"Apresentação de Silvio Barros (prefeito) na Associação Comercial de Maringá aos empresários chineses". Foto: Douglas Marçal
Dia 10 de Outubro escrevi um pequeno texto sobre a dinâmica de produção da Foxconn, empresa taiwanesa responsável pela etapa final de fabricação de aparelhos eletrônicos como iPods e iPads da cultuada Apple, a mais famosa empresa do Vale do Silício na Califórnia (USA). O que fiz foi apontar alguns dados, com base em artigos de pesquisadores orientais, sobre as altas taxas de suicídio dos trabalhadores chineses. No final das reflexões, compartilhei um curta-metragem sobre o perfil dos operários da Foxconn, geralmente jovens trabalhadores migrantes de outras regiões do interior da China, jovens sem maiores sonhos ou perspectivas futuras.
Alguns dias depois, o texto foi publicado na seção Outras Mídias ("seleção do melhor da mídia alternativa"), do excelente portal Outras Palavras, pelo editor Antonio Martins de São Paulo (cf. 'Foxconn e iPhones: o que o ocidente não vê'), bem como incentivou o estudante Lucas Cabreira da Faculdade de Direito da Universidade Estadual de Maringá a escrever o texto Quanto Vale o Direito do Trabalho no Brasil, no qual analisa as recentes inovações legislativas realizadas para incentivar a vinda da Foxconn para o Brasil (como a Lei 12.507/2011) e aborda a questão da exploração do trabalho híbrido material/imaterial em território brasileiro ("Neste momento que a preocupação me atinge: porque, agora, a Foxconn está querendo vir pro Brasil? Logo pra cá? Uma empresa deste porte, que ganha bilhões em cima deste tipo de exploração do trabalho, e que precisa deste sistema de produção, está entrando no pais apenas pelo incentivo fiscal? Ou estará também visando eventuais 'vistas grossas' da lei trabalhista para adentrar com estes métodos de produção aqui? E o qual a atitude do governo em relação a isto? Isenção fiscal, incentivando ao máximo a entrada desta empresa, e nenhuma precaução trabalhista?"). Sua preocupação tem fundamento.
Nos últimos dias, especulou-se muito sobre a instalação da nova fábrica (cidade-inteligente? ou cidade-exploração?) no noroeste do Paraná, especificamente entre Maringá e Londrina. Em agosto deste ano, Vinícius Carvalho, jornalista do O Diário, relatou a visita da comissão da Foxconn à Cidade Canção e deu detalhes dos requerimentos dos representantes da empresa taiwanesa (concessão de terreno, proximidade de aeroporto para transporte de cargas e tecnologia de banda larga) : "O grupo foi ciceroneado pelo secretário estadual da Indústria, do Comércio e Assuntos do Mercosul, Ricardo Barros, mas foi o prefeito Sílvio Barros (PP) que apresentou as potencialidades da região para os orientais. Em inglês, o prefeito explicou que as empresas de energia elétrica e de água no Paraná são estatais e que não haveria problemas para o suprimento desses insumos para a futura planta industrial da Foxconn (...) O Diário acompanhou a comitiva até Arapongas, onde foi mostrado o terreno que pode abrigar a nova sede da multinacional. A área atualmente é um pasto, adjacente ao aeroporto do município, no quilômetro 232 da PR-218, entre Arapongas e Sabáudia. O local fica a 45 quilômetros do aeroporto de Londrina e a 78 do aeroporto de Maringá. A Foxconn pede um terreno de 49 mil metros quadrados próximo de estradas, aeroporto internacional de cargas e com oferta de tecnologia de banda larga e energia elétrica". Eis o gráfico da área oferecida pelas "lideranças" do norte do Paraná.
Fonte: O Diário do Norte do Paraná (2011)
Ontem o portal do iG publicou uma notícia que causou um certo tumulto entre os jornalistas, desesperados por informações e fontes seguras. A partir de um informante que pediu anonimato, Adriano Ceolin (jornalista do iG) escreveu em Brasília: "A presidente Dilma Rousseff e o presidente mundial da Foxconn, Terry Gou, acertaram que uma das duas fábricas de tela plana sensíveis ao toque, utilizadas na fabricação do iPad, que a Foxconn pretende construir no Brasil no próximo ano será instalada em Maringá, no Paraná. A companhia, que já está fabricando o iPhone no Brasil, não revelou ainda qual será o investimento na unidade e nem prazos específicos de quando ela será instalada". A matéria logo repercutiu nos veículos locais, que reproduziram a informação (cf. 'Foxconn vai instalar fábrica de telas de iPad em Maringá').
