Nada contra os processualistas. Tenho respeito por alguns e confesso que, há três anos, quando iniciei minha "pseudo-carreira acadêmica" num programa de iniciação científica, processo civil era minha área de estudo. Na verdade, menos processo hard-core e mais teoria, pois investigava a atribuição de força ao precedente judicial a partir da proposta teórica de um autor italiano, Michele Taruffo (que foi professor do meu orientador na Universidade Federal do Paraná).
Depois de alguma intimidade com a literatura sobre reforma do judiciário (em especial, as inovações pós-Emenda Constitucional nº. 45), percebi que os processualistas só estavam interessados em saber como as coisas acontecem e não o porquê. Daí meu problema com esses juristas. Eles não enxergam, por exemplo, que a aproximação entre civil law e common law está relacionada com questões mais complexas, como a integração dos mercados financeiros e a necessidade de criação de ambientes jurídicos propícios ao investimento em economias globalizadas. Os processualistas enxergam o micro, mas não olham o macro, não observam as questões conjunturais; não enxergam que o Brasil passou por uma verdadeira revolução capitalista industrial e que está progressivamente integrado à economia globalizada e à formatação institucional pró-mercado.
Não é por acaso que acabei migrando de área: de processo civil para sociologia jurídica, o que fui descobrir somente depois de ter finalizado a redação de uma monografia de conclusão de curso sobre a influência do Banco Mundial na reforma do judiciário brasileiro. A partir de uma indagação pessoal (compreender o motivo de tantas mudanças na legislação processual) e de um certo espírito investigativo, me deparei com toda uma literatura crítica que tratava dos efeitos da globalização econômica e da inevitável aproximação entre direito e economia após a "virada institucional". Não é que os juristas descobriram a importância da economia (muitos ainda ignoram essa área do saber), mas os economistas é que se voltaram à dinâmica de funcionamento da justiça, visto que o direito moderno provê racionalidade, segurança jurídica e calculabilidade às transações econômicas. Daí essa avalanche de estudos sobre incerteza jurisdicional, análise econômica do direito, direito e desenvolvimento, governança, independência do judiciário e a importância das instituições para a economia de mercado - estudos promovidos por centros de pesquisas de economias capitalistas avançadas ou organismos multilaterais de crédito orientados à reforma das instituições de economias emergentes (reformas de "segunda geração", pós-Consenso de Washington) e países considerados subdesenvolvidos. O caso brasileiro não escapou à lógica reformista ocidental: após a liberalização da economia e estabilização macroeconômica, iniciou-se um processo de adequação das instituições jurídicas aos padrões anglo-saxônicos, garantindo maior segurança jurídica e redução dos custos de transação.
O ano de 2010, um ano de pesquisa intensa para mim, foi importante para descobrir as motivações econômicas das reformas jurídicas no país. Foi possível então compreender a lógica que talvez os processualistas - preocupados em dominar a dogmática processual e compreender os detalhes dos institutos processuais vigentes no país - não enxerguem. Não é por acaso que Gilmar Mendes, quando era presidente de Supremo Tribunal Federal, fazia questão de elaborar relatórios aos investidores estrangeiros sobre os novos mecanismos processuais como a súmula vinculante e a repercussão geral no recurso extraordinário como forma de racionalizar a justiça brasileira e verticalizar as decisões aos tribunais de cúpula. Os grandes atores econômicos cobravam (e ainda cobram) um ambiente jurídico seguro e calculável e um judiciário eficiente.
O que estou tentando explicitar aqui é algo que o sociólogo do direito José Eduardo Faria tem frisado em muitos de seus textos. Em uma obra recente (Direito e Conjuntura, 2008), em especial, Faria trata desta tendência do processo civil de reformulação paradigmática, que inclui o enxugamento do procedimento ordinário, a redução drástica do número de recursos judiciais, a desburocratização dos agravos, a ênfase ao princípio da oralidade, a agilização do trâmite de processos em que já existe jurisprudência estabelecida, a conversão dos tribunais inferiores em instâncias terminativas para determinados tipos de conflitos, a valorização da jurisprudência por meio da adoção de súmulas vinculantes e a conversão da última instância judicial em corte exclusivamente constitucional - fenômenos que podem ser observados diante das recentes mudanças como a criação de juizados especiais, a atribuição de força ao precedente judicial, o desafogamento da justiça através da arbitragem e mediação e a tentativa de adoção de um novo Código de Processo Civil com menos possibilidades de recursos. Para Faria, essa tendência decorre da incompatibilidade da concepção de tempo adotada pela legislação processual e a concepção de tempo prevalecente no processo decisório no âmbito dos mercados transnacionalizados, especialmente os financeiros.
