Eric Hobsbawm (1917-2012) agora faz parte da história. Em 01 de outubro (segunda-feira), faleceu um dos grandes nomes da corrente historiográfica conhecida como British Marxists Historians, responsável por utilizar as ideias de Karl Marx e visualizar a história vista por baixo (history from below), com fortíssimo diálogo com a teoria social e a economia política. Hobsbawm integrou um grupo de intelectuais britânicos que foi influenciado pela teoria marxiana durante as décadas de 1930 e 1940. Este mesmo grupo, na década de cinquenta, foi responsável pela renovação da historiografia através de estudos sobre classes operárias, camponesas e grupos oprimidos, ao invés da simples "história dos vencedores". Ao longo de uma carreira intelectual de mais de 60 anos, Eric Hobsbawm consagrou-se como um dos maiores historiadores do século XX. Atualmente, suas obras são lidas em diversas partes do mundo, por estudantes de diferentes áreas das ciências humanas.
Uma síntese apertada da trajetória de Hobsbawm: Marx e história social
Compreender a trajetória de Hobsbawm auxilia a entender melhor o teor de suas impactantes obras. Em um texto sobre o "historiador do século" publicado em seu blog, Priscila Costa (História-UEM) faz uma releitura de um texto de Marcos Martins (FFLCH-USP) e explica as origens de Hobsbawm e a formação do grupo marxista em Cambridge: "De família judia, o menino Eric Hobsbawm e sua irmã moraram com os pais em Viena e Berlim durante a infância. Órfão de pai e mãe aos catorze anos, ele e a irmã foram criados a partir de então pelos tios, e em 1933, na ascensão de Hitler, mudaram-se para a Inglaterra (MARTINS, 2010). Foi em Cambridge que Hobsbawm obteve sua formação em História, curso fundamental para jovens britânicos que se interessavam pela vida pública. O interesse do autor por história, no entanto, cresceu na adolescência ao entrar em contato com os estudos de Marx e Engels, como explica Martins. Ainda na graduação, Hobsbawm e seus colegas enriqueceram os estudos do curso de História com o interesse pela discussão com colegas doutorandos, grupos de estudos, e com a busca de fontes históricas, livros e periódicos disponíveis na instituição. Hobsbawm chamou esse processo, muito bem aproveitado por ele e seus colegas, de 'programa de autoeducação' naquela universidade que lhes oferecia tantos recursos . A importância das contribuições de Hobsbawm começa a ganhar solidez na década de 1950, quando (reunido com historiadores marxistas como Christopher Hill, Rodney Hilton, Edward Thompson e outros) funda a revista Past and Present em 1952".
Interessante notar que a influência de Hobsbawm se deve, em parte, ao grupo intelectual que fez parte. Hobsbawm trabalhou coletivamente no Historians' Group of the Communist Party, que nasceu em 1946 e encerrou suas atividades em 1956, em meio a uma profunda desilusão com as ações do Partido Comunista Soviético, em especial invasão húngara. Como o próprio autor afirma na introdução do livro British Marxistis Historians, de Harvey Kaye, "It was through the members and activities of the group that the main international impact of British marxist history was made". Ao lado de E. P. Thompson, Hobsbawm tornou-se o mais famoso historiador deste grupo britânico no Brasil.
Depois da publicação de Primitive Rebels: Studies in Archaic Forms of Social Movement in the 19th and 20th centuries, lançado em 1959 pela Manchester University Press, Hobsbawm foi divulgado nos Estados Unidos em 1960 (o livro recebeu o nome Social Bandits and Primitive Rebels). A preocupação de Hobsbawm era a de entender o banditismo como uma forma rudimentar de protesto social, algo que deveria ser de interesse do historiador: "Bandits and highwaymen preocuppy the police, but they ought also to preoccupy the social historian. For in one sense banditry is a rather primitive form of organized social protest, perhaps the most primitive we know". A partir de vários "estudos de caso", Hobsbawm foi capaz de saturar os dados empíricos e formular um tipo-ideal (sociologia compreensiva) sobre o banditismo: "Something like an ideal type of social banditry exists, and this is what I propose to discuss, even though few bandits of recorded history, as distinct from legend, correspond completely to it (...) It may be convenient to sketch the standardized picture of the social bandit's career. A man becomes a bandit because he does something which is not regarded as criminal by his local conventions, but is so regarded by the State or the local rules". Hobsbawm destacava que as convenções locais do campesinato garantiam proteção ao "bandido", pois este não era considerado criminoso para a comunidade, mas somente para a classe dominante. A trajetória do banditismo seguia um geral um mesmo padrão: primeiro, ocorria um ofensa legal menor, que era seguida de fuga e apoio à rede comunitária: "The State shows an interest in a peasent because of some minor infraction of the law, and the man takes to the hills because how dows he know what a system which does not know or understand peasants, and which peasants do not understand, will do to him? (...) It is important that the incipient social bandit should be regardaed as 'honourable' or non-criminal by the population, for if he was regarded as a criminal against local convention, he could not enjoy the local protection on which he must rely completely". Nesta obra, observa-se a erudição de Hobsbawm sobre temáticas sociais, um invejável domínio de várias línguas e uma extraordinária capacidade de retenção de dados empíricos e fatos históricos. Em suma, os atributos necessários para um historiador de elite.
