sobre o pensador europeu: "Não há um Prêmio Nobel para o direito. Mas, se ele existisse, seu primeiro ganhador deveria ter sido o jurista Hans Kelsen, como bem afirma Mathias Jestaedt. Noções como hierarquia das normas, jurisdição e tribunal constitucional, monismo jurídico e natureza dos tratados internacionais, tão corriqueiras hoje em dia, encontram sua gênese ou seu desenvolvimento original no pensamento desse homem, sem favor, o maior expoente do direito no século 20. Em 2011, comemora-se o centenário do nascimento da famosa teoria pura do direito, cujos fundamentos assentam-se na hierarquia normativa, tendo a Constituição por ápice de uma pirâmide de regras jurídicas, e na metodologia que dispensa, embora não lhe negue importância, o recurso a elementos metafísicos".

Ao longo do texto, Toffoli declara-se leitor de Kelsen e afirma que conhecê-lo é aprender sobre o Brasil, sua federação e o modo como as instituições são organizadas. Afirma também que os juristas brasileiros podem redescobrir a importância de Kelsen para a ordem jurídica contemporânea e ressalta que, numa era de ponderações, imprevisibilidade e incertezas, é reconfortante olhar para o horizonte e enxergar um porto seguro nas teorias kelsenianas.

Sobre a matéria de Toffoli, o poeta e jurista Pádua Fernandes contrapõe a ideia de que a teoria kelseniana deve ser um porto seguro. Ao contrário, para verificar se Kelsen tem algo a dizer é necessário estudá-lo e fazer ranger o pensamento: "É raro ler sobre os grandes juristas do passado nesse tipo de jornal - talvez os 130 anos de nascimento de Kelsen, que serão completados em 11 de outubro, possibilitem a publicação de mais textos desse tipo. Quando estudante de graduação, ouvi coisas loucas como um suposto nazismo de Kelsen (tratava-se de professores que, provavelmente, ouviram de muito longe ecos de Radbruch), que, como filósofo político, era liberal, e, na condição de judeu, teve de exilar-se mais de uma vez... É importante, pois, retificar equívocos ainda correntes sobre o grande jurista. O Ministro comete erros, infelizmente. A Teoria Pura do Direito, livro cuja primeira edição é de 1934, e que foi muito reformulado em 1960 (somente nesta edição foi publicado no Brasil) foi uma tentativa de ir além do que John Austin (o jurista do século XIX) em determinar um campo específico para a ciência do direito. Isto é, buscar uma pureza epistemológica para essa ciência, a fim de que o estudo do jurista não se confundisse com o modo como os sociólogos, por exemplo, estudam o direito. Um normativismo que tenta expurgar o estudo da norma jurídica dos aspectos políticos, sociológicos, econômicos - estudos válidos, claro, mas que não correspondem ao trabalho do jurista, que deveria, segundo Kelsen, concentrar-se apenas na descrição do direito positivo. Essa pureza metodológica do positivismo jurídico de Kelsen foi alvo de seguidas críticas dos Realistas, de outros positivistas, dos marxistas etc. Sem dúvida, ele deve ser estudado, mas não como um "porto seguro" (expressão que Toffoli emprega), pois esse não é o papel de nenhuma teoria séria - confortar mentes cansadas de enfrentar as ondas e maremotos da dúvida - e sim provocar, fazer ranger o pensamento. Se Kelsen não for mais capaz de fazer isso, é porque ele está morto. Ou virou auto-ajuda jurídica". 

