Infelizmente, não há um só mundo, mas muitos e distintos mundos - apesar de pisarmos num só globo terrestre. Os diversos acontecimentos políticos desse intenso ano de 2011, já considerado como o ano das convulsões sociais pró-democracia e anti-corrupção, parecem não mudar em nada a forma como nós (jovens brasileiros) enxergamos a democracia e enxergamos a nós mesmos.
Não estamos dando a devida importância ao que está acontecendo no Norte da África, no Oriente Médio e na Europa Ocidental - manifestações de cidadania apartidárias que deflagram um mal-estar social generalizado com o pós-capitalismo fukuyamista contemporâneo (refiro-me ao "fim da história" proclamado pelo historiador estadunidense Francis Fukuyama após a queda do muro de Berlim, que vislumbrava um panorama global homogêneo de democracias liberais voltadas para os interesses do mercado).
Um exemplo do completo estágio de apatia política a que estamos submetidos: alguém ou algum veículo de comunicação levou a sério o que está acontecendo na Espanha?
Enquanto nós vivemos nossas vidas supostamente tranquilas aqui no Brasil - com uma consensual, porém medíocre, estabilidade política e institucional - protestos de caráter revolucionário estão ocorrendo de forma ininterrupta há quase uma semana em diversas cidades espanholas. Trata-se do movimento 15-M (ou Indignados), iniciado por meio das redes sociais (Facebook e Twitter), que incitou os jovens espanhóis a ocuparem as principais praças públicas de suas cidades.
Em Madrid, onde a convulsão política orgânica ganhou maior força, jovens ocuparam a famosa praça Puerto del Sol. Eis o fantástico resultado.
A ocupação segue desde o último domingo (15/05) não só em Madrid, mas também em Alicante, Barcelona, Bilbao, Granada, Salamanca, Sevilla, Valencia e Zaragoza. Segundo a imprensa internacional, já são quase 60 cidades com ocupações em praças públicas.
Esse vídeo abaixo, por exemplo, é da cidade de Valladolid. Nele, um jovem rapaz com um megafone declara um trecho do manifesto ¡Democracia Real Ya! e deixa claro o que querem los indignados.
Há algo de singular nas manifestações espanholas. Os protestantes repudiam as manifestações violentas (ao contrário do que ocorreu nas ruas de Londres há algumas semanas) e não se voltam contra a monarquia ou contra um específico líder do Executivo (tal como no Egito ou Tunísia). Trata-se de pulsantes insurgências, pautadas na desobediência civil, que tem por objetivo uma democracia participativa que atenda aos interesses da maioria e não dos banqueiros e investidores internacionais.
O manifesto espanhol deixa claro que ainda não há democracia, mas um sistema político que apenas se afirma como democrático: "A democracia parte do povo (demos=povo; cracia=governo), portanto o governo deve ser do povo. Porém, neste país a maioria da classe política sequer nos escuta. Suas funções deveriam ser levar nossa voz às instituições, facilitando a participação política cidadã e procurando o maior benefício para o grosso da sociedade – não enriquecer-se às nossas custas, atendendo apenas as ordens dos grandes poderes econômicos e aferrando-se ao poder por meio de uma ditadura plutocrática. A ânsia de acumulação de poder em poucos gera desigualdade, crispação, injustiça, e conduz à violência, que rechaçamos. O modelo econômico vigente afunila o mecanismo social num torvelinho que consome a si mesmo, enriquecendo a poucos e mergulhando o resto na pobreza e escassez. Até o colapso. A vontade e fim do sistema é a acumulação de dinheiro, colocando-a acima da eficácia e bem-estar da sociedade. Desperdiçando recursos, destruindo o planeta, gerando desemprego e consumidores infelizes. Nós cidadãos formamos parte da engrenagem de uma máquina destinada a enriquecer a uma minoria que não sabe de nossas necessidades. Somos anônimos, mas sem nós nada disso existira, pois nós movemos o mundo. Se como sociedade aprendemos a não confiar nosso futuro a uma abstrata rentabilidade econômica que nunca desemboca em benefício da maioria, poderemos eliminar os abusos e carências que todos sofremos. É necessária uma Revolução Ética. Colocamos o dinheiro acima do Ser Humano e precisamos colocá-lo a nosso serviço. Somos pessoas, não produtos do mercado. Não sou apenas o que compro, o motivo por que compro e de quem compro. Por tudo isso, estou indignado. Acredito que posso mudar Acredito que posso ajudar. Sei que unidos podemos. Vem conosco. É teu direito."
A situação agravou-se nos últimos dois dias em razão da decisão da Junta Eleitoral Espanhola de proibir manifestações em praças públicas, motivada pela patética justificativa de que as reuniões e os acampamentos poderiam prejudicar o ir-e-vir de eleitores e que as manifestações teriam caráter político (o que seria proibido, tal como aqui no Brasil, por se tratar de propaganda partidária). Mas os espanhóis retrucaram. No site tomalaplaza.net declaram que não vão se retirar ("Estamos invitando a la reflexión colectiva. Las personas que están aquí reunidas reflexionan en torno a los problemas que el orden socio-económico está causando a la ciudadanía, habiendo optado por reflexionar de manera colectiva, sin concebir la finalidad de la convocatoria como medio de captación de sufragios").