Nos anos 1950 e 1960, Eric Hobsbawm começou a obter reconhecimento como autor de sólidas, criativas e influentes pesquisas sobre as classes populares. Como sintetiza Martins, "foi o tempo dos estudos que focalizavam os trabalhadores e os camponeses diante do processo de expansão da modernidade capitalista. Desde essa época, os temas que dominam a obra de Hobsbawm não variaram muito: banditismo social, campesinato e política, operários e política, revoluções liberais do século XIX, história das idéias e relações internacionais, cultura popular (história do jazz). A partir dos anos 1960 e 1970, Hobsbawm também recebeu reconhecimento como autor de ótimas sínteses da história contemporânea, que viraram manuais didáticos bastante usados por estudantes no mundo inteiro. A partir de fins da década de 1970, a universidade brasileira passou a ler mais intensamente os trabalhos de Hobsbawm, em traduções que rapidamente se multiplicaram. Nas nossas Faculdades de Filosofia e Letras e Faculdades de Economia e Administração, os textos do historiador inglês integraram as referências bibliográficas de numerosas disciplinas, destacando-se sua tetralogia sobre a história contemporânea".
No Brasil, popularizam-se as obras de história contemporânea escritas por Hobsbawm em um período de quarenta anos, que se iniciaram com The Age of Revolution: Europe 1789-1848, publicada em 1962; The Age of Capital: 1848-1975, publicada em 1975; The Age of Empire: 1875-1914, publicada em 1987; e The Age of Extremes: the short twentieth century, 1914-1991, monumental obra sobre o período vivido pelo próprio autor, o "brevíssimo século XX". Os livros foram publicados no Brasil nos seguintes anos:
Fonte: Martins (2010)
A tabela elaborada por Martins cobre até o ano de 2002, motivo pelo qual estão de fora as obras Globalização, Democracia e Terrorismo - excelente ensaio de Hobsbawm sobre a "era do terror" pós-onze de setembro e a hegemonia militar dos EUA - e o último livro lançado por Eric Hobsbawm, a coletânea de ensaios How to Change the World, publicada em 2011 em Londres, período em que o autor completou incríveis 94 anos de vida.
A despedida de Hobsbawm: ainda Marx?
No Brasil, o último livro de Hobsbawm foi publicado pela editora Companhia das Letras e recebeu o título de "Como Mudar o Mundo: Marx e o marxismo, 1840-2011". A obra foi traduzida por Donaldson Garschagen. A partir do vasto conhecimento sobre a formação intelectual de Karl Marx, Hobsbawm busca pintar um quadro geral sobre o socialismo antes e depois de Marx, observando especificamente a influência da Marx no século XX. No início do livro, no capítulo "Marx Hoje", Hobsbawm observa: "Não se pode dizer que ao morrer, em 1883, Marx tivesse propriamente fracassado, pois seus textos tinham começado a causar impacto na Alemanha (onde um movimento encabeçado por discípulos seus já estava a caminho de controlar o movimento operário alemão) e, principalmente, sobre intelectuais na Rússia. Entretanto, em 1883 havia pouca coisa que justificasse o trabalho de toda a sua vida. Marx havia escrito alguns panfletos brilhantes e a base de sua obra magna, inacabada, O capital, trabalho que pouco avançou na última década de vida do autor. 'Que obras?', retrucou ele, acabrunhado, quando um visitante lhe perguntou sobre suas obras. A chamada Primeira Internacional de 1864-73, sua principal iniciativa política desde o fracasso da revolução de 1848, tinha ido a pique. Tampouco ele granjeara para si um lugar importante na política ou na vida intelectual da Grã-Bretanha, onde vivera como exilado durante mais de metade da vida. Entretanto, que extraordinário êxito póstumo! Menos de 25 anos após sua morte, partidos políticos operários fundados em seu nome, ou que afirmavam inspirar-se nele, recebiam de 15% a 47% dos votos em países com eleições democráticas - sendo a Grã-Bretanha a única exceção. Depois de 1918, a maioria desses partidos passou a fazer parte dos governos, deixando de ser apenas oposição, e assim eles permaneceram até depois do fim do fascismo, quando então se dispuseram a repudiar sua inspiração original. Todos existem ainda. Nesse meio-tempo, discípulos de Marx criaram grupos revolucionários em países não democráticos e no Terceiro Mundo. Setenta anos após a morte de Marx, um terço da humanidade vivia sob regimes regidos por partidos comunistas que alegavam representar suas deias e materializar suas aspirações. Bem mais de 20% da humanidade ainda vivem em países comunistas, embora seus partidos governistas, com pequenas exceções, tenham mudado radicalmente sua política. Em suma, se houve um pensador que deixou uma marca forte e indelével no século XX, foi ele. No Cemitério Highgate estão sepultados dois pensadores do século XIX - Karl Marx e Herbert Spencer - e, curiosamente, da tumba de um se avista a do outro. Quando ambos eram vivos, Herbert era considerado o Aristóteles da época, enquanto Karl era um sujeito que morava nas ladeiras mais baixas de Hampstead à custa do dinheiro do amigo. Hoje ninguém sequer sabe que Spencer está sepultado ali, enquanto peregrinos idosos, vindos do Japão e da Índia, visitam o túmulo de Karl Marx, e comunistas exilados iranianos e iraquianos fazem questão de ser enterrados à sua sombra".
No fim de sua vida, Hobsbawm tinha a convicção do resgate do pensamento do polêmico filósofo alemão. "Marx é hoje, mais uma vez, e com toda justiça, um pensador para o século XXI". Para o historiador, seriam duas as razões para isso: (i) o fim do marxismo oficial na União Soviética liberou Marx da identificação pública com o leninismo na teoria e com os regimes leninistas na prática; (ii) o mundo capitalista globalizado que surgiu na década de 1990 exibia, em vários aspectos vitais, uma "estranha semelhança com o mundo previsto por Marx no Manifesto comunista".
Com a crise econômica global de 2008, o temor do colapso do sistema financeiro, a retração econômica e fuga de capitais, os programas de austeridade impostos aos países europeus, a reação popular nas ruas (motins, protestos organizados em rede, ocupações de praças públicas) e a ausência de uma saída imediata a essa crise estrutural do capitalismo, o espectro de Marx voltou a assombrar os debates públicos. "Em outubro de 2008, quando o jornal londrino Financial Times estampou a manchete 'Capitalismo em convulsão', não podia mais haver dúvida de que Marx estava de volta aos refletores. Enquanto o capitalismo mundial estiver passando por sua mais grave crise desde o começo da década de 1930, será improvável que Marx saia de cena. Por outro lado, o Marx do século XXI será, com certeza, bem diferente do Marx do século XX", escreveu Hobsbawm.
