Fiquei muito contente com uma notícia que recebi ontem do meu colega Helder Félix Souza. Ele foi aprovado no Mestrado da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) com um projeto de pesquisa muito bacana sobre biopoder e direito, propondo uma leitura de Michel Foucault e Giorgio Agamben - dois autores indispensáveis para uma análise crítica do direito (e do poder) dentro da lógica capitalista de uma sociedade de controle. Se tudo der certo, ele será orientado pela Prof.ª Jeanine Nicolazzi Philippi (veja esse texto dela sobre os signos totalitários do mundo ultraliberal - vale a pena).
O tema de investigação é instigante e complexo. Não é tarefa fácil definir (ou ao menos esboçar) a relação entre poder e direito hoje. Para tanto, faz-se necessário a compreensão de alguns conceitos, como o de biopoder, formulado por Foucault e discutido por diversos autores, como Deleuze e Agamben.
Michel Foucault, no (já) clássico Vigiar e Punir, expõe que, ao contrário do que ocorre no âmbito do poder da soberania, o poder disciplinar não se materializa na pessoa do rei, mas nos corpos dos sujeitos individualizados por suas técnicas disciplinares. O poder disciplinar é, na concepção foucaultiana, "um poder que, em vez de se apropriar e retirar, tem como função maior adestrar, ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor" (FOUCAULT 2001, p. 143). O poder disciplinar aumenta a utilidade dos indivíduos, potencializando rendimentos e lucros através de suas tecnologias de poder específicas.
Foucault observa a multiplicação das instituições de disciplina durante os últimos séculos. Através desta técnica de poder ("anatomia do poder") que fabrica indivíduos úteis, destacam-se três objetivos: tornar o exercício do poder menos custoso (política e economicamente), estender e intensificar os efeitos do poder o máximo possível e ampliar a docilidade e utilidade de todos os indivíduos submetidos ao sistema (FOUCAULT 2001, p. 179).
Foucault identifica três principais dispositivos disciplinares desta forma de poder: o olhar hierárquico (a vigilância pan-óptica), a sanção normalizadora e o exame. Esses dispositivos disciplinares funcionaram como um laboratório de poder em diversos locus (instituições, escolas, oficinas, hospitais), garantindo invisibilidade da disciplina e visibilidade dos sujeitos.
A partir da segunda metade do século XVII, Foucault aduz que o poder disciplinar passa a ser complementado pelo biopoder. Este não suprime a técnica disciplinar, mas a complementa com novos instrumentos de poder. Ao passo que o poder disciplinar se faz sentir nos corpos, o biopoder aplica-se em suas vidas. Trata-se de uma massificação do poder, na qual a cidade e a população ganham relevância. Para Foucault, há um elemento comum que transita entre o poder disciplinar e o biopoder, que possibilita a manutenção do equilíbrio entre a ordem disciplinar do corpo e a ordem aleatória da população: a norma. Daí surge o conceito de sociedade de normalização, pois Foucault exerga uma sociedade regida por essa norma ambivalente, na qual coexistem indivíduo e população, corpo e vida, individualiação e massificação, disciplina e regulamentação: "Dizer que o poder, no século XIX, tomou posse da vida, dizer pelo menos que o poder, no século XIX, incumbiu-s da vida, é dizer que ele conseguiu cobrir toda a superfície que se estende do orgânico ao biológico, do corpo à população, mediante o jogo duplo das tecnologias de disciplina, de uma parte, e das tecnologias de regulamentação, de outra" (FOUCAULT 1999, p. 302).
O biopoder também diz respeito ao conjunto de dispositivos que asseguram a propriedade sobre a vida e o direito "a morte" num Estado soberano. Para o pensador francês, a modernidade engendrou uma série de mortes: a justa e boa fé da Igreja Católica inventa uma rede de mortes aos pagãos que devemos não ser; a verdade e sua Razão (pensamento cartesiano) inventa a morte do pensamento móvel e vibrátil; a racionalidade, a ciência, as leis e os conhecimentos fortificam o direito a morte, calcado na ideia do incivilizado, do mau e do não verdadeiro que devemos não ser. O biopoder existe, portanto, na brecha de despotência em relação à vida que todas estas mortes produzem.