Em que grau a situação espanhola difere da brasileira? Essa declaração não poderia ter sido escrita aqui, em terrae brasilis? Penso que poderia. Entretanto, o brasileiro não se deu conta de que se afastar de assuntos políticos já é uma ação política que legitima a completa dominação. Os espanhóis não são apolíticos, mas apartidários. A diferença é grande.
Falta-nos consciência política. Como recuperar então esse déficit?
No Brasil, nenhuma manifestação política de cunho revolucionário vai ocorrer se antes não houver uma outra revolução: a revolução do conhecimento contra a ignorância. Se não pensarmos em estratégias emancipatórias embasadas no sólido chão da educação, qualquer forma de inclusão política ficará prejudicada. Os pilares institucionais desabam, mesmo que construídos por pequenos grupos. Quanto menos se sabe, mais se aceita. Nessa lógica, as grandes massas se acomodam passivamente e a verdadeira mudança política se torna irrealizável.
Há uma diferença crucial entre a Espanha e o Brasil. Lá, a taxa de desemprego está em 21%, enquanto que no Brasil está em 6%. Isso explica muita coisa em termos de mal-estar social.
Porém, um outro dado também diz muito sobre apatia política e a facilidade de fabricação de consensos no país. A Espanha possui menos de 2% de analfabetos (na sua maioria idosos), enquanto nós temos 25% de analfabetos funcionais (dos jovens, o número é de 15%).
A indignação é um fenômeno racional, ao contrário da fome que é fisiológico. Um país que não pensa, não pode lutar por uma verdadeira democracia.
O exemplo espanhol é inspirador. Podemos aprender muito ("Aprender como uma cacofonia dos insatisfeitos, vozes dispersas pelo tecido social, convergem na polifonia das ruas e praças. Fora da lógica da representação, todos e cada um exprimem a potência de quem não se conforma em viver subjugado e improdutivo, sem perspectivas para crescer e desenvolver-se", como escreveu Cava). Mas nossos desafios são enormes.
Há uma diferença crucial entre a Espanha e o Brasil. Lá, a taxa de desemprego está em 21%, enquanto que no Brasil está em 6%. Isso explica muita coisa em termos de mal-estar social.
Porém, um outro dado também diz muito sobre apatia política e a facilidade de fabricação de consensos no país. A Espanha possui menos de 2% de analfabetos (na sua maioria idosos), enquanto nós temos 25% de analfabetos funcionais (dos jovens, o número é de 15%).
A indignação é um fenômeno racional, ao contrário da fome que é fisiológico. Um país que não pensa, não pode lutar por uma verdadeira democracia.
O exemplo espanhol é inspirador. Podemos aprender muito ("Aprender como uma cacofonia dos insatisfeitos, vozes dispersas pelo tecido social, convergem na polifonia das ruas e praças. Fora da lógica da representação, todos e cada um exprimem a potência de quem não se conforma em viver subjugado e improdutivo, sem perspectivas para crescer e desenvolver-se", como escreveu Cava). Mas nossos desafios são enormes.
Agora são quase 21h do Domingo. Os espanhóis continuam lotando a praça Puerto del Sol. Veja ao vivo: http://www.soltv.tv/soltv2/index.html
ResponderExcluirAcompanhei a #spanishrevolution pelo facebook e a articulação e engajamento das pessoas me impressionou muito, e acredito que magica desse movimento todo esteja justamente na desorientacao, na falta de um programa, de reinvidicacoes claras. Tudo aconteceu de tal modo que todo o sentimento de revolta convergiu, ao mesmo tempo, em uma mesma válvula de escape. Pra mim é um passo mais importante ate mesmo que as revoluções do mundo árabe, que tento influenciaram os acampamentos, porque elas compõem um quadro que não é de todo inédito: um povo se une para derrubar uma ditadura. É lindo, e ótimo que aconteça, mas... já aconteceu outras vezes. Mas o movimento na puerta del sol é o primeiro a apresentar uma visão mais critica da democracia liberal, o primeiro a entender que isso que o ocidente vive não passa de uma ditadura dos mercados financeiros. E no coração do mundo desenvolvido, não é um fórum social mundial, ou algum terceiromundista militante antiglobalizacao. É como se fosse o inicio da desconstrucao do mito da democracia, pra dar lugar a uma reflexão radical sobre o próprio conceito democracia. Radical no sentido de voltar à raiz, sem relativizar e dizer "se podemos votar, então tudo esta bem". Espero que se desdobre em um ciclo mais profundo de transformacoes. Quanto à existência de revoltas lá e aqui não, acho que isso se deva em parte ao próprio estagio de desenvolvimento de cada pais. Nos nunca tivemos um welfare state contra cujo desmantelamento nós pudéssemos nos revoltar. Por exemplo: não temos educacao superior de qualidade para todos. A tendencia e pensar: e dai, nunca tivemos mesmo... Os ingleses, que estão acostumados com universidade publica, gratuita e de qualidade, quando vem um governo querendo cobrar taxas absurdas dos estudantes, se revoltam. Da mesma forma a Espanha com sua crise. Europeus não estão acostumados com o FMI impondo medidas de austeridade a torto e a direito. É natural que se revoltem. No mais, não acho a minha geração mais tão acomodada, e estou bem mais confiante nela depois das ultimas semanas.
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