Uma vitória na ONU?
Nesta quarta-feira (27/11), a diretora internacional para liberdade de expressão da Electronic Frontier Foundation (EFF), Jullian York, e a jurista peruana Katitza Rodriguez publicaram um texto intitulado "Estamos a um passo mais perto de acabar com a vigilância em massa" (We're One Step Closer to Ending Mass Surveillance). Neste texto, York e Rodriguez celebram uma vitória conquistada na "luta contra as violações de direitos humanos postas pela vigilância em massa". Tal vitória, na opinião das ativistas, ocorreu no âmbito da diplomacia internacional.
As autoras celebram o rascunho da resolução "O direito à privacidade na era digital" (The right to privacy in the digital age), introduzido pelo Brasil e pela Alemanha e adotado pela III Comissão da 68ª Assembleia Geral da ONU (cf. Nota 405 do Ministério das Relações Exteriores).
Segundo as ativistas do EFF, "o rascunho de resolução introduzido por Brasil e Alemanha não nomeia países específicos, mas está direcionado a garantir o direito à privacidade para todos, em um tempo em que Estados Unidos e Reino Unido têm conduzido graves vigilâncias em massa em bilhões de indivíduos inocentes de todo o mundo". A resolução também endossa o relatório sobre liberdade de expressão e vigilância produzido em abril de 2013 pelo jurista Frank La Rue (cf. Report of the Special Rapporteur on the promotion and protection of the right to freedom of opinion and expression, ONU).
Para entender o tom celebratório do texto de York e Rodriguez, é preciso compreender o conteúdo integral da resolução apresentada pelo Brasil e pela Alemanha. A partir da versão publicada pelo Itamaraty - a mesma versão disponível no site da ONU -, elaborei rapidamente uma tradução livre do texto.
A Assembléia Geral,Reafirmando os objetivos e princípios da Carta das Nações Unidas,Reafirmando também os direitos humanos e as liberdades fundamentais consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos e nos tratados internacionais de direitos humanos relevantes, incluindo o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais,Reafirmando ainda mais a Declaração de Viena e o Programa de Ação,Notando que o ritmo acelerado de desenvolvimento tecnológico permite que pessoas em todo o mundo usem novas tecnologias de informação e comunicação e ao mesmo tempo aumenta a capacidade dos governos, empresas e indivíduos para realizar vigilância, interceptação e coleta de dados, o que pode violar ou abusar direitos humanos, em especial o direito à privacidade, tal como estabelecido no artigo 12 da Declaração Universal dos Direitos Humanos e no artigo 17 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, e é, portanto, um problema cada vez mais preocupante,Reafirmando o direito humano à privacidade, segundo o qual ninguém será sujeito a interferências arbitrárias ou ilegais na sua privacidade, família, lar ou correspondência, bem como o direito à proteção da lei contra tais interferências, e reconhecendo que o exercício do direito à privacidade é importante para a realização do direito à liberdade de expressão e de ter opiniões sem interferência e um dos fundamentos de uma sociedade democrática,Sublinhando a importância do pleno respeito à liberdade de buscar, receber e transmitir informações, incluindo a importância fundamental de acesso à informação e participação democrática,Acolhendo o relatório do Relator Especial sobre a promoção e proteção do direito à liberdade de opinião e de expressão, apresentado ao Conselho de Direitos Humanos em sua vigésima terceira sessão, sobre as implicações da vigilância de comunicações sobre o exercício do direito humano à privacidade e à liberdade de opinião e de expressão,Enfatizando que a vigilância e/ou intercepção de comunicação ilegal ou arbitrária, bem como a recolha ilegal ou arbitrária de dados pessoais, como atos altamente intrusivos, violam os direitos à privacidade e à liberdade de expressão e pode contradizer os princípios de uma sociedade democrática,Notando que, embora as preocupações sobre a segurança pública podem justificar a coleta e proteção de determinadas informações sensíveis, os Estados devem assegurar o pleno cumprimento das suas obrigações no âmbito do direito internacional dos direitos humanos,Profundamente preocupados com o impacto negativo que a vigilância e/ou intercepção de comunicações, incluindo a vigilância e/ou intercepção de comunicações extraterritorial, bem como a recolha de dados pessoais, nomeadamente quando realizadas em larga escala, pode ter sobre o exercício e gozo dos direitos humanos,Reafirmando que os Estados devem assegurar que todas as medidas tomadas para combater o terrorismo sejam feitas em conformidade com suas obrigações sob o direito internacional, em particular os direitos humanos internacionais, direito humanitário e de refugiados,1. Reafirma o direito à privacidade, segundo o qual ninguém será sujeito a interferências arbitrárias ou ilegais na sua privacidade, família, lar ou correspondência, bem como o direito à proteção da lei contra tais interferências, tal como estabelecido no artigo 12 da Declaração Universal dos Direitos Humanos e do artigo 17 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos;2. Reconhece a natureza global e aberta da Internet e do rápido avanço nas tecnologias de informação e comunicação como uma força motriz para acelerar o progresso rumo ao desenvolvimento em suas várias formas;3. Afirma que os mesmos direitos que as pessoas possuem fora da internet (offline) também devem ser protegidos na internet (online), incluindo o direito à privacidade;4. Convoca todos