Fernandes, de forma muito precisa, acusa Toffoli de baratear a filosofia de Kelsen ao escrever que "a Constituição constitui o ápice de uma pirâmide de regras jurídicas". De fato, o próprio jusfilósofo rejeita essa definição positivista primária descrita por Toffoli - que talvez a tenha escrito por economia intelectual ou excesso de simplificação para a compreensão do grande público - e considera que o movimento da ciência do direito que remonta de uma norma inferior à norma superior, que é o fundamento da sua validade, deve necessariamente terminar numa norma que se pressupõe como a última e a suprema e que, a título de hipótese lógico-transcendental, tem valor fundamental. Como aponta com clareza a francesa Simone Goyard-Fabre (numa célebre obra sobre os fundamentos da ordem jurídica e a normatividade do edifício constitucional): "a 'Grundnorm', que é preciso supor, para determinar uma ordem jurídica, não é uma norma material caracterizada pela evidência ou pela força de seu conteúdo; ela traduz a exigência racional de acordo com a qual se dá a instituição do elemento fundamental das operações de criação do direito. Como tal, ela se distingue da Constituição no sentido do direito positivo: esta sim é determinada. A verdade é que, no edifício jurídico estatal, a Constituição (positiva) é o ponto de ancoragem de todas as regras estabelecidas no sistema, patamar por patamar, e no necessário respeito do dispositivo constitucional. Assim, Kelsen parece levar a tese constitucionalista ao seu mais alto nível de clareza lógica e filosófica; dá-lhe uma formulação lapidar: as pessoas devem comportar-se do modo que a Constituição prescreve".

A suposição da Grundnorm é a demonstração, por parte de Kelsen, de que a ciência do direito não pode eliminar o problema do fundamento do direito. Da mesma forma, demonstra a sofisticação de sua teoria, pois tal atitude implica a suposição de uma Urnorm (norma originária), isto é, de uma exigência lógica transcendental que indique de maneira evidente que determinada Constituição é por si só insuficiente para fundar a ordem jurídica. A ideia da norma fundamental, apesar de contestável, é bem construída pois assume que a norma fundamental não está "contida" numa ordem jurídica positiva, pois ela não é uma norma positiva (ou posta), mas uma norma pressuposta pelo pensamento jurídico. Eis o argumento de Kelsen: "a indagação do fundamento de validade de uma norma não pode, tal como a investigação da causa de um determinado efeito, perder-se no interminável. Tem de terminar numa norma que se pressupõe como a última e a mais elevada. Como norma mais elevada, ela tem de ser pressuposta, visto que não pode ser posta por uma autoridade, cuna competência teria de se fundar numa norma ainda mais elevada. A sua validade já não pode ser derivada de uma norma mais elevada, o fundamento da sua validade já não pode ser posto em questão. Uma tal norma, pressuposta como a mais elevada, será aqui designada como norma fundamental (Grundnorm). Todas as normas cuja validade pode ser reconduzida a uma e mesma norma fundamental formam um sistema de normas, uma ordem normativa. A norma fundamental é a fonte comum da validade de todas as normas pertencentes a uma e mesma ordem normativa, o seu fundamento de validade comum. O fato de uma norma pertencer a uma determinada ordem normativa baseia-se em que o seu último fundamento de validade é a norma fundamental desta ordem. É a norma fundamental que constitui a unidade de uma pluralidade de normas enquanto representa o fundamento de validade de todas as normas pertencentes a essa norma jurídica".

Esse é apenas um dos elementos da ampla teoria de Kelsen, focada no Direito do Estado. Quanto à ordem jurídica internacional, o jurista destaca que ela precisa enraizar-se em princípios gerais e costumes que, enquanto tais, não pertencem a um esquema constitucionalista. Trata-se de uma objeção séria: não é possível restringir a questão da fundação do direito à sua congruência simplesmente formal com a norma constitucional.