Qual seria, portanto, a relevância de Marx no século XXI? Inicialmente, Hobsbawm constrói uma argumentação em dois pontos: "O modelo de socialismo ao estilo soviético - até agora a única tentativa de construir uma economia socialista - não existe mais. Por outro lado, verificou-se um avanço imenso e acelerado da globalização e da puta e simples capacidade de geração de riqueza por parte dos seres humanos. Isso diminuiu o poder e o âmbito da ação econômica e social por parte dos Estados-nações e, portanto, das políticas clássicas dos movimentos social-democratas, que se baseavam primordialmente em pressionar os governos nacionais em favor das reformas. Em vista do predomínio do fundamentalismo de mercado, a combinação de globalização e riqueza gerou também uma extrema desigualdade econômica dentro dos países e entre regiões, e devolveu o elemento de catástrofe ao ritmo cíclico básico da economia capitalista, incluindo a desordem que se tornou a mais grave crise mundial desde a década de 1930. Nossa capacidade produtiva possibilitou, pelo menos potencialmente, que grande parte dos seres humanos passasse do reino da necessidade para o da afluência, da educação e de opções de vida inimagináveis, embora a maior parte da população do mundo ainda esteja por entrar nesse domínio. No entanto, durante a maior parte do século XX, os movimentos e regimes socialistas ainda atuavam essencialmente dentro do reino da necessidade, mesmo os países ricos do Ocidente, onde surgiu uma sociedade de afluência popular nos vinte anos que se seguiram até 1945. Contudo, no reino da afluência, os objetivos de alimentação, vestuário, habitação, empregos para garantir renda e um sistema de bem-estar social para proteger as pessoas das vicissitudes da vida, ainda que necessários, já não constituem um programa suficiente para os socialistas". Por fim, Hobsbawm destaca os limites ambientais do presente modelo de produção econômica, o calcanhar de Aquiles do capitalismo. Um dos sinais do caráter histórico do capitalismo é que o sistema contemporâneo não se sustenta a longo prazo em razão da limitação das matrizes energéticas e fontes primárias, que são orgânicas e respeitam um ciclo natural de vida. Arremata Hobsbawm: "Como a expansão espetacular da economia global ameaçou o meio ambiente, tornou-se urgente a necessidade de controlar o crescimento econômico desenfreado. Há um óbvio conflito entre a necessidade de reverter ou de pelo menos controlar o impacto de nossa economia sobre a biosfera e os imperativos de um mercado capitalista: crescimento máximo e contínuo na busca do lucro. Esse é o calcanhar de Aquiles do capitalismo. Não podemos, no presente, prever de onde partirá a flecha que lhe será fatal".
Aos 94 anos, em Fevereiro de 2011, Hobsbawm apresentou-se na Socialist History Society para divulgar as ideias centrais de sua coletânea de ensaios How to Change the World. Mesmo com uma saúde extremamente debilitada, o historiador apresentava plena clareza analítica e capacidades mentais. No vídeo abaixo, sem tradução para o inglês, Hobsbawm explica a influência de Marx em suas ideias - uma escolha de engajamento político no qual interpretação e transformação do mundo estão unidas - e a importância da renovação das ideias marxistas hoje.
Repercussões da morte de Hobsbawm no Brasil: Veja x ANPUH
A morte de Eric Hobsbawm teve repercussão massiva na mídia brasileira. Obviamente, o fenômeno é reflexo da força da mídia britânica, que dita as pautas globais. Na Inglaterra, os jornais prestaram homenagens ao historiador marxista nascido em Alexandria e exaltaram não somente sua força intelectual, mas também a contribuição à História (enquanto ramo do saber). O The Guardian ressaltou a ar de tristeza entre os amantes da história: "To anyone who loves history his death is very sad news. May his books be read for many years to come" (cf. 'Eric Hobsbawm: the history man'). A British Broadcasting Company (BBC) também prestou homenagens a Hobsbawm.
Os franceses, como velhos rivais culturais da Inglaterra, deram pouca atenção à morte de Hobsbawm. Andrei Netto, correspondente do jornal paulistano Estadão, descreveu bem a situação: "O mundo perdeu nesta segunda-feira, 01, um dos maiores intelectuais de seu tempo - e quiçá de todos os tempos. Mas quem na França se informa pela grande imprensa em língua francesa correria o risco de não tomar conhecimento da notícia de seu desaparecimento. Em sua morte, Eric Hobsbawn foi tratado como em vida - como um maldito, sobre o qual pouca ou nenhuma atenção deve ser dispensada" (cf. 'Célebre no mundo, Hobsbawm era um maldito na França').
O Estadão, através do referido Andrei Netto, publicou uma excelente matéria sobre a vida de Hobsbawm no dia de sua morte, rendendo-lhe homenagens: "Perscrutador incansável do seu século, Hobsbawm deixou uma obra que é aula magistral de história contemporânea" (cf. 'Intérprete incansável do século 20'). O texto é bastante objetivo, sem juízos de valor, e tanto elogia a capacidade de síntese histórica e construção narrativa de Hobsbawm, quanto critica a falta de posicionamento do autor com relação ao stalinismo - argumento utilizado pela direita para demonstrar sua suposta inflexibilidade com relação aos aspectos negativos da experiência marxista da União Soviética.
