Direito é política: entendendo o polêmico caso Cesare Battisti

Há tempos a mídia tem discutido a extradição do ex-militante de extrema esquerda italiano Cesare Battisti, preso desde o início de 2009 no Brasil por quatro supostos homicídios ocorridos na Itália durante a década de setenta.

A história é longa e eu confesso que nunca havia dado muita importância. É claro que li muitas notícias durante esses últimos dois anos e ouvi muitos comentários simplistas, mas não havia, até ontem, realizado um esforço para compreender os fatos que envolvem o julgamento da Extradição nº. 1.085 e do Mandado de Segurança nº. 27.875 pelo Supremo Tribunal Federal.

É importante escapar da tendência jornalística de simplificar as coisas e analisar com calma as complexidades deste caso, que ultrapassam o âmbito jurídico e envolvem questões eminentemente políticas (reiterando a máxima do Critical Legal Studies de Roberto Mangabeira Unger e Duncan Kennedy de que "Law is Politics").

Pois bem. As primeiras perguntas que devem ser feitas são: i) quem é Cesare Battisti? ii) O que ele fez (do que ele é acusado)? e iii) Porque o caso é tão importante assim?


As explicações são muitas - e aí vem o problema do fator ideológico de quem produz a informação. A mídia tem polemizado a questão ao falar que Cesare Battisti é um terrorista que matou quatro pessoas na Itália e que seria um absurdo refugiá-lo no Brasil, considerando a condenação da Justiça Italiana. Entretanto, pouco tem se debatido sobre o contexto político-social - de luta armada comunista clandestina - e sobre a autenticidade das provas produzidas nos autos do processo criminal que condena Battisti por homicídio.

O senso comum aponta que Battisti é um assassino cruel e que, por isso, tem quer preso no seu país de origem. Mas é preciso ir além. O fato é que Cesare, em 1976, participou da organização de esquerda "Proletários Armados para o Comunismo", um grupo que buscava derrubar o governo através da luta armada - assim como ocorreu em Cuba (e o filme Mio Fratello è figlio unico retrata um pouco esse cenário, apesar de se passar na década de sessenta). O grupo foi desmantelado em 1979 e todos os membros foram presos e acusados de participação em quatro assassinatos. Em 1981, Battisti foi preso e condenado pelos assassinatos e por ações subversivas. Dois anos depois foge. Em 1983, outro membro é preso e, por delação premiada, Cesare Battisti é acusado pelos quatro crimes. Num julgamento colegiado, ele é condenado à prisão perpétua sem ter constituído acusado e sequer ter participado do processo (julgado à revelia).

Segundo Luís Roberto Barroso, Cesare Battisti é o bode expiatório de uma trama simples: grupos de direita no poder na Itália querem a extradição do militante para silenciar vozes contrárias ao governo - comandado hoje por Berlusconi. A tese da defesa é de que Battisti cometeu um crime político (e é um preso político). Veja sua objetiva sustentação oral na Suprema Corte:



No tocante à Constituição Federal, o caso Battisti é extremamente intrigrante. Afinal, caberia ao Supremo Tribunal Federal decidir se o ativista de esquerda deve ser extraditado ou não? O art. 102, inciso I, alínea g diz que compete ao STF processar e julgar a extradição solicitada por Estado estrangeiro (como foi é o caso presente). Entretanto, o art. , inciso LII, diz que "não será concedida a extradição de estrangeiro por crime político ou de opinião".

Decidindo o mérito, a Corte se dividiu. Os ministros Eros Grau, Joaquim Barbosa, Cármen Lúcia e Marco Aurélio divergiram do voto do min. Relator e votaram pela não extradição de Cesare. Desempatando a votação, Gilmar Mendes decidiu que os crimes cometidos por Cesare não tiveram conotação política e não prescreveram. Se tiver paciência, veja o voto minerva do caso:



O Supremo Tribunal Federal havia, portanto, decidido a questão jurídica: Cesare deveria ser extraditado. Mas a questão daí passou a ser outra: o chefe do Executivo (Luis Inácio Lula da Silva) deveria cumprir a decisão do STF ou teria poderes para decidir a extradição requisitada pelo governo italiano? - afinal, essa seria uma questão claramente diplomática entre Estados.

Novamente, por cinco votos a quatro, o Supremo decidiu que tem sim competência para autorizar ou não os pedidos de extradição. Todavia, uma vez autorizada, cabe ao Presidente decidir a questão. "Decretada a extradição pelo Supremo Tribunal Federal, deve o Presidente da República observar os termos do Tratado celebrado com o Estado requerente, quanto à entrega do extraditando", diz a decisão. O resumo da votação foi exposta no Programa Síntese da TV Justiça:



Desde o final de 2009, quando o caso foi julgado pelo STF, a extradição de Battisti tem gerado enorme polêmica e discussões sobre a validade de uma possível decisão do Presidente contrária ao posicionamento da Suprema Corte brasileira.

De um lado, o governo italiano alertou que a não extradição iria gerar um conflito diplomático com o Brasil. Do outro, movimentos de defesa de presos políticos ao redor do mundo clamaram pela liberdade de Battisti.