Na brilhante análise de Dinamara Feldens, o biopoder implica que o objeto de poder é a própria vida e toda relação relação implica em relação de forças, em estratégias de luta. "Toda a captura abriga uma fuga. Todas as relações são móveis. Viver é a grande luta com o presente" (FELDENS 2008, p. 77).
O poder agora é totalizante e individualizante. Neste sentido, Gilles Deleuze aponta que o processo de efetivação das materialidades do poder se dá através de um conjunto articulado de capturas, no qual o Estado é uma máquina de captura, que torna eficaz os dispositivos porque circunfera o pensamento, inventando universalidades e verdades: "só o pensamento pode inventar a ficção de um estado universal por direito, de elevar o Estado ao universal de direito. É como se o soberano se tornasse único no mundo, abarcasse todo o ecúmeno e tratasse apenas com sujeitos, atuais ou potenciais. (...) Se para o pensamento é interessante apoiar-se no Estado, não é menos interessante para o Estado dilatar-se no pensamento, e dele receber a sanção de forma única e Universal. É uma curiosa troca que se produz entre o Estado e a razão, mas esta troca é igualmente uma proposição analítica, visto que a razão realizada se confunde com o Estado de direito, assim como o Estado de fato é o devir da razão. Na filosofia dita moderna e o no Estado dito moderno ou racional, tudo gira em torno do legislador e do sujeito. (...) Obedece sempre, pois, quanto mais obedeceres, mais serás senhor, visto que só obedecerás à razão pura, isto é, a ti mesmo" (DELEUZE & GUATTARI 1997, p. 45). O direito, neste sentido, é instrumento intrínseco e necessário à complexa dinâmica e instrumentalização do biopoder.
Giorgio Agamben, filósofo italiano, retoma tais discussões propostas por Foucault e Deleuze em suas obras. Em Homo Sacer, Agamben propõe uma pesquisa sobre o culto ponto de intersecção entre o modelo jurídico-institucional e o modelo biopolítico do poder, unificando teorias de Michel Foucault e Hannah Arendt. Dentre os propáveis resultados, Giorgio Agamben conclui que "as duas análises não podem ser separadas e que a implicação da vida nua na esfera política constitui o núcleo originário - ainda que encoberto - do poder soberano. Pode-se dizer, aliás, que a produção de um corpo biopolítico seja a contribuição original do poder soberano. A biopolítica é, nesse sentido, pelo menos tão antiga quanto a exceção soberana. Colocando a vida biológica no centro de seus cálculos, o Estado moderno não faz mais, portanto do que reconduzir à luz do vínculo secreto que une o poder à vida nua, reatando assim (segundo uma tenaz correspondência entre moderno e arcaico que nos é dado verificar nos âmbitos mais diversos) com o mais imemorial dos arcana imperri" (AGAMBEN 2002, p. 14).
Agamben retoma ainda a definição aristotélica da pólis como oposição entre viver (zên) e viver bem (eû zên) e supera a análise do sentido, modos e possíveis articulações do "viver bem" como télos do político, propondo um nova questão: porque a política ocidental se constitui primeiramente através de uma exclusão da vida nua? - Mais: Qual é a relação entre política e vida, se esta se apresenta como aquilo que deve ser incluído através de uma exclusão?