Com relação à "faceta internacionalista" de Kelsen, Pádua Fernandes critica a postura de Toffoli no tocante à omissão do direito internacional nas decisões do STF e da construção monista kelseniana que visualiza o primado da ordem jurídica internacional: "há outro problema, muito mais grave, um recalcamento que diz bastante não só a respeito da cultura jurídica brasileira quanto do próprio Supremo Tribunal Federal, marcados por um pronunciado provincianismo jurídico e um isolacionismo em relação ao direito internacional. O Ministro simplesmente apaga da memória que o escalonamento proposto por Kelsen tem duas versões: na primeira, o direito constitucional está acima do direito internacional e, na segunda, é o direito internacional que prevalece... Nesse caso, a norma fundamental do direito internacional é que corresponde ao 'ápice' do escalonamento das normas jurídicas, e é a norma que dá validade ao direito internacional costumeiro - que prevalece sobre os tratados internacionais. Se Kelsen foi um constitucionalista, ele também foi um internacionalista - e talvez esta última dimensão do pensamento dele seja, de fato, a mais decisiva para compreendê-lo. Tenho ao meu lado The Law of the United Nations: A Critical Analysis of Its Fundamental Problems, obra de 994 páginas de análise da Carta das Nações Unidas, que mostra os impasses da abordagem normativista, e ainda não publicada em português. O que ele produziu nesse campo foi imenso, e supera os escritos de direito constitucional. A Unijuí e a Fondazione Cassamarca, na notável coleção "Clássicos do Direito Internacional", acabam de lançar Princípios do Direito Internacional (com introdução de ninguém menos do que François Rigaux - pena que a revisão deixou um pouco a desejar), livro que escreveu nos EUA em 1952. Todavia, sua primeira obra em que o Direito Internacional é decisivo é de 1920: O problema da soberania e a teoria do Direito Internacional, em que anuncia a Teoria Pura do Direito, que só viria à luz em 1934, depois que o autor teve de deixar a Alemanha. Ele ministrou cursos em 1926 e 1932 na Academia de Direito Internacional de Haia. Direito e paz nas relações internacionais, de 1942, Paz através do Direito, de 1945 são outros dos trabalhos que produziu nesse campo. Não os temos no Brasil, se não me engano. Que Toffoli tenha deixado de lado essa enorme faceta de Kelsen, jurista que participou dos trabalhos para o Tribunal de Nurembergue, não surpreende nada, porém. O Supremo Tribunal Federal, em decisões-chave, decidiu de forma frontalmente contrária ao pensamento do grande internacionalista, negando a eficácia do direito internacional dos direitos humanos (...) Quando o governo de Dilma Rousseff nega os direitos das comunidades indígenas e despreza a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso de Belo Monte, está fazendo justamente o oposto do que Kelsen defendia. O mesmo deve ser dito em relação ao Supremo Tribunal Federal - e o caso da lei de anistia foi somente um de vários exemplos. Dessa forma, é muito curioso que Toffoli escreva: 'Conhecer Kelsen é aprender muito sobre o Brasil, sua Federação e o modo como nossas instituições, inclusive o Supremo Tribunal Federal, são organizadas'. Acho que é imperioso superar Kelsen. Mas, no Brasil, que aquelas instituições - inclusive o STF - ao menos chegassem aos padrões filosófico-jurídicos do jurista austríaco, já seria um avanço gigantesco".

A validade do direito internacional depende do reconhecimento por parte do Estado? Em alguns trabalhos teóricos, Kelsen defende a ideia de que a concepção do direito internacional segundo a qual só o Estado pode ser sujeito de direito (ao invés de seus órgãos e seus subordinados) funda-se no dogma da soberania estatal e priva as normas do direito internacinal de toda eficácia jurídica. A questão do direito internacional ganha relevo na Teoria Pura do Direito (1934). Nesta obra, Kelsen afirma: "do fato de o direito internacional se  situar acima dos Estados, acredita-se que é possível concluir que a soberania do Estado é essencialmente limitada e, por essa via, se torna possível uma organização mundial eficaz. O primado do direito internacional desempenha um papel decisivo na ideologia política do pacifismo. (...) Do fato de o direito internacional apenas valer por força do seu reconhecimento pelo Estado e, portanto, apenas enquanto parte constitutiva da ordem jurídica estadual, ou do fato de que o Estado é soberano, deduz-se que o Estado não está necessariamente vinculado aos tratados que conclui, ou que é inconciliável com a sua natureza submeter-se a um tribunal internacional com jurisdição obrigatória ou ser vinculado pela decisão da maioria de um órgão colegial, mesmo que este órgão e o seu processo tenha sido instituídos através de um tratado concluído pelo Estado. Tal como sucede com o primado do direito internacional relativamente à ideologia pacifista, assim também o primado do direito estadual, a soberania do Estado, desempenha um papel decisivo na ideologia imperialista. E, aqui como lá, a ambiguidade do conceito de soberania serve de ponto de apoio".

Em sua obsessão de elaboração de uma ciência jurídica apolítica, Kelsen não toma partido e deixa a questão da oposição das duas construções monistas da relação do direito internacional com o direito estadual em aberto. Baseando-se em Max Planck, crê que a oposição entre uma concepção de mundo subjetivista (que parte do Eu soberano para compreender o mundo) e objetivista (que parte do mundo para compreender o Eu) é apenas uma oposição de dois sistemas de referência diversos, porém válidos e justificados. Para ele, "é impossível, com base numa consideração de ciência jurídica, decidir jurídico-cientificamente por um deles".

