Ozaí e os intelectuais

O Prof. Antonio Ozaí da Silva, do Departamento de Ciências Sociais da UEM, publicou ontem um breve (e excelente) texto sobre o papel dos intelectuais na sociedade. Faço questão de reproduzi-lo sem prévia autorização.


Sobre os intelectuais

Desde a antiguidade que os intelectuais se colocam a soldo dos governantes e colaboram para a conservação do poder e do status quo (BOBBIO, 1997). Por outro lado, sempre existiram os contestadores da ordem e do poder político vigente, os inconformistas e instabilizadores; os que construíram novas ordens e produziram novos contestadores e defensores da ordem instituída.

O intelectual deve tomar partido diante dos dilemas do seu tempo? Deve engajar-se na política ou abster-se de participar do poder? Deve assumir o papel de conselheiro do príncipe? Qual o seu compromisso social?

Sartre, modelo de intelectual engajado, celebrizou este debate ao defender que o intelectual-escritor não é neutro diante da realidade histórica e social. “O escritor “engajado” sabe que a palavra é ação: sabe que desvendar é mudar e que não se pode desvendar senão tencionando mudar”, afirma (SARTRE, 1993). No contexto capitalista é impossível manter a imparcialidade diante da condição humana. Para ele, “a função do escritor é fazer com que ninguém possa ignorar o mundo e considerar-se inocente diante dele”.

O intelectual, porém, tende a separar a palavra do mundo, o conceito da realidade. As palavras dissociam-se da vida real, das contradições, sofrimentos e esperanças dos que vivem o mundo. Como assinalou Paulo Freire: “Em última análise, tornamo-nos excelentes especialistas, num jogo intelectual muito interessante – o jogo dos conceitos! É um “balé de conceitos” (FREIRE, 1986).

Não se trata apenas de refletir sobre o mundo, de desvendá-lo aos olhos dos incrédulos, mas de arrancá-los da consciência feliz, isto é, da sua ignorância perante o mundo e a condição humana neste, tencionando-os para transformá-lo. Se a palavra é ação, esta não é contemplação: “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo” (MARX, 1982). A discussão sobre a relação teoria e prática, contemplação e transformação, permanece atual.

Sartre observa que o intelectual moderno é um homem-contradição, um ser dividido entre a ideologia particularista (fatores econômicos, sociais e culturais que condicionam sua vida) e o universalismo (exigência intrínseca da sua atitude como técnico e pesquisador). “Um físico que se dedica a construir a bomba atômica é um cientista. Um físico que contesta a construção desta bomba é um intelectual” (SARTRE, 1994). Eis o paradoxo do intelectual moderno na acepção sartreana.

O especialista não questiona as condições em que se dá a pesquisa, o resultado ou o uso que se faz dela. Mas é precisamente no momento em que o pesquisador “se mete no que não é da sua conta e que pretende contestar o conjunto das verdades recebidas, e das condutas que nelas se inspiram em nome de uma concepção global do homem e da sociedade” que ele se torna um intelectual.

Tocqueville, no século XIX, censurou os intelectuais, os quais teriam desempenhado um papel negativo na Revolução Francesa (TOCQUEVILLE, 1982). Em contraposição, Sartre argumenta que os filósofos iluministas tiveram a missão de desenvolver os pressupostos teóricos que legitimaram a ideologia burguesa, a qual se tornou universal e hegemônica. Os filósofos eram intelectuais orgânicos, no sentido gramsciano (GRAMSCI, 1982).

Se somos feitos à imagem e semelhança de Deus, o ideal iluminista nos fez à imagem e semelhança do homem burguês. Os intelectuais modernos, técnicos do saber prático, encontram-se presos às amarras do humanismo universalista burguês e às contradições do seu ser social, enquanto membros de uma categoria social vinculada à ideologia dominante. Então, coloca-se a necessidade de construção de um novo humanismo, outra universalidade. Esta é, na acepção sartreana, a tarefa histórica dos intelectuais.

Referências bibliográficas

BOBBIO, Norberto. Os intelectuais e o poder: dúvidas e opções dos homens de cultura na sociedade contemporânea. São Paulo: Editora UNESP, 1997.
FREIRE, Paulo; SCHOR, Ira. Medo e ousadia – O cotidiano do professor. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a Organização da Cultura. São Paulo, Círculo do Livro, 1982.
MARX, Karl. Teses Sobre Feuerbach. In: Marx & Engels, Obras Escolhidas, v. I. Lisboa: Edições “Avante”; Moscou: Edições Progresso, 1982.
SARTRE, Jean-Paul. Em defesa dos intelectuais. São Paulo: Ática, 1994.
SARTRE, Jean-Paul. Que é Literatura. São Paulo: Ática, 1993.
TOCQUEVILLE, Alex de. O Antigo Regime e a Revolução. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1982.





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