Anna Hazare e o exemplo indiano


Se o brasileiro reclama da alta tributação, o povo indiano já não suporta a altíssima corrupção, que consome, segundo o relato de um cidadão indiano publicado hoje no The Guardian, quase um terço da renda da população. Além da corrupção no governo, câncer maligno que também atinge o "organismo público" brasileiro, o povo indiano sofre com a corrupção em todas as esferas da vida social: é preciso pagar uma taxa informal para matricular o filho na escola, para conseguir uma licença de abertura de comércio, para conseguir uma carteira de motorista e para conseguir agendar uma consulta médica num hospital público. A situação chegou ao limite. A classe média do país está prestes a rebelar-se contra o Estado, que, inerte e grande gestor dos esquemas corruptivos, nada faz.

Em meio a esse cenário de intensa instabilidade social, o nome de um antigo ativista social de perfil gandhiano, Kisan Baburao Hazare (de 74 anos), surgiu como o grande nome da luta indiana contra a corrupção. Hazare, conhecido como Anna Hazare, foi preso há três dias por protestar pacificamente através da greve de fome contra a corrupção. Em resposta, milhares tomaram as ruas e protestaram contra sua inconcebível e "estúpida" prisão (tal como noticiado na mídia burguesa indiana). Hoje Hazare foi solto e celebrado como o líder político de um movimento que ganha força a cada dia. Para os seguidores de Anna Hazare, a "segunda revolução indiana" começou.



A luta de Hazare não é nova. Há décadas ele coordena o anti corruption movement na Índia. Este também não é seu primeiro jejum. A diferença é que os clamores de uma "agência anti-corrupção eleita de forma democrática e com fortes poderes" agora reverberaram de forma intensa no povo indiano, talvez impulsionados pela coragem dos tunisianos, egípcios, líbios e os resistentes sírios (que persistem, mesmo após  elevadíssimos números de cidadãos assassinados ou raptados por agentes do governo). O movimento popular anti-corrupção, entretanto, promete balizar-se pela ideia de Gandhi de resistência pacífica.

Seria Hazare o novo revolucionário? Ou apenas uma cópia de Mahatma Gandhi (repetindo a túnica branca, os gestos e as formas de protesto)? Qual o conteúdo da Lei 39/2011 (Lokpal Bill)? Seria uma inovação legislativa capaz de desfazer o esquema de corrupção do governo indiano? Porque os servidores públicos têm tanto medo do controle da corrupção pela própria população através dos Lokayuct?

São muitas perguntas não respondidas em razão do pouco conhecimento sobre os fatos. A mídia inglesa, por mais que se esforce, é incapaz de exprimir o sentimento de indignação de seus ex-colonos e a complexidade dos fatos sociais e políticos que tornaram Anna Hazare o potencial ícone de uma Índia revolucionária anti-corrupção.

Independentemente da forma como a notícia chega aos olhos dos leitores mundiais, os acontecimentos recentes apontam para uma grave falha de funcionamento da democracia indiana. Como resultado, cresce no país uma nova forma de protesto: o ativismo legal (legal activism, nos termos de Vinay Sitapati), uma tendência de converter os problemas políticos em problemas jurídicos, tal como o da Lei 35/2011, uma espécie de "Lei da Ficha Limpa" indiana com previsão de agências específicas de controle de corrupção e amplos poderes punitivos.

O movimento de Hazare não é tão ambicioso quanto o de Gandhi, um crítico severo da modernidade e do uso (i)legítimo da violência pelo Estado. Como pontua Sitapati, Hazare é uma espécie de líder neogandhiano, que utiliza os motes e métodos de Gandhi sem utilizar sua imaginação política. Não há pretensão de modificar a estrutura de poder ocidental, mas apenas reduzir o nível de corrupção, que é latente.

No Brasil, apesar da percepção generalizada de que o mal do país é a corrupção (e é incrível como todos nós temos plena consciência de que é preciso agir para mudar a conduta política, porém nada fazemos a respeito), a população está longe de atingir um nível de organização e pressão política efetiva tal como o da classe média urbana da Índia hoje, liderada pelo guru Hazane, que amedronta os detentores do poder.

A panela de pressão indiana está chiando; a brasileira ainda nem começou a esquentar. Será que o exemplo indiano pode dar início a um amplo movimento popular anti-corrupção no Brasil?

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