Sadek e a dessacralização do Judiciário

Não há dúvidas de que Maria Tereza Sadek é a cientista política que mais conhece sobre as recentes transformações do Judiciário brasileiro. Há anos, Sadek - que é professora do programa de pós-graduação em Ciência Política da Universidade de São Paulo e pesquisadora sênior do Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais (Cebepej) - vem desenvolvendo pesquisas importantes sobre a reforma do Judiciário e o perfil da magistratura brasileira (cf., por exemplo, o artigo 'Judiciário: mudanças e reformas', de 2004, e o livro 'Magistrados: uma imagem em movimento', de 2006). Suas pesquisas pioneiras ajudaram a revelar um pouco mais sobre essa desconhecida instituição que é o Poder Judiciário, bem como tornou público para a comunidade científica importantes dados sobre o perfil dos magistrados brasileiros (com base em ampla pesquisa empírica, Sadek revelou que o magistrado brasileiro típico é do gênero masculino, de cor branca, com média de idade de 50 anos, casado, com filhos, proveniente de família com mais de um filho, filho de pais cmo escolaridade inferior à sua, formado em Faculdade de Direito pública, sem especialização stricto sensu).

Há muitos anos ela tem defendido que o Judiciário brasileiro, diferentemente do que ocorria no passado, está na berlinda e não apresenta mais condições de impedir mudanças institucionais: "reformas virão e mudanças já estão em curso, algumas mais e outras menos visíveis, alterando a identidade e o perfil de uma instituição que sempre teve na tradição uma garantia segura contra as inovações", alertava a cientista há oito anos, época em que foi aprovada a Emenda Constitucional nº. 45, marco maior da transformação gerencial pró-accountability desta esfera do poder público. Seja por pressão do mercado e dos organismos multilaterais como o Banco Mundial (cf. World Bank Technical Paper 319/1996, 'The Judicial Sector in Latin America and the Caribbean: Elements of Reform') ou pela conscientização por parte da população brasileira de que o Judiciário é, acima de tudo, um prestador de serviços, Maria Tereza Sadek tem defendido a tese - correta, ao meu ver - de que o Judiciário brasileiro está se tornando mais transparente.

Sábado passado (14.01), Sadek publicou no jornal Estado de São Paulo um breve texto sobre a "dessacralização do Judiciário", um progressivo processo de mudanças no interior da magistratura e na percepção sobre o Judiciário pela sociedade. Concordando ou não, vale a pena conferir (o texto foi copiado do portal Os Constitucionalistas, a quem dou os créditos).


A Dessacralização do Judiciário

O Judiciário brasileiro tem sido identificado com uma caixa-preta. O juízo crítico propagou-se. Encontrou receptividade por retratar em uma só imagem a percepção popular de uma instituição fechada e desconhecida. Uma combinação de traços associados ao segredo, à opacidade, ao isolamento em relação à sociedade constrói a representação. Características peculiares da magistratura contribuem para a imagem. Entre elas estão desde garantias constitucionais – vitaliciedade, irredutibilidade de vencimentos, inamovibilidade – até uma tradição assentada na discrição, numa cultura formalista e num linguajar hermético.

Uma magistratura homogênea, corporativa e refratária a críticas resultaria dessa percepção. Para completar, o retrato teria o condão de ser imune ao transcorrer do tempo, guardando no presente as marcas do passado.

Essa representação vem sendo posta em xeque. Aspectos novos indicam o desenrolar de um processo de transformação. Os efeitos da Constituição de 1988 e especialmente da Emenda Constitucional 45, de dezembro de 2004, tornam-se visíveis não apenas no perfil e na atuação da instituição, mas nas características de seus integrantes.