Em terras brasileiras, a Revista Veja protagonizou um espetáculo deprimente ao atacar sem argumentos bem construídos o professor de Birkbeck. A matéria intitulada "A imperdoável cegueira ideológica de Eric Hobsbawm" inicia dizendo que o "maior historiador esquerdista de língua inglesa foi um idiota moral". A matéria, bastante simplória, tenta recortar argumentos de Tony Judt e David Pryce-Jones sobre a forma como a crença no comunismo prejudica a análise histórica de Hobsbawm. Para o autor da matéria da Revista Veja - símbolo do pensamento de classe média que almeja o sucesso e a riqueza -, "o talento de historiador, é forçoso dizer, ficará para sempre manchado pela cegueira com que ele se agarrou a uma posição ideológica insustentável".
Como resposta à matéria publicada pela Veja, Diretoria da Associação Nacional de História (ANPUH) divulgou um texto em que rebate a tese da "cegueira ideológica de Hobsbawm". A contestação é severa: "Trata-se de um julgamento barato e despropositado a respeito de um dos maiores intelectuais do século XX. Veja desconsidera a contradição que é inerente aos homens. E se esquece do compromisso de Hobsbawm com a democracia, inclusive quando da queda dos regimes soviéticos, de sua preocupação com a paz e com o pluralismo. A Associação Nacional de História (ANPUH-Brasil) repudia veementemente o tratamento desrespeitoso, irresponsável e, sim, ideológico, deste cada vez mais desacreditado veículo de informação. O tratamento desrespeitoso é dado logo no início do texto 'historiador esquerdista', dito de forma pejorativa e completamente destituído de conteúdo. E é assim em toda a 'análise' acerca do falecido historiador. Nós, historiadores, sabemos que os homens são lembrados com suas contradições, seus erros e seus acertos. Seguramente Hobsbawm será, inclusive, criticado por muitos de nós. E defendido por outros tantos. E ainda existirão aqueles que o verão como exemplo de um tempo dotado de ambiguidades, de certezas e dúvidas que se entrelaçam. Como historiador e como cidadão do mundo. Talvez Veja, tão empobrecida em sua análise, imagine o mundo separado em coerências absolutas: o bem e o mal. E se assim for, poderá ser ela, Veja, lembrada como de fato é: medíocre, pequena e mal intencionada" (cf. 'ANPUH responda à Veja').
É claro que há um posicionamento ideológico por parte da Revista ao criticar a "cegueira ideológica" de Hobsbawm. Tudo se dá no campo político e na batalha por mentes e corações. A provocação, entretanto, serve apenas para confundir as massas. A revista não possui um pingo de sofisticação intelectual. Até mesmo jornalistas anticomunistas como William Waack demonstraram respeito por Hobsbawm (basta ver sua entrevista ao Milênio). Não se trata de endeusar um pensador de esquerda. É preciso ter respeito por grandes intelectuais, tanto de direita quanto esquerda. São sujeitos que pensam o mundo e que originam ideias que movem ações políticas.
Revolução árabe, Occupy e a persistência da crise: Hobsbawm queria mudar o mundo?
O fato de Hobsbawm ter morrido em 2012 é significativo. Pois caso tivesse falecido em 2006, talvez não tivesse conquistado o respeito de grande parte dos intelectuais do mundo, independentemente de filiação ao comunismo ou ao capitalismo de Estado. O pós-crise revitalizou Marx, levantando uma questão de primeira ordem: até que ponto a globalização econômica financeirizada trouxe benefícios para a humanidade? Daí a importância da última obra de Hobsbawm, não obstante o ceticismo do historiador com relação a grandes mudanças em breve.
A Revolução Árabe e os movimentos de ocupação em rede (15-M, Occupy Wall Street, etc) trouxeram ânimo a Hobsbawm. Em uma entrevista realizada em Janeiro de 2012, ele afirmou: "A Primavera Árabe é encorajadora. Eu não esperava ver em meu tempo de vida uma revolução genuína (old-fashioned) com pessoas indo às ruas e derrubando regimes, algo como a revolução de 1848, que é, na verdade, a origem do nome "Primavera Árabe". Lembre-se, 1848 era chamado de Tempo de Primavera do Povo. E o que acontecer no futuro é enorme. Houve outros desenvolvimentos positivos em razão da extraordinária facilidade com a qual é tecnologicamente possível mobilizar as pessoas. O movimento Occupy é um exemplo disto, assim como são as recentes demonstrações na Rússia. Não é possível tomar a passividade dos cidadãos como eterna. Há respostas. O povo que tomou a iniciativa não é uma minoria representativa. Eles são a minoria mobilizável, o que eu costumo chamar de "stage army of the good" - neste caso, exército de palco dos estudantes e boêmios. Mas o ponto é, se as coisas forem mais longes, pode ficar fora de controle. Uma das razões pelas quais eu me senti predisposto a escrever esse livro foi a de lembrar as pessoas, especialmente as pessoas jovens, de que é possível mudar o mundo" (cf. 'Revolution Springs Eternal for Eric Hobsbawm').
Hobsbawm nunca foi economista, mas tinha certeza de que o fundamentalismo de mercado globalizado levaria o sistema à ruína. Profundo conhecedor da história do século XX, sabia, desde o início, que o crash de 2008 era tão profundo quanto o de 1929. Em suas análises até meados de 2012, antes de sua pneumonia piorar, manifestava que os governos europeus e estadunidense estavam longes de superar a crise estrutural do sistema econômico. Os únicos países a serem elogiados foram os latino-americanos, que haviam mesclado medidas anticíclicas com redistribuição de renda e inclusão social. Como é sabido, Luiz Inácio Lula da Silva era um grande admirador de Hobsbawm, do mesmo modo que Hobsbawm elogiava o Brasil por ter "mudado o equilíbrio do mundo e levado os países em desenvolvimento para o centro da política internacional". No ano passado, eles estiveram juntos (cf. 'Lula: o modelo do líder político?'). Atualmente, trocavam mensagens e notas (cf. a nota oficial do ex-Presidente sobre a morte de Hobsbawm).