Os processualistas (refiro-me a um "tipo-ideal" e não a um grupo específico de autores) não enxergam os efeitos da transição da sociedade industrial para a sociedade informacional. Com o desenvolvimento da informática, a revolução micro-eletrônica e o avanço da tecnologia de comunicações, o processo decisório é cada vez mais instantâneo, enquanto que o tempo da justiça é concebido em etapas, numa velocidade típica de uma sociedade liberal moldada economicamente por um modo de produção mais lento. O tempo do direito não conseguiu acompanhar o tempo da economia globalizada pós-revolução informacional: "As legislações processuais civil e penal continuam sendo basicamente regidas pela ideia do tempo diferido, isto é, pelo tempo das etapas que se articulam de maneira sucessiva, por fases que se sucedem cronologicamente, condicionado pelos limites da jurisdição territorial dos aparatos judiciais. Decorre daí a propensão dos agentes econômicos de reivindicar mais simplicidade processual, maior rapidez decisória e mais previsibilidade judicial, com o objetivo de reduzir os custos das transações, aumentar a fluidez dos negócios, equalizar oportunidades, facilitar os investimentos internacionais e gerar confiança entre os grandes investidores, por um lado, e a evitar tribunais lentos, excessivamente ritualizados e tecnicamente ineptos e a reduzir sua interferência na regulação do meio ambiente, da defesa da concorrência, dos serviços públicos e dos mercados de crédito, aluguel e serviços privados, neutralizando as incertezas jurisdicionais por meio de mecanismos decisórios bem mais flexíveis, ágeis e dinâmicos, como a mediação, a conciliação e a arbitragem extrajudiciais, por outro".
As pressões para mudança não vêm somente dos organismos multilaterais como o Banco Mundial, mas também das megafirmas de advocacia e de consultoria que exigem um padrão unificado de direito civil e comercial e financiam centros de estudos que realizam a defesa de um processo civil transnacional, isto é, um único padrão processual para questões civis e negociais, garantindo um modelo homogêneo em países integrados economicamente. Eis o argumento de Faria: "nos países desenvolvidos, as pressões em favor da reformulação paradigmática das legislações processuais civil e penal têm sido exercidas, entre outras fontes, pelas megafirmas de advocacia contratadas por empresas mundiais e por conglomerados transnacionais para prestar assessoria jurídica em todos os mercados que estão presentes. Nos países periféricos e semiperiféricos, essas pressões têm sido exercidas basicamente por organismos multilaterais de crédito, para cuja burocracia nenhum país consegue crescer economicamente se não contar, entre outros fatores, com instituições judiciais capazes de tomar decisões previsíveis e formar uma jurisprudência uniforme em matéria de garantia da propriedade, exigibilidade contratual e responsabilidade civil. Com uma linha de atuação muito mais preventiva e consultiva do que forense, organizada em moldes semelhantes às grandes firmas multinacionais de contabilidade e auditoria, como a Arthur Andersen, a PricewaterhouseCoopers, a Deloitte and Touche, a Ernest & Young e a KPMG Peat Marwick, e integradas por operadores de direito com formação multidisciplinar, dotados de habilidades analíticas e capazes de agir em conjunto com economistas, analistas de mercado, administradores, engenheiros de produção, engenheiros financeiros, especialistas em cálculos atuariais e auditores nas operações de compra, venda, fusões, incorporações, reestruturações, privatização, avaliações de risco, formulações de contratos e auditoria legal, esses mega-escritórios de business lawyers fazem dessa estratégia um instrumento para operar em muitas jurisdições ao mesmo tempo conjugar expertise jurídica e financeira, universalizar formas de contratos e procedimentos para sua execução, assegurar padrões internacionais de qualidade, expandir sua atuação em mercados transnacionalizados e reduzir gastos de seus clientes corporativos com os chamados custos de transação (Dezalay e Garth, 1995 e 2000; Flood, 1996; Gorman, 1999; Pinheiro, 2000; Kirat e Sérverin, 2000; Sand, 2002 e 2004; Gessner, 2005; e Uprimny, 2006)".
Não há como ignorar a globalização econômica e seus múltiplos efeitos. Como anunciou o The Guardian, o Brasil é a 6ª maior economia do globo, um dos países que mais recebe aporte de capital após a crise econômica de 2008 que voltou a assombrar o mundo em 2011. Para entender as mudanças processuais de um país que progressivamente se insere à lógica do capitalismo financeiro global, é preciso analisar e compreender de que forma o direito se relaciona com a economia. Mais ainda: é preciso superar o discurso vazio anunciado pelo senso comum teórico dos juristas de que as reformas processuais objetivam a democratização da justiça, a celeridade e a eficiência. Uma velha pergunta da língua latina deve ser formulada: cui bono? Quem se beneficia? Obviamente, as reformas ocorridas na última década objetivam um fim. Me parece ingenuidade pensar que são mudanças endógenas direcionadas ao bem-estar do povo. Não há como negar o poder do mercado e a força dos atores econômicos envolvidos neste processo.
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