Do rio, que tudo arrasta, diz-se que é violento. Mas ninguém chama violentas às margens que o comprimem.
Bertolt Brecht
"População toma as ruas em Maputo. Foto: Amanda Rossi"
Acho que todos vocês, por mais desligados que sejam, tiveram conhecimento da revolta popular e crise política que está acontecendo em Moçambique (ex-colônia portuguesa na costa oeste da África), mais precisamente em Maputo, capital do país. Desde o dia primeiro de Setembro, manifestantes tomaram as ruas em protesto ao aumento dos preços de produtos básicos. A revolta popular gerou pânico, violência e mortes.
Quando li algumas notícias na internet, logo pensei na minha amiga de adolescência Amanda Rossi, que estava em Moçambique desde Julho deste ano. Nós estudamos juntos por muitos anos em Maringá, nos encontrando poucas vezes depois que ela se mudou para São Paulo para cursar Jornalismo na Universidade de São Paulo.
No dia anterior às manifestações populares, Amanda havia me mandado um e-mail informando que seu blog Tempo de Política estava concorrendo ao prêmio Blog Books na categoria "melhor blog político". Durante o intercâmbio, ela já havia publicado uma excelente matéria na Carta Capital sobre os trinta e cinco anos de independência de Moçambique e os dilemas da influência externa na política pública. Há dois meses, ela escreveu: "Em junho, Moçambique comemorou 35 anos de independência e enfrenta um dilema: está preso na teia da ajuda internacional. Em 2010, apenas 56% do orçamento do Estado foi financiado com recursos próprios e, para receber o dinheiro da ajuda, o país precisa seguir metas políticas, econômicas e sociais traçadas pelos doadores".
Na época, Amanda identificou o fracasso dos programas de ajuste estrutural do Banco Mundial e as tentativas de ajuda internacional, mas não escreveu sobre os movimentos sociais e a potencialidade de uma revolta popular em Moçambique. Num e-mail, dois dias depois da violenta manifestação noticiada no mundo todo, Amanda me escreveu: "rolou em Maputo a revolta popular mais louca que eu já vi na vida!".
No dia da manifestação, ela publicou uma matéria no site Opera Mundi relatando em detalhes o ocorrido: "Ontem (31/8), propagaram-se mensagens de celular chamando a população a entrar em greve nessa quarta-feira, dia para o qual estavam previstos aumentos nos preços de água, energia e pão: 'Moçambicano, prepara-te para a greve geral 01/09/2010. Reivindicamos a subida do preço do pão, água, luz e diversos. Envie para outros moçambicanos. Despertar'. Nos bairros da periferia da cidade, onde se concentraram as manifestações, a situação era tensa. À tarde, feridos não paravam de chegar aos hospitais e viaturas policiais circulavam em alta velocidade pelas ruas em direção às zonas de confronto. As autoridades moçambicanas ainda não têm informações sobre quem seriam os autores das mensagens. Nenhuma organização reivindicou a liderança dos protestos. Até agora, tudo indica que as manifestações não tem um comando e que ganharam força devido ao descontentamento geral da população com o aumento do custo de vida."
Aqui no Brasil, Amanda editou um vídeo entitulado "O Povo no Poder", com fotos e imagens da manifestação de Maputo. O vídeo foi publicado ontem no YouTube e tem como trilha a música do rapper Azagaia, que compôs a música em razão da crise em seu país.
A situação é de crise e violência. Essas duas palavras podem definir bem a situação atual, mas não explicam as causas dos levantes populares, que são muitos mais complexas. Comentando a situação, o sociólogo moçambicano Carlos Serra (Universidade Eduardo Mondlane, Maputo) escreveu que "uma parte significativa dos relatos sobre as manifestações populares iniciadas a 1 deste mês nas cidades de Maputo e Matola, das descrições, das fotografias, das conversas, do nosso dia-a-dia feito de perguntas e de respostas que façam sentido, das nossas tentativas de interpretação, é habitada pelo excesso do que se passou, pela desmesura, pela antirotina, pela violência, pelo roubo, pela destruição, pela inutilização do que é útil, pelo fogo expresso na familiar paisagem do pneu queimado na cidade de Maputo, pelo futuro incendiado (uma expressão à Mia Couto) enfim. Por outras palavras, estamos perante um quadro definido como violento (noção à qual regressarei na continuidade da série), antisocial, incongruente, cheio de delinquentes primários, de destruidores que ferem a rotina, a boa consciência e o bom senso, tal como na imagem em epígrafe, quadro que obriga a que se pense na produção de rótulos sociais. Por outro lado, as manifestações encaixam em nós a noção da crise súbita e, especialmente, a noção da crise contraposta à rotina anterior".
O que fica claro, reafirmando os dizeres de Boaventura Sousa Santos, é que a paisagem em Moçambique é de conflito e transformação social. Ainda falta muito para se "democratizar a democracia". A violência em Maputo, relatada pela amiga jornalista Amanda Rossi, simplesmente confirma tal tese.
Sim, foi a revolta popular mais louca que já vi na vida. No calor do momento e no frio da reflexão. Mas, por quê? Passei quase 6 meses em Moçambique, sem ver um protesto, uma manifestação (exceto dos persistentes Madjermanes, espero algum dia poder contar a história deles), nem sequer uma discussão exaltada sobre política em mesa de bar. Passei 6 meses ouvindo histórias de pessoas que calaram quando poderiam denunciar.
ResponderExcluirApenas 6 dias antes das revoltas, entrevistei o rapper moçambicano Azagaia, que não tem papas na língua, e perguntei a ele se o povo realmente se fazia no poder (uma de suas músicas se chama Povo no Poder), se ele não achava que havia poucas manifestações e reivindicações públicas no país. Apenas 1 dia antes das revoltas, entrevistei um dos membos dos Madjermanes e perguntei a ele por que havia tão poucas manifestações em Moçambique e os Madjermanes eram exceção.
E, no dia 01/09, o povo moçambicano me dá uma grande lição, um tapa na cara. Depois de 6 meses no país, eu achava que a sociedade moçambicana não se manifestava. Mas, sim, se manifesta, luta, e com a maior força que eu já vi. Mulheres, homens, crianças montaram barricadas, colocaram fogo em pneus, enfrentaram as balas reais da polícia (a Liga dos Direitos Humanos e o Centro de Integridade Pública lastimaram a violência policial). Se fizeram ver, ouvir, sentir. Pararam a cidade. Deixaram com medo os que não tem fome. Ganharam apoio dos que não tem fome. Isso tudo sem uma organização, sem um sindicato, sem uma liderança, sem grupo nenhum por trás. Só com a força da indignação.
É verdade que escrevo de forma muito romântica sobre a revolta popular de Maputo. Houve erros, excessos, lacunas, não nego. Mas, para mim, nada deslegitima esse movimento espontâneo e vitorioso, essa prova de força do povo moçambicano.