Vários fatores podem ser arrolados como impulsionadores desta nova magistratura. Em primeiro lugar deve-se notar o crescimento numérico, que, por si só, já imporia mudanças. O número de juízes mais do triplicou desde a redemocratização do País, passando de quase 5 mil em 1988 para aproximadamente 15 mil 23 anos depois. A participação feminina, que até os anos 80 era de apenas 8%, atingiu 25%, inclusive com mulheres integrando os tribunais superiores. Essas alterações de caráter demográfico foram acompanhadas de significativas mudanças de natureza sociológica. Houve uma clara democratização na composição interna da magistratura, com uma importante proporção de juízas e juízes provenientes de famílias sem tradição no sistema de justiça e com pais e mães com baixos índices de escolaridade, havendo até aqueles com pais sem instrução formal.

Informações propiciadas por pesquisa realizada pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) em 2005 revelavam que as mudanças em curso não se resumiam a esses aspectos. Sinais ainda mais excepcionais puderam ser observados nas opiniões expressas sobre uma série de questões, incluindo temas relacionados à distribuição de justiça e a questões corporativas. A pesquisa da AMB mostrava que variáveis como gênero, idade, tempo na magistratura, instância de atuação e região apresentavam correlação com avaliações e percepções tanto sobre a instituição como acerca de temas da vida pública. No conjunto, esses dados permitiam concluir que muitos dos mitos, estereótipos e suposições sobre a magistratura não coincidiam com a realidade. A diversidade interna e o pluralismo de opiniões desenhavam um perfil novo da magistratura.

O pluralismo pode ser constatado em manifestações sobre vários temas. Muitas das inovações criadas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) não haviam ainda sido implantadas. Uma, por exemplo, a proibição de contratar parentes para cargos em comissão, obteve o apoio da maioria. Notava-se, contudo, que o apoio era muito mais expressivo entre os juízes de primeiro grau do que entre os que atuavam em tribunais (71% x 58%), entre os com menor tempo na magistratura do que entre os mais antigos (75% x 60%), entre os do Sul do País do que entre os do Centro-Oeste (73% x 60%), entre os que exerciam suas funções nas unidades da Federação com IDH mais alto do que nas de IDH baixo (72% x 67%).

Os exemplos poderiam ser multiplicados. O que se pretende salientar é que a diversidade interna, que desde então já se manifestava, ganhou ímpeto e novos fóruns. O pluralismo tem-se evidenciado não apenas internamente, mas também de forma pública. Posições sobre temas relevantes têm sido explicitadas, ampliando o debate de questões que afetam não só o corpo de juízes, mas a vida social, econômica e política do País.

O recente questionamento da AMB sobre as competências do CNJ evidenciou tanto o pluralismo no interior da magistratura como a ampliação do fórum de debates. Tais fenômenos são auspiciosos do ponto de vista do processo de construção de uma instituição guiada por valores democráticos e republicanos. Ministros, desembargadores, juízes expuseram argumentos revelando suas posições. Divergências vieram a público explicitando princípios em confronto. As discordâncias e sua divulgação mostram quão anacrônica se tornou a figura do “juiz boca da lei”, do juiz que não manifesta opiniões, do juiz alheio ao que se passa na sociedade.

Acompanhando e impulsionando esse processo de transformação da magistratura e de sua relação com a opinião pública, os meios de comunicação têm reservado espaço cada vez maior para temas envolvendo o Judiciário, ampliando significativamente a arena de debates. Com efeito, o exame de editoriais, reportagens, cartas de leitores sobre o trabalho do CNJ tornou manifesto o desgaste do paradigma segundo o qual “juiz só se pronuncia nos autos” e questões da justiça são muito técnicas para serem debatidas por não iniciados.

Do ponto de vista da opinião pública, vem ocorrendo um fenômeno que poderia ser caracterizado como de dessacralização do Judiciário, aventando-se a possibilidade de punição de comportamentos desviantes, de questionamentos do que é visto como regalias e privilégios. Tal fenômeno, além de indicar um processo de mudanças no interior da magistratura e na percepção sobre o Judiciário pela sociedade, indica também que exigências centrais da democracia e da República – transparência e prestação de contas pelas instituições – se tornaram demandas de difícil reversão.

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