De ontem para hoje o cenário mudou. A Gazeta de Maringá, em matéria assinada por Fábio Guillen, negou que a cidade teria sido escolhida para instalação da nova unidade brasileira da Foxconn, mas afirmou que a cidade permanece no páreo: "Maringá permanece no páreo para receber uma das duas unidades de fabricação de displays (telas sensíveis ao toque) da Foxconn no Brasil. Na manhã de ontem, o portal IG publicou notícia de que a instalação da fábrica na cidade do Noroeste paranaense estaria confirmada, mas tanto a empresa chinesa quanto os ministros Gleisi Hoffmann, da Casa Civil, e Paulo Bernardo, das Comunicações, desmentiram a informação. 'Não há qualquer confirmação em relação à instalação de uma das unidades da Foxconn em Maringá. É certo que a cidade continua na disputa, mas ninguém bateu o martelo', afirmou Bernardo. A informação do IG teria vindo de uma pessoa que teria participado de uma reunião na Casa Civil sobre o assunto, ainda na manhã de ontem. 'Não houve qualquer reunião sobre a Foxconn', ressaltou o ministro". A reportagem do O Diário também entrou em contato com o Prefeito da cidade, Silvio Barros, e com o Deputado Estadual Ênio Verri, que negaram a informação do jornalista do iG.
Deixando de lado as especulações e boatos que movem o mundo empresarial, o ponto central é indagar quais são as condições de trabalho que serão impostas pela Foxconn (líder mundial na produção de manufaturados eletrônicos) no Brasil. É óbvio que o que a empresa deseja é redução de custos de produção para manutenção de competitividade e altas taxas de lucro. Aqui ela já conseguiu isenção fiscal, concessão de terrenos públicos e infra-estrutura energética e operacional. Resta saber se a empresa também conseguirá reduzir os custos de produção com a mão de obra. Não irá me estranhar se tivermos inovações legislativas no sentido de legitimar o uso de câmaras de arbitragem para resolução de conflitos trabalhistas envolvendo a Foxconn, retirando do Estado o monopólio para tais litígios (a Lei de Arbitragem, Lei 9.307/96, fala, no artigo 1º, que ela dirime litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis – e, na esfera trabalhista, esses direitos costumam ser vistos como indisponíveis e irrenunciáveis). Diversos empresários defendem que a arbitragem, quando utilizada sem fraude ou coação e com orientação e ampla informação, é válida - uma tese ainda minoritária entre os Ministros do Tribunal Superior do Trabalho.
A academia tem um papel importante aqui. Os professores e alunos do curso de Direito da Universidade Estadual de Maringá, por exemplo, devem somar esforços com pesquisadores (docentes e discentes) de Economia, História, Administração e Sociologia e fazer um amplo levantamento sobre a gestão organizacional da Foxconn, sua dinâmica de produção, a relação da Foxconn com o perfil das grandes empresas do Leste Asiático, o novo regime transnacional de produção de bens tecnológicos, a real influência da instalação de uma empresa de montagem para a questão da inovação tecnológica, os riscos e benefícios de novas unidades da Foxconn no Brasil, a questão do bem-estar do trabalhador nas fábricas da Foxconn, o papel do direito nas políticas de fomento à inovação tecnológica, a possibilidade de quebra de patente para fins sociais, entre outros temas.
A universidade tem que se apropriar dos espaços de discussão e produção normativa. Ela representa o interesse público, desvinculado do viés partidário ou da motivação empresarial. A instalação de uma unidade da Foxconn na região de Maringá beneficiaria enormemente a família Barros (que levaria os créditos pela negociação política e conseguiria apoio em próximas eleições) e o empresariado de Maringá (imagine 100 mil novos trabalhadores consumindo bens e serviços). Mas a questão é: a Foxconn beneficiaria a população maringaense? Em que medida? Como?