Numa carta aberta ao povo brasileiro, Cesare Battisti disse que os Ministros do STF fecharam os olhos frente a total falta de provas técnicas de sua culpabilidade e que ele agora, entregava sua vida às mãos do Presidente e do povo brasileiro: "Muitas conquistas sociais que hoje os italianos estão usufruindo foram conquistadas graças ao sangue derramado por esses companheiros da utopia. Eu sou fruto desses anos 70, assim como muitos outros aqui no Brasil, inclusive muitos companheiros que hoje são responsáveis pelos destinos do povo brasileiro. Eu na verdade não perdi nada, porque não lutei por algo que podia levar comigo. Mas agora, detido aqui no Brasil não posso aceitar a humilhação de ser tratado de criminoso comum. Por isso, frente à surpreendente obstinação de alguns ministros do STF que não querem ver o que era realmente a Itália dos anos 70, que me negam a intenção de meus atos; que fecharam os olhos frente à total falta de provas técnicas de minha culpabilidade referente aos quatro homicídios a mim atribuídos; não reconhecem a revelia do meu julgamento; a prescrição e quem sabem qual outro impedimento à extradição. Além de tudo, é surpreendente e absurdo, que a Itália tenha me condenado por ativismo político e no Brasil alguns poucos teimam em me extraditar com base em envolvimento em crime comum. É um absurdo, principalmente por ter recebido do Governo Brasileiro a condição de refugiado, decisão à qual serei eternamente grato. (...) Espero que o legado daqueles que tombaram no front da batalha não fique em vão. Podemos até perder uma batalha, mas tenho convicção de que a vitória nesta guerra está reservada aos que lutam pela generosa causa da justiça e da liberdade. Entrego minha vida nas mãos de Vossa Excelência e do Povo Brasileiro".

Lula, com toda sua malandragem política, deixou a decisão para a última hora. Com base no parecer da Advocacia Geral da União e no artigo terceiro do tratado entre Brasil e Itália, Lula decidiu pela não extradição de Cesare Battisti. “A extradição não será concedida se a parte requerida tiver razões ponderáveis para supor que a pessoa reclamada será submetida a atos de perseguição e discriminação por motivo de raça, religião, sexo, nacionalidade, língua, opinião política, condição social ou pessoal; ou que sua situação possa ser agravada por um dos elementos antes mencionados”, afirma o documento. Após a decisão de Lula, os advogados de Battisti pediram soltura imediata, mas o alvará para isso deve vir do STF.

Veja a nota oficial da Presidência.

"O presidente da República tomou hoje a decisão de não conceder a extradição ao cidadão italiano Cesare Battisti, com base em parecer da Advocacia Geral da União.

O parecer considerou atentamente todas as cláusulas do Tratado de Extradição entre o Brasil e Itália, em particular a disposição expressa na letra “f”, do item 1, do artigo 3 do Tratado, que cita, entre as motivações para a não extradição, a condição pessoal do extraditando. Conforme se depreende do próprio Tratado, esse tipo de juízo não constitui afronta de um Estado ao outro, uma vez que situações particulares ao indivíduo podem gerar riscos, a despeito do caráter democrático de ambos os Estados.

Ao mesmo tempo, o Governo brasileiro manifesta sua profunda estranheza com os termos da nota da Presidência do Conselho dos Ministros da Itália, de 30 de dezembro de 2010, em particular com a impertinente referência pessoal ao Presidente da República".

O advogado da Itália disse que irá impugnar o ato presidencial (veja a notícia aqui). Após o recesso, o Supremo Tribunal Federal decide se irá emitir o alvará de soltura de Cesare Battisti.

Ainda teremos muito pano pra manga, pode apostar. Afinal: uma vez que o Supremo decidiu que o Presidente de República teria poderes para decidir a questão, poderia a Corte voltar atrás e autorizar a extradição de Cesare Battisti em razão de pressões do governo italiano?

Em suma, quem tem poderes para resolver o caso? E mais: até que ponto podem existir retaliações políticas e econômicas a ponto de se tornar perigoso para o país decidir de forma contrária à vontade do governo italiano?

Veremos o desfecho em breve.

2 comentários:

  1. Parabens, pela brilhante materia. Não entendo nada de Direito.Mas entendo que, se eles passaram a BOLA para o LUlla decedi, é por que ficaram com Medo. Ponto
    Passei aqui lendo. Vim lhe desejar um Tempo Agradável, Harmonioso e com Sabedoria. Nenhuma pessoa indicou-me ou chamou-me aqui. Gostei do que vi e li. Por isso, estou lhe convidando a visitar o meu blog. Muito Simplório por sinal. Mas, dinâmico e autêntico. E se possivel, seguirmos juntos por eles. Estarei lá, muito grato esperando por você. Se tiveres tuiter, e desejar, é só deixar que agente segue.
    Um abraço e fique com DEUS.

    http://josemariacostaescreveu.blogspot.com

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  2. Zanatta, parabéns pela matéria. Texto escalrecedor e imparcial. Excelente. Vou divulgar no facebook, ok? Beijo!

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