O sujeito Eric já não existe. Suas obras e ideias, entretanto, permanecerão publicadas em inúmeras línguas, influenciado uma enorme geração de acadêmicos, políticos e policy makers. Ao dedicar uma obra à importância da Marx em 2011, Hobsbawm relembra Joseph Schumpeter, que no início da década de 1940 escreveu Capitalism, Socialism and Democracy. Para Schumpeter, os anos de 1923 a 1943 testemunharam a mais interessante ressurreição marxista. O economista, leitor de Marx e crítico de sua abordagem, iniciava seu livro com o clássico parágrafo: "A maior parte das criações da inteligência ou da fantasia desaparece para sempre, em espaço de tempo que pode variar de uma hora a uma geração. Com outras, porém, tal não acontece. Sofrem eclipses, é certo. Mas ressurgem. E ressurgem, não como elementos irreconhecíveis da herança cultural, mas com roupagens e cicatrizes próprias, que podem ser vistas e tocadas. A estas podemos denominar de grandes, e não equivale a subestimar, unir a grandeza à vitalidade. Tomada em tal sentido, é, sem dúvida, a expressão que bem e aplica à mensagem de Marx. Há, ainda, uma vantagem em definir a grandeza pelo renascimento: a mensagem ressurge independentemente de nosso amor ou ódio. Não precisamos exigir que toda grande realização seja, necessariamente, fonte de luz, ou perfeita em seus pormenores e objetivos fundamentais. Ao contrário, podemos aceitá-la como um poder das trevas. Podemos achá-la fundamentalmente errada, ou não concordar com ela em numerosos pontos. No caso do sistema marxista, tal julgamento contrário ou mesmo refutação correta, por seu próprio malogro em feri-lo fatalmente, serve apenas para provar a força de sua estrutura".
Independentemente do amor ou ódio - parafraseando Schumpeter -, é preciso reconhecer a força do argumento de Karl Marx ao analisar o capitalismo. Talvez o último esforço de Hobsbawm tenha sido o de chamar a atenção dos leitores para algo que Marx possa sinalizar (não responder) para o enfrentamento da crise. É preciso reinterpretar Marx no século XXI ao invés de reciclar teorias marxistas do século XX. Talvez essa seja a mensagem do velho historiador. Será possível?
A despedida de Hobsbawm: ainda Marx?
No Brasil, o último livro de Hobsbawm foi publicado pela editora Companhia das Letras e recebeu o título de "Como Mudar o Mundo: Marx e o marxismo, 1840-2011". A obra foi traduzida por Donaldson Garschagen. A partir do vasto conhecimento sobre a formação intelectual de Karl Marx, Hobsbawm busca pintar um quadro geral sobre o socialismo antes e depois de Marx, observando especificamente a influência da Marx no século XX. No início do livro, no capítulo "Marx Hoje", Hobsbawm observa: "Não se pode dizer que ao morrer, em 1883, Marx tivesse propriamente fracassado, pois seus textos tinham começado a causar impacto na Alemanha (onde um movimento encabeçado por discípulos seus já estava a caminho de controlar o movimento operário alemão) e, principalmente, sobre intelectuais na Rússia. Entretanto, em 1883 havia pouca coisa que justificasse o trabalho de toda a sua vida. Marx havia escrito alguns panfletos brilhantes e a base de sua obra magna, inacabada, O capital, trabalho que pouco avançou na última década de vida do autor. 'Que obras?', retrucou ele, acabrunhado, quando um visitante lhe perguntou sobre suas obras. A chamada Primeira Internacional de 1864-73, sua principal iniciativa política desde o fracasso da revolução de 1848, tinha ido a pique. Tampouco ele granjeara para si um lugar importante na política ou na vida intelectual da Grã-Bretanha, onde vivera como exilado durante mais de metade da vida. Entretanto, que extraordinário êxito póstumo! Menos de 25 anos após sua morte, partidos políticos operários fundados em seu nome, ou que afirmavam inspirar-se nele, recebiam de 15% a 47% dos votos em países com eleições democráticas - sendo a Grã-Bretanha a única exceção. Depois de 1918, a maioria desses partidos passou a fazer parte dos governos, deixando de ser apenas oposição, e assim eles permaneceram até depois do fim do fascismo, quando então se dispuseram a repudiar sua inspiração original. Todos existem ainda. Nesse meio-tempo, discípulos de Marx criaram grupos revolucionários em países não democráticos e no Terceiro Mundo. Setenta anos após a morte de Marx, um terço da humanidade vivia sob regimes regidos por partidos comunistas que alegavam representar suas deias e materializar suas aspirações. Bem mais de 20% da humanidade ainda vivem em países comunistas, embora seus partidos governistas, com pequenas exceções, tenham mudado radicalmente sua política. Em suma, se houve um pensador que deixou uma marca forte e indelével no século XX, foi ele. No Cemitério Highgate estão sepultados dois pensadores do século XIX - Karl Marx e Herbert Spencer - e, curiosamente, da tumba de um se avista a do outro. Quando ambos eram vivos, Herbert era considerado o Aristóteles da época, enquanto Karl era um sujeito que morava nas ladeiras mais baixas de Hampstead à custa do dinheiro do amigo. Hoje ninguém sequer sabe que Spencer está sepultado ali, enquanto peregrinos idosos, vindos do Japão e da Índia, visitam o túmulo de Karl Marx, e comunistas exilados iranianos e iraquianos fazem questão de ser enterrados à sua sombra".