A diferença é que a pretensa objetividade das ciências sociais - levada ao extremo pelo esforço teórico de Hans Kelsen de elaborar uma teoria do direito estanque da política e dos sociologismos - não se confunde com a realidade política e a dinâmica das questões jurídicas no Brasil hoje. A emissão da Licença de Instalação (nº 795/2011) da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, por exemplo, levanta a séria questão da competência e da aplicabilidade das sanções da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos, que vetou o projeto por implicar em graves violações aos direitos humanos de povos indígenas.

Talvez a visão impura do direito - que enxerga a real natureza do discurso jurídico, a microfísica do poder e a imersão da estrutura jurídica nos jogos políticos - seja mais adequada para discutir questões como a do caso Belo Monte. Nesse caso, melhor deixar a metodologia kelseniana de lado e, na melhor das hipóteses, adotar sua visão lúcida sobre a possível prevalência do direito internacional em face ao imperialismo estatal.

3 comentários:

  1. Caro Zanatta,
    resta a questão: essas pessoas que não entenderam o Kelsen chegarão à microfísica do poder?
    Abraços,
    Pádua

    ResponderExcluir
  2. O juiz em Kelsen não é neutro, nem cinza, nem imparcial, nem apolítico. A norma fundamental não tem conteúdo pré-definido por Kelsen. Não há apenas UMA interpretação jurídica correta. O Direito é criado desde o ato legislativo até o ato jurisdicional. Sem essa de "criação" e "aplicação", mas, sempre, criação.
    Sem a questão da "justiça", mas somente a questão da "validade" (formal).


    "o mais comentado e menos lido" ahhahhahahahhahah essa foi ótima!

    [VARA!]

    ResponderExcluir
  3. Caro Zanatta.

    A sua afirmação de que o Velho Kelsen "é um dos autores mais comentados e (paradoxalmente) menos lidos entre os juristas contemporâneos" é por demais condescendente, pelo menos em se tratando do exército de juristas brasileiros.

    Nesta terra, onde abundam juristas de prateleira e técnicos de futebol domingueiros, o entendimento científico do Direito ainda não alcançou as chinelas de Kelsen (salvo as exceções de praxe).

    Aqui, nessas paragens tropicalientes, fazer "ranger o pensamento", criticar com propriedade e desinteresse é arriscar-se a cometer ofensa mortal e despertar as reações correlatas.

    No nosso ambiente acadêmico comprometido, onde vale, de regra, a sabedoria do tacape, sustentar a correção da Teoria Kelseniana (com base nos seus respectivos pressupostos) significa ser taxado de "ultra"/"super"/"mega" seguido de um adjetivo nada dignificante ou, o que é mais interessante...ser chamado de ignorante(!).

    Por tudo isto, apesar de algumas falhas, a Obra ("Autobiografia de Hans Kelsen"), agora vertida para o português e comentada por José Antônio Dias Toffoli e Otávio Luis Rodrigues, vale - e muito - já que põe luz sobre aspectos da vida pessoal de Kelsen, tornando ridículos alguns dos argumentos empregados pelos juristas-leitores-de-orelha para difamá-lo e, em consequência, dispensar toda a sua obra científica como, no mínimo, imprestável (obra que, de resto, é por eles larga, senão totalmente ignorada).

    Afinal, espero que grande parte dos nossos "juristas" e "acadêmicos", pelo menos após declararem ter lido a "Autobiografia", calem-se envergonhados, senão diante da face humana de Hans Kelsen (o que não creio), pelo menos perante a face institucional do Ministro Dias Toffoli (o que tenho certeza).

    No mínimo, desde aqui, se Kelsen não for compreendido no Brasil (e não será), pelo menos descansará em paz devido ao silêncio imposto pela mais pura bajulação, da qual o mundo "acadêmico/jurídico" brasileiro é, de boa graça, tributário (salvo, como sempre, as exceções de praxe).

    Cordialmente.
    Leandro Rodrigues

    ResponderExcluir

Mais lidos no mês