os Estados:(a) A respeitar e proteger o direito à privacidade, inclusive no contexto da comunicação digital;(b) A tomar medidas para pôr fim às violações desses direitos e para criar as condições para evitar que tais violações, inclusive assegurando que a legislação nacional se adeque com as suas obrigações no âmbito do direito internacional dos direitos humanos;(c) A rever os seus procedimentos, práticas e legislação relativa à vigilância de comunicações, a sua intercepção e de recolha de dados pessoais, incluindo a vigilância em massa, interceptação e cobrança, tendo em vista a defesa do direito à privacidade, garantindo a plena e efetiva implementação de todas as suas obrigações no âmbito do direito internacional dos direitos humanos;(d) A estabelecer ou manter mecanismos existentes independentes eficazes de supervisão nacionais capazes de garantir a transparência, conforme o caso, e accountability da vigilância estatal das comunicações, da sua intercepção e recolha de dados pessoais;5. Solicita ao Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos que apresente um relatório sobre a proteção e promoção do direito à privacidade no contexto da vigilância e/ou intercepção de comunicações digitais e recolha de dados pessoais, incluindo em grande escala, para o Conselho de Direitos Humanos, em sua Vigésima Sétima sessão, e à Assembléia Geral, em sua sexagésima nona sessão, com pontos de vista e recomendações, que devem ser considerados pelos Estados-Membros;6. Decide examinar a questão em sua sexagésima nona sessão, sob o sub-item intitulado "questões de direitos humanos, incluindo abordagens alternativas para melhorar o gozo efetivo dos direitos humanos e liberdades fundamentais" do item intitulado "Promoção e proteção dos direitos humanos".
A resistência dos EUA e o embate diplomático
Apesar da importância da resolução, há derrotas na mobilização civil para proteção à privacidade e combate à vigilância em massa. York e Rodriguez consideram que, ao mesmo tempo em que essa é uma "pequena vitória para a privacidade, nós devemos notar que a resolução foi enfraquecida pelos Estados Unidos e seus aliados, que eliminaram uma frase que explicitamente definia a vigilância em massa como uma violação dos direitos humanos".
Segundo o relato das ativistas, os EUA também tentaram remover qualquer sugestão de que as garantias de privacidade se aplicavam extraterritorialmente. O texto final do rascunho da resolução notou que os Estados estão "profundamente preocupados" com os "impactos negativos" da vigilância e a coleta de dados pessoais. Para as ativistas, "a resolução é importante em reafirmar um princípio já aceito do direito internacional: de que os Estados devem cumprir com seus próprios comprometimentos de direitos humanos ao exercer seu poder fora de seus limites territoriais. Em outras palavras, se um Estado está conduzindo vigilância extraterritorial, ele permanece vinculado à garantir do direito à privacidade a todos". A resistência vem das grandes potências burocratizadas e dotadas de organizações de inteligência.
Mobilizações da sociedade civil: uma luta de poucos?
A disputa pela construção dos discursos jurídicos no âmbito internacional tem como pano de fundo a mobilização de organizações da sociedade civil, em escala global, que elegeram a proteção à privacidade como bandeira política. Um exemplo é a elaboração colaborativa do documento International Principles on the Application of Human Rights to Communications Surveillance, apoiado por mais de 300 instituições ao redor do mundo.
A EFF tem chamado tal documento de "princípios do povo". Trata-se da luta pelo direito na esfera individual, criando uma estrutura normativa de proteção - com potencial de abrangência global - contra o avanço da burocratização instrumentalizada pelas tecnologias. É como se a sociedade civil despertasse da ilusão do progresso técnico e se atentassem para a "jaula de ferro" racionalizadora criada por ela própria - uma angústia já sentida por Max Weber no início do século passado.
Apesar da presença da sociedade civil, nacional e internacional, nas articulações políticas que estão por trás das propostas diplomáticas feitas por Brasil e Alemanha, o engajamento popular com o tema ainda é muito baixo. Um sinal desta anemia cívica é o impacto causado por tais notícias nos meios de comunicação. É como se nada de importante estivesse acontecendo. Os fatos não impactam, muito provavelmente pela falta de compreensão ou pelo baixo esforço daqueles envolvidos em explicar o contexto das lutas e o cenário atual.
Minha impressão é que os "princípios do povo" infelizmente ainda são os princípios de uma pequena elite educada e engajada com as ameaças às liberdades e com os efeitos nocivos da continuidade e manutenção dos programas de vigilância em massa. Pode ser uma questão de tempo. Quem sabe daqui há alguns anos não estaremos discutindo tais princípios nas escolas básicas da rede pública. Mas o fato - como já afirmado - é que o engajamento político com tais questões ainda é baixo. Talvez tal situação seja imutável. Talvez exista um elemento histórico: são poucos que promovem as lutas e mudanças que afetarão muitos. Mas o problema de apoiar-se neste raciocínio é que ele perpetua o fechamento e isolamento dos supostos "progressistas".
Vale a pena investir em outra estratégia. Utilizemos as ferramentas de comunicação disponíveis para sensibilizar, informar, relatar, traduzir documentos, compartilhar opiniões, criar redes de conexões. O que está em jogo afeta a todos. Basta entender.
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