No fim de sua vida, Hobsbawm tinha a convicção do resgate do pensamento do polêmico filósofo alemão. "Marx é hoje, mais uma vez, e com toda justiça, um pensador para o século XXI". Para o historiador, seriam duas as razões para isso: (i) o fim do marxismo oficial na União Soviética liberou Marx da identificação pública com o leninismo na teoria e com os regimes leninistas na prática; (ii) o mundo capitalista globalizado que surgiu na década de 1990 exibia, em vários aspectos vitais, uma "estranha semelhança com o mundo previsto por Marx no Manifesto comunista".
Com a crise econômica global de 2008, o temor do colapso do sistema financeiro, a retração econômica e fuga de capitais, os programas de austeridade impostos aos países europeus, a reação popular nas ruas (motins, protestos organizados em rede, ocupações de praças públicas) e a ausência de uma saída imediata a essa crise estrutural do capitalismo, o espectro de Marx voltou a assombrar os debates públicos. "Em outubro de 2008, quando o jornal londrino Financial Times estampou a manchete 'Capitalismo em convulsão', não podia mais haver dúvida de que Marx estava de volta aos refletores. Enquanto o capitalismo mundial estiver passando por sua mais grave crise desde o começo da década de 1930, será improvável que Marx saia de cena. Por outro lado, o Marx do século XXI será, com certeza, bem diferente do Marx do século XX", escreveu Hobsbawm.
Qual seria, portanto, a relevância de Marx no século XXI? Inicialmente, Hobsbawm constrói uma argumentação em dois pontos: "O modelo de socialismo ao estilo soviético - até agora a única tentativa de construir uma economia socialista - não existe mais. Por outro lado, verificou-se um avanço imenso e acelerado da globalização e da puta e simples capacidade de geração de riqueza por parte dos seres humanos. Isso diminuiu o poder e o âmbito da ação econômica e social por parte dos Estados-nações e, portanto, das políticas clássicas dos movimentos social-democratas, que se baseavam primordialmente em pressionar os governos nacionais em favor das reformas. Em vista do predomínio do fundamentalismo de mercado, a combinação de globalização e riqueza gerou também uma extrema desigualdade econômica dentro dos países e entre regiões, e devolveu o elemento de catástrofe ao ritmo cíclico básico da economia capitalista, incluindo a desordem que se tornou a mais grave crise mundial desde a década de 1930. Nossa capacidade produtiva possibilitou, pelo menos potencialmente, que grande parte dos seres humanos passasse do reino da necessidade para o da afluência, da educação e de opções de vida inimagináveis, embora a maior parte da população do mundo ainda esteja por entrar nesse domínio. No entanto, durante a maior parte do século XX, os movimentos e regimes socialistas ainda atuavam essencialmente dentro do reino da necessidade, mesmo os países ricos do Ocidente, onde surgiu uma sociedade de afluência popular nos vinte anos que se seguiram até 1945. Contudo, no reino da afluência, os objetivos de alimentação, vestuário, habitação, empregos para garantir renda e um sistema de bem-estar social para proteger as pessoas das vicissitudes da vida, ainda que necessários, já não constituem um programa suficiente para os socialistas". Por fim, Hobsbawm destaca os limites ambientais do presente modelo de produção econômica, o calcanhar de Aquiles do capitalismo. Um dos sinais do caráter histórico do capitalismo é que o sistema contemporâneo não se sustenta a longo prazo em razão da limitação das matrizes energéticas e fontes primárias, que são orgânicas e respeitam um ciclo natural de vida. Arremata Hobsbawm: "Como a expansão espetacular da economia global ameaçou o meio ambiente, tornou-se urgente a necessidade de controlar o crescimento econômico desenfreado. Há um óbvio conflito entre a necessidade de reverter ou de pelo menos controlar o impacto de nossa economia sobre a biosfera e os imperativos de um mercado capitalista: crescimento máximo e contínuo na busca do lucro. Esse é o calcanhar de Aquiles do capitalismo. Não podemos, no presente, prever de onde partirá a flecha que lhe será fatal".
Aos 94 anos, em Fevereiro de 2011, Hobsbawm apresentou-se na Socialist History Society para divulgar as ideias centrais de sua coletânea de ensaios How to Change the World. Mesmo com uma saúde extremamente debilitada, o historiador apresentava plena clareza analítica e capacidades mentais. No vídeo abaixo, sem tradução para o inglês, Hobsbawm explica a influência de Marx em suas ideias - uma escolha de engajamento político no qual interpretação e transformação do mundo estão unidas - e a importância da renovação das ideias marxistas hoje.
Repercussões da morte de Hobsbawm no Brasil: Veja x ANPUH
A morte de Eric Hobsbawm teve repercussão massiva na mídia brasileira. Obviamente, o fenômeno é reflexo da força da mídia britânica, que dita as pautas globais. Na Inglaterra, os jornais prestaram homenagens ao historiador marxista nascido em Alexandria e exaltaram não somente sua força intelectual, mas também a contribuição à História (enquanto ramo do saber). O The Guardian ressaltou a ar de tristeza entre os amantes da história: "To anyone who loves history his death is very sad news. May his books be read for many years to come" (cf. 'Eric Hobsbawm: the history man'). A British Broadcasting Company (BBC) também prestou homenagens a Hobsbawm.
Os franceses, como velhos rivais culturais da Inglaterra, deram pouca atenção à morte de Hobsbawm. Andrei Netto, correspondente do jornal paulistano Estadão, descreveu bem a situação: "O mundo perdeu nesta segunda-feira, 01, um dos maiores intelectuais de seu tempo - e quiçá de todos os tempos. Mas quem na França se informa pela grande imprensa em língua francesa correria o risco de não tomar conhecimento da notícia de seu desaparecimento. Em sua morte, Eric Hobsbawn foi tratado como em vida - como um maldito, sobre o qual pouca ou nenhuma atenção deve ser dispensada" (cf. 'Célebre no mundo, Hobsbawm era um maldito na França').
