O escritor Cristovão Tezza, catarinense radicado em Curitiba, considerado um dos maiores nomes da literatura brasileira contemporânea, estará hoje a noite na Cidade Canção para falar sobre criação literária em evento promovido pelo Sesc Paraná.
Meu amigo "canalha" Alexandre Gaioto, escritor, jornalista e colecionador de edições raras e autografadas de neoclássicos da literatura, o entrevistou para o jornal O Diário e publicou uma matéria muito bacana, que você pode ler aqui.
Se você é de Maringá, está livre e aprecia a boa prosa, não perca. Se não conhece Cristovão Tezza, fique com um texto publicado em 1991 chamado "Um Olhar de Curitiba", disponível no site do autor.
"Em nenhum lugar do mundo o olhar do Outro será tão mortal como em Curitiba. Não ria na festa, exceto como disfarce; não chore no enterro, a menos que estejam vendo; não erga os braços, temerário assim no meio da rua. Em último caso, protegido no bar, solte os nervos da gargalhada, do tapa demasiado forte nas costas, do palavrão retumbante e confira no mesmo instante o viés alheio: a extroversão não é alegria, é um risco calculado. A fila de ônibus é feita de Outros - por isso que se respeita. Não fale tão alto, exceto quando bêbado - e então fale tudo de uma vez, tudo aquilo que você vem observando a vida inteira e nunca lhe deram chance. Leia os jornais da terra, que são ruins de pedra, e vigie nas entrelinhas o que os calhordas andam inventando nos palácios. Investigue cada nome da coluna social: o próximo pode ser você, e mal acompanhado. Melhor nem sair no jornal: os outros vão rir, e a inveja vai te comer. Nas cerimônias públicas, fique firme, a gravata ajeitadinha, e meta o olho na calça curta da autoridade, na peruca torta da madame, na viadagem do orador, no ridículo daquele um que está sentado duas poltronas à frente cheio de caspa no paletó. Quem é esse que sem mais nem menos lhe pede informação na rua? Não é daqui, senão ia sozinho.
Como sozinho vai Dalton Trevisan, desde sempre, o paradigma de Curitiba, a avessa, a indecifrável, a incorruptível Curitiba, que por nenhum preço do mundo aceita um carimbo na testa, por mais alto que a banda toque.
E como reclamam dele! Como metem o pau, como descobrem defeitos, como lhe cobram empadinhas! E as pedras, então? Rútilas, cortantes na cabeça. De tal modo que ele, santo homem, decidiu compilá-las em dois ou três parágrafos - Quem tem medo de vampiro? - para maior facilidade de manuseio. Inútil: o jornalismo ingênuo decidiu que ele fazia autocrítica! Um curitibano fazendo autocrítica, já se viu?! Ridículo! Nem no Partidão! Antes beber da água do Rio Belém!
Em outra encarnação - Curitiba está povoada de espíritos - Dalton Trevisan também foi curitibano, quando a cidade sequer existia; e ao nascer foi só esperar que o Vampiro lhe desse uma face, sempre a mesma, de microscópicos relevos que ocupam todas as ruas, por mais que tombem as casas, que se atravessem os expressos, que se iluminem os acrílicos, que se plantem pinheirinhos. Saudades de Curitiba de trinta anos atrás? Saudades das polaquinhas? Saudades da velha manca? Nem é preciso. Curitiba é um Olhar, e até meu avô sabia que olhar não ocupa espaço. Mas como esmaga!
Nenhuma cidade tem mais vergonha na cara que Curitiba - tanta, que emudece, na timidez doida e doída, no silêncio pesado de alguma coisa mais grave, mais forte, mais alta que o riso fácil brasileirinho.
Só uma proteção: olhe você também. E os Outros darão o troco, porque o nosso jogo é este, fuzilante.
Olham e dizem: mas ele escreve sempre a mesma história, e cada vez mais torto! Pois por que não reclamam de Samuel Beckett, que passou a vida dizendo a mesma frase pela metade e nunca provou uma broinha de fubá mimoso? Está certo que o tal bradava a morte do Homem, sem usar vírgula; mas Dalton Trevisan aponta com o dedo, e a sintaxe irritadiça, quem está morrendo - é aquele ali na esquina, com uma espinha na testa, é a piranha de meia furada, é o Dario que já morreu e roubaram o relógio dele. E acabou-se a página. Que culpa o Vampiro tem se o sangue é sempre o mesmo? Não é só na Europa; também em Curitiba não há nenhuma esperança na face da terra. Alguém precisa nos lembrar disso, por escrito, porque a memória é frágil, e o mundo está cheio de levianos alegrinhos fingindo que a vida é o mar de rosas da rádio Colombo - e não esse espanto desajeitado que atravessa o mundo inteiro, do mesmo modo que a Barreirinha.
Olham e dizem: mas que vocabulário estreito, que coleirinha de chavões! Pra que mais, se o que ele quer é uma só palavra na veia, a que mata! O bom veneno é o já testado, como o café da Boca.
Olham e dizem: mas por que esse nojo do povinho, dos miseráveis, dos pequenos? Pois por acaso alguém é Nobre, alguém é Grande? Você conhece? Mora aonde?
E depois de olharem e dizerem até a última gota de cafezinho, querem recuperar a ovelha desgarrada (que todos somos) tentando lhe pregar uma peça de ouro, um medalhão no peito, para desfrute na praça, com casquinhas pra todo lado e logotipo moderno. Nunca! Pois Curitiba é assim: não se entrega; comparece à cerimônia, mas ri até o gozo dos que caem na arapuca e sobem no palco para receber os louros e as palminhas. Quem perdoa a coroação de Emiliano Perneta? (Mas a boca-livre estava ótima.)
Por último: mas nem uma fotografia? Se Vampiro não sai em espelho, vai sair em fotografia? Quem fotografa Curitiba vê fachadas - muito bonitas - e mais nada. Olhe bem. Ela está em outra parte. Não perca tempo com as fachadas. Melhor o azulejo branco do velho Palácio e o cheiro do bife, melhor a peçonha destilada na cerveja.
Dalton Trevisan, é certo, será sempre assim, revisitado a cada linha reescrita mil vezes. Quanto à sua secreta alma gêmea, Curitiba, esta dependerá da força dos espíritos ante a horda dos invasores do Terceiro Milênio - o povão da periferia, os catarinas migrantes, os funcionários transferidos, os nordestinos teimosos... Acabam de se mudar e em uma semana já não visitam ninguém sem convite prévio - é a primeira das Sete Provas de Fogo, que às vezes levam uma vida inteira. Basta passear no calçadão da XV, percorrer os domingos do Passeio Público - é essa a cor de Curitiba? De qual delas? Do Município Oficial, teimando em inventar uma História que se perdeu, ou, quem sabe, nunca existiu além do paranismo risível, mas que sobrevive heróico e retumbante nas páginas da Gazeta? Da Curitiba estrangeira que chegou e vem chegando de toda parte fazendo filhos curitibanos e ocupando apartamentos? Ou do Olhar intangível e onipresente que coloca cada pose no seu devido lugar, com a impiedade dos profetas? No ano 2000 - que está na porta! -, que alma teremos nós? O rosto já sabemos: calçadões-rolantes, heliporto na Santos Andrade, bonde solar. Mas e a alma?
Que se preparem os espíritos. Será uma luta lenta, silenciosa e medonha. Porque é mais fácil mudar todas as canaletas do Expresso em sete dias que suprimir o Olhar, a Ira e a Curitiba de Dalton Trevisan."
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