Como visto, a questão é extremamente confusa. Afinal, que é a "vida nua" nos termos de Agamben? Murilo Costa Correa busca responder essa questão e entende que Agamben refere-se ao conceito de vida nua de forma ambígua: "Longe de constituir um paradoxo insolúvel, ou uma evidente inconsistência conceitual, a equivocidade pragmática do termo parece despertar uma sutil pregnância. Por vezes, encontraremos nos textos de Agamben uma referência aparentemente negativa ao conceito de vida nua; trata-se disso, precisamente quando vai desvendar as relações de simetria entre o homo sacer e o soberano político, ou na ocasião em que Agamben descreve o Láger, e afirma que, no campo de concentração, 'a vida nua a que o homem foi reduzido, não exige nem se adapta a nada: ela própria é a única forma, é absolutamente imanente'. Ao mesmo tempo, é possível encontrar referências positivas ao conceito de vida nua. Uma das mais marcantes encontra-se no final de Homo sacer. Refutando momentaneamente a tese foucaultinaa de uma nova economia do corpo e dos prazeres como formas de subjetivação, Agamben escreve que seria preciso 'fazer do próprio corpo biopolítico, da própria vida nua, o local em que constitui-se e instala-se uma forma de vida toda vertida em vida nua, um bíos que é somente a sua zoé'" (CORREA 2010, p. 379).
Giorgio Agamben reutiliza os conceitos gregos de zoé (simples fato de viver comum a todos os seres vivos) e bíos (forma ou maneita de viver própria de um indivíduo ou de um grupo) para discutir porque a simples vida natural é excluída do mundo clássico, da pólis, restando confinada como mera vida reprodutiva. A política, para Agamben, se apresenta como a estrutura, em sentido próprio fundamental, da metafísica ocidental, enquanto ocupa o limiar em que se realiza a articulação entre o ser vivente e o logos: "A politização na vida nua é a tarefa metafísica por excelência, na qual se decide da humanidade do vivente home, e, assumindo esta tarefa, a modernidade não faz mais do que declarar fidelidade à estrutura essencial da tradição metafísica. A dupla categorial fundamental da política ocidental não é aquela amigo-inimigo, mas vida nua-existência política, zoé-bíos, exclusão-inclusão. A política existe porque o homem é o vivente que, na linguagem, separa e opõe a si a própria vida nua e, ao mesmo tempo, se mantém em relação com ela numa exclusão inclusiva. (...) O estado de exceção, no qual a vida nua era, ao mesmo tempo, excluída e capturada pelo ordenamento, constituía, na verdade, em seu apartamento, o fundamento oculto sobre o qual repousava o inteiro sistema político" (AGAMBEN 2002, p. 17). Com isso, Giorgio Agamben quer dizer que quando as fronteiras se indeterminam, a vida nua libera-se na cidade e torna-se o sujeito e objeto do ordenamento político e de seus conflitos (ponto comum da organização do poder estatal e da emancipação dele), como se, similarmente ao processo disciplinar que transforma o homem vivente em objeto específico, entrasse em movimento um outro processo no qual o homem se apresenta não mais como objeto, mas como sujeito do poder político. O que está em questão é a vida nua do cidadão, o novo corpo biopolítico da humanidade.
A política, na visão de Agamben, na execução da tarefa metafísica que a levou a assumir sempre mais a forma de uma biopolítica, não conseguiu construir a articulação entre zoé e bíos (entre voz dos animais e linguagem dos homens). A vida continua presa a ela sob a forma de exceção, de algo que é incluído somente através de uma exclusão. Como politizar a zoé? - pergunta Agamben. Tem ela necessidade de ser politizada? O político já está contido nela? Para o pensador italiano, a biopolítica do totalitarismo moderno e a sociedade de consumo (e do hedonismo de massa) constituem uma resposta a estas perguntas. Até que não seja formulada uma nova política, não mais fundada na exceção da vida nua, a teoria e a práxis permanecerão aprisionadas num beco sem saídas.