O Estadão, através do referido Andrei Netto, publicou uma excelente matéria sobre a vida de Hobsbawm no dia de sua morte, rendendo-lhe homenagens: "Perscrutador incansável do seu século, Hobsbawm deixou uma obra que é aula magistral de história contemporânea" (cf. 'Intérprete incansável do século 20'). O texto é bastante objetivo, sem juízos de valor, e tanto elogia a capacidade de síntese histórica e construção narrativa de Hobsbawm, quanto critica a falta de posicionamento do autor com relação ao stalinismo - argumento utilizado pela direita para demonstrar sua suposta inflexibilidade com relação aos aspectos negativos da experiência marxista da União Soviética.
Em terras brasileiras, a Revista Veja protagonizou um espetáculo deprimente ao atacar sem argumentos bem construídos o professor de Birkbeck. A matéria intitulada "A imperdoável cegueira ideológica de Eric Hobsbawm" inicia dizendo que o "maior historiador esquerdista de língua inglesa foi um idiota moral". A matéria, bastante simplória, tenta recortar argumentos de Tony Judt e David Pryce-Jones sobre a forma como a crença no comunismo prejudica a análise histórica de Hobsbawm. Para o autor da matéria da Revista Veja - símbolo do pensamento de classe média que almeja o sucesso e a riqueza -, "o talento de historiador, é forçoso dizer, ficará para sempre manchado pela cegueira com que ele se agarrou a uma posição ideológica insustentável".
Como resposta à matéria publicada pela Veja, Diretoria da Associação Nacional de História (ANPUH) divulgou um texto em que rebate a tese da "cegueira ideológica de Hobsbawm". A contestação é severa: "Trata-se de um julgamento barato e despropositado a respeito de um dos maiores intelectuais do século XX. Veja desconsidera a contradição que é inerente aos homens. E se esquece do compromisso de Hobsbawm com a democracia, inclusive quando da queda dos regimes soviéticos, de sua preocupação com a paz e com o pluralismo. A Associação Nacional de História (ANPUH-Brasil) repudia veementemente o tratamento desrespeitoso, irresponsável e, sim, ideológico, deste cada vez mais desacreditado veículo de informação. O tratamento desrespeitoso é dado logo no início do texto 'historiador esquerdista', dito de forma pejorativa e completamente destituído de conteúdo. E é assim em toda a 'análise' acerca do falecido historiador. Nós, historiadores, sabemos que os homens são lembrados com suas contradições, seus erros e seus acertos. Seguramente Hobsbawm será, inclusive, criticado por muitos de nós. E defendido por outros tantos. E ainda existirão aqueles que o verão como exemplo de um tempo dotado de ambiguidades, de certezas e dúvidas que se entrelaçam. Como historiador e como cidadão do mundo. Talvez Veja, tão empobrecida em sua análise, imagine o mundo separado em coerências absolutas: o bem e o mal. E se assim for, poderá ser ela, Veja, lembrada como de fato é: medíocre, pequena e mal intencionada" (cf. 'ANPUH responda à Veja').
É claro que há um posicionamento ideológico por parte da Revista ao criticar a "cegueira ideológica" de Hobsbawm. Tudo se dá no campo político e na batalha por mentes e corações. A provocação, entretanto, serve apenas para confundir as massas. A revista não possui um pingo de sofisticação intelectual. Até mesmo jornalistas anticomunistas como William Waack demonstraram respeito por Hobsbawm (basta ver sua entrevista ao Milênio). Não se trata de endeusar um pensador de esquerda. É preciso ter respeito por grandes intelectuais, tanto de direita quanto esquerda. São sujeitos que pensam o mundo e que originam ideias que movem ações políticas.
Revolução árabe, Occupy e a persistência da crise: Hobsbawm queria mudar o mundo?
O fato de Hobsbawm ter morrido em 2012 é significativo. Pois caso tivesse falecido em 2006, talvez não tivesse conquistado o respeito de grande parte dos intelectuais do mundo, independentemente de filiação ao comunismo ou ao capitalismo de Estado. O pós-crise revitalizou Marx, levantando uma questão de primeira ordem: até que ponto a globalização econômica financeirizada trouxe benefícios para a humanidade? Daí a importância da última obra de Hobsbawm, não obstante o ceticismo do historiador com relação a grandes mudanças em breve.
A Revolução Árabe e os movimentos de ocupação em rede (15-M, Occupy Wall Street, etc) trouxeram ânimo a Hobsbawm. Em uma entrevista realizada em Janeiro de 2012, ele afirmou: "A Primavera Árabe é encorajadora. Eu não esperava ver em meu tempo de vida uma revolução genuína (old-fashioned) com pessoas indo às ruas e derrubando regimes, algo como a revolução de 1848, que é, na verdade, a origem do nome "Primavera Árabe". Lembre-se, 1848 era chamado de Tempo de Primavera do Povo. E o que acontecer no futuro é enorme. Houve outros desenvolvimentos positivos em razão da extraordinária facilidade com a qual é tecnologicamente possível mobilizar as pessoas. O movimento Occupy é um exemplo disto, assim como são as recentes demonstrações na Rússia. Não é possível tomar a passividade dos cidadãos como eterna. Há respostas. O povo que tomou a iniciativa não é uma minoria representativa. Eles são a minoria mobilizável, o que eu costumo chamar de "stage army of the good" - neste caso, exército de palco dos estudantes e boêmios. Mas o ponto é, se as coisas forem mais longes, pode ficar fora de controle. Uma das razões pelas quais eu me senti predisposto a escrever esse livro foi a de lembrar as pessoas, especialmente as pessoas jovens, de que é possível mudar o mundo" (cf. 'Revolution Springs Eternal for Eric Hobsbawm').
Hobsbawm nunca foi economista, mas tinha certeza de que o fundamentalismo de mercado globalizado levaria o sistema à ruína. Profundo conhecedor da história do século XX, sabia, desde o início, que o crash de 2008 era tão profundo quanto o de 1929. Em suas análises até meados de 2012, antes de sua pneumonia piorar, manifestava que os governos europeus e estadunidense estavam longes de superar a crise estrutural do sistema econômico. Os únicos países a serem elogiados foram os latino-americanos, que haviam mesclado medidas anticíclicas com redistribuição de renda e inclusão social. Como é sabido, Luiz Inácio Lula da Silva era um grande admirador de Hobsbawm, do mesmo modo que Hobsbawm elogiava o Brasil por ter "mudado o equilíbrio do mundo e levado os países em desenvolvimento para o centro da política internacional". No ano passado, eles estiveram juntos (cf. 'Lula: o modelo do líder político?'). Atualmente, trocavam mensagens e notas (cf. a nota oficial do ex-Presidente sobre a morte de Hobsbawm).
O sujeito Eric já não existe. Suas obras e ideias, entretanto, permanecerão publicadas em inúmeras línguas, influenciado uma enorme geração de acadêmicos, políticos e policy makers. Ao dedicar uma obra à importância da Marx em 2011, Hobsbawm relembra Joseph Schumpeter, que no início da década de 1940 escreveu Capitalism, Socialism and Democracy. Para Schumpeter, os anos de 1923 a 1943 testemunharam a mais interessante ressurreição marxista. O economista, leitor de Marx e crítico de sua abordagem, iniciava seu livro com o clássico parágrafo: "A maior parte das criações da inteligência ou da fantasia desaparece para sempre, em espaço de tempo que pode variar de uma hora a uma geração. Com outras, porém, tal não acontece. Sofrem eclipses, é certo. Mas ressurgem. E ressurgem, não como elementos irreconhecíveis da herança cultural, mas com roupagens e cicatrizes próprias, que podem ser vistas e tocadas. A estas podemos denominar de grandes, e não equivale a subestimar, unir a grandeza à vitalidade. Tomada em tal sentido, é, sem dúvida, a expressão que bem e aplica à mensagem de Marx. Há, ainda, uma vantagem em definir a grandeza pelo renascimento: a mensagem ressurge independentemente de nosso amor ou ódio. Não precisamos exigir que toda grande realização seja, necessariamente, fonte de luz, ou perfeita em seus pormenores e objetivos fundamentais. Ao contrário, podemos aceitá-la como um poder das trevas. Podemos achá-la fundamentalmente errada, ou não concordar com ela em numerosos pontos. No caso do sistema marxista, tal julgamento contrário ou mesmo refutação correta, por seu próprio malogro em feri-lo fatalmente, serve apenas para provar a força de sua estrutura".
Independentemente do amor ou ódio - parafraseando Schumpeter -, é preciso reconhecer a força do argumento de Karl Marx ao analisar o capitalismo. Talvez o último esforço de Hobsbawm tenha sido o de chamar a atenção dos leitores para algo que Marx possa sinalizar (não responder) para o enfrentamento da crise. É preciso reinterpretar Marx no século XXI ao invés de reciclar teorias marxistas do século XX. Talvez essa seja a mensagem do velho historiador. Será possível?
Os únicos argumentos que Marx teve contra o capitalismo se dirigem a um espantalho de capitalismo. Marx sequer entendeu a economia de mercado e o funcionamento do sistema de preços, ele simplesmente se baseou nos principais erros de Adam Smith e David Ricardo, em especial a teoria do valor-trabalho. Essa idéia é o seu axioma. Dele surge toda a sua teoria da exploração. No primeiro efeito necessário desse erro, o de que para haver trocas os valores devem ser iguais, Marx precisou se basear num dos argumentos mais frágeis em debates: o apelo à autoridade. Pra isso chamou a autoridade de Aristóteles. Somente isso, nunca tentou provar essa correlação. Em 1871 Menger publicou o seu Princípios, o que devastou toda a teoria marxiana do valor ao introduzir a teoria do valor subjetivo, refutando o axioma socialista. Alguns anos depois Böhm-Bawerk demonstrou as falhas do que restava da teoria da exploração ao simplesmente incorporar a ação do tempo na própria teoria de Marx. Um pouco mais tarde veio Mises e terminou de enterrar toda a teoria marxiana. Seus argumentos provaram a falta de qualquer sentido no marxismo, além de demonstrar os efeitos da adoção dessa religião na vida em sociedade. Seu artigo de 1922 sobre os problemas do cálculo econômico sob o socialismo demonstraram logicamente que, paradoxalmente, uma economia planejada era impossível de ser planejada. Nunca refutaram Mises e após a queda do muro de Berlin até o economista socialista multimilionário Heilbroner constatou: "Mises estava certo". Os neocons estão errados, não foi o capitalismo que venceu o socialismo, este afundou sob suas próprias contradições, como Mises havia argumentado anos atrás. Depois da queda do muro não houve liberalização da economia, o intervencionismo trocou de máscara. A crise de 2007-08 é resultado do intervencionismo; é resultado da manipulação estatal na produção de dinheiro como vem aumentando desde 1971, este socialismo monetário. Hobsbawm era ignorante em economia, como Marx. Sua obra é impregnada dessa ignorância e suas conclusões, até mesmo as mais contraditórias, só podem ser levadas à sério sob cegueira ideológica. A única saída de Marx à época para defender suas idéias furadas foi inventar o polilogismo, mesmo que ele mesmo tenha sido refém dessa bobagem, posto que era um burguês mantido com a mesada do industrial Engels. Ainda hoje essa é a única saída para os marxistas do século XXI. Pena para eles que o polilogismo também já tenha sido refutado. Hobsbawm fica para a história como mais um sujeito genial entorpecido pela fé marxista, cego por essa ideologia e completamente ignorante na lógica da ação humana.
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