Em suma (para não estender muito o presente texto com temas diversos da discussão originária), a biopolítica é (e será) um conceito mutável, em construção e que envolve uma pluralidade de outros temas, como poder, política, direito e vida. Debater tal conceito sob a ótica de autores como Giorgio Agamben é uma tarefa pouco simples e (por vezes) exaustiva, porém, extremamente interessante (a discussão que o autor faz no capítulo 4 sobre a forma pura da lei a partir do conto Before the Law, de Franz Kafka, por exemplo, é riquíssima, envolvendo Derrida, Kant, Benjamin e Heidegger).
Não tive a pretensão de explicar o que é a biopolítica, mas sim a singela intenção de compartilhar algumas reflexões de autores que considero relevantes sobre o tema.
Desejo boa sorte ao Hélder em seu Mestrado na UFSC. Quero acompanhar de perto os resultados de sua pesquisa.
Caso o faça, compartilharei suas reflexões aqui.
* Leituras recomendadas (e utilizadas no texto):
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
CORRÊA, Murilo D. C. A vida nua como conceito ético-político: uma genealogia. Captura Críptica: direito, política, atualidade. Revista Discente do Curso de Pós-Graduação em Direito, Florianópolis, n. 2, v. 2, p. 377-381, jan./jul., 2010.
FELDENS, Dinamara. Cartografias da ditadura e suas moralidades: os seres que aprendemos a ser. Maceió: EDUFAL, 2008.
FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Editora Vozes, 2001.
Esqueci de avisar: Na Revista Cult tem uma matéria muito legal sobre a herança foucaultiana de Agamben. Segue o link: http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/a-heranca-foucaultiana-de-agamben/
ResponderExcluirGrande Zanatta!!!Primeiro de tudo parabéns pela sua entrada no mestrado da USP!!! Vc merece, vai ser muito bom; e ainda mais a àrea que vc vai pesquisar é muito louca tb!!!Parabéns.
ResponderExcluirE segundo, fiquei muito feliz com a sua postagem sobre o tema da BIOPOLÍTICA E DIREITO!!!Esse tema dá medo né e pouco é discutido em meio acadêmico?ehhehe, mas sua postagem ficou muito boa, melhor que a minha monografia!!!hauheauehaeuhae (tô até pensando em copiar essa ai e mandar no lugar da minha, mas não dá mais tempo...).
Mas é isso ae, valeu pelos parabéns; valeu pela postagem, ficou muito ótima, e parabéns de novo por vc passar na USP!!!
Agente ainda vai produzir muito nesse meio acadêmico e meter pau na dogmática-neo-positivista-jurídica do Direito!!!CERTO!!
Manda parabéns também pro Michel!!!Ele merece!
Abraços,
Helder Félix.
Ahh, quase esqueci!!! Vc deixou um link muito bom da revista cult, eu adoro essa revista!
ResponderExcluirDeixo tb, outros links muito interessantes tb que vc vai curtir!!!
O do CAFÉ FILOSÓFICO DA CULTURA!.
Eu aconselho e ver quase todos os vídeos. Primeiro esse aqui, de uma filósofa que eu admiro muito o trabalho: Márcia Tiburi, sobre biopolítica, tanatopolítica, muito bom:
http://www.cpflcultura.com.br/site/2010/07/21/a-morte-como-regulamento-oculto-marcia-tiburi/
e, como vc é músico, e toca rock, acho que vai ser muito intessante e fundamental assistir estes outros:
http://www.cpflcultura.com.br/site/2010/10/14/rock-and-roll-%E2%80%93-a-invencao-da-adolescencia-entre-a-industria-e-a-angustia-cultural-chuck-berry-e-elvis-presley-%E2%80%93-marcia-tiburi-e-fernando-chui-2/
e
http://www.cpflcultura.com.br/site/2010/11/05/rock-and-roll-e-as-drogas-psicodelia-beatles-e-jimi-hendrix-%E2%80%93-fernando-chui-e-hamer-palhares-2/
Se não me engano tem mais um vídeo, acho que é uma "trilogia" sobre o assunto rock e filosofia!!
Assiste, vc vai curtir muito!!!
Falow Zanatta!!!
bjos,
Helder Félix.