Não é à toa que o contribuinte paranaense paga em dia seus tributos, os quais são parcialmente destinados à universidade. O trabalhador não tem tempo, condições intelectuais e materiais de responder essa questão. Essa questão tem que ser colocada pela universidade e não pela mídia. Os veículos de comunicação têm a obrigação de informar imparcialmente os fatos - e esperam lucrar com isso. A academia, pelo contrário, não tem obrigação de noticiar, mas sim de analisar e avaliar. Somente com o rompimento do fechamento disciplinar é que um grupo competente de jovens pesquisadores de diversas áreas poderá realizar uma pesquisa descritiva e normativa com potencial transformador (uma pesquisa, por exemplo, sobre os impactos da instalação de uma "cidade-fábrica/cidade-inteligente" aos arredores da região metropolitana de Maringá a partir da análise das experiências de outras regiões que receberam unidades da Foxconn, avaliando seus reflexos econômicos, sociais e jurídicos; ou então uma análise sobre a mobilização política para atração da empresa nos níveis federal, estadual e municipal a partir de entrevistas semi-estruturadas com os atores políticos envolvidos nesse processo, deflagrando os reais interesses mascarados sob o lema do "interesse público"). A universidade tem que assumir esse papel. Os estudantes precisam abandonar seus estágios em escritórios e repartições públicas e iniciar a condução dessa importante função de observação social e formulação de políticas públicas. A mudança tem que vir da base. Sem a demanda e pressão dos estudantes, os professores não se sentirão estimulados e realizar tal tarefa, que exige tempo, coordenação, dedicação e espírito investigativo. Muitos professores já se esqueceram do papel da academia. Os acadêmicos precisam lembrá-los do papel fundamental que a universidade exerce para a sociedade através do tripé pesquisa-ensino-extensão.
As notícias são importantes, mas os estudos acadêmicos tem um papel fundamental na compreensão do significado da possível instalação de uma unidade de Foxconn no interior do Estado do Paraná (ou de qualquer outro Estado). Um primeiro passo talvez seja mapear o debate sobre a questão dos trabalhadores da empresa taiwanesa. Os interessados no tema podem ler e discutir, por exemplo, o interessante relatório produzido pelos pesquisadores do Students & Scholars Against Corporate Misbehaviour de Hong Kong, Debby Chan e Yi Yi Cheng, intitulado "Workers as Machines: Military Management in Foxconn", que utilizou de pesquisa de campo entre maio e setembro de 2010 (em especial, entrevistas) para analisar o regime militar de produção da Foxconn. Outro texto chave, produzido pelo Asian Monitor Resource Centre, é "Foxconn Workers Speak: We Are Treated Worse Than Machine", escrito em 2011 por Surendra Pratap, Venkatachandrika Radhakrishnan e Madhumitta Dutta, que faz uma compilação sobre os dados de exploração trabalhista na China.
Acima de tudo, os acadêmicos precisam colocar uma questão aparentemente simples: o que o Brasil realmente ganha com isso? Aqui o diálogo entre sociólogos, juristas e economistas pode render um profundo debate. Como aponta Mansuedo Almeida (pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), a ideia que está por trás (ou o discurso assumido pelo governo) é interessante: o governo dá incentivos e traz para o Brasil a montagem de um produto que, supostamente, envolve elevado conteúdo tecnológico, elevado valor adicionado e cuja produção poderia até servir de plataforma de exportação para outros países da América Latina. Mas será que a fabricação de touchscreen para tablets, cuja patente está fortemente protegida (excluindo o uso por outros), traria tantos benefícios? A agregação de valor não seria feita pela Apple?
A expectativa média - o senso comum reproduzido pelos veículos de comunicação - é que a Foxconn empregue mão-de-obra qualificada (alguns estimam 20.000 engenheiros) e traga fornecedores de insumos, o que levaria a transferência de tecnologia para empresas domésticas que poderiam entrar na lista de fornecedores da Foxconn. Entretanto, como aponta Mansueto, as consequências podem seguir um rumo diferente: "Infelizmente, essa expectativa pelo que sei não tem respaldo nem com o modus operandi da Foxconn e nem tão pouco com a organização da cadeia global de um produto como o iPads. Em primeiro lugar, a Foxconn opera com fábricas de grande escala, algumas com mais de 400.000 trabalhadores que são verdadeiras fábricas em forma de cidades. Embora a Foxconn seja uma empresa de Taiwan, fez elevados investimentos para montar os iPads, iPhones e iPods na China porque tanto a carga tributária (mesmo de 20% do PIB) quanto o custo da mão-de-obra (em dólar) na China são baixos. O Brasil não passa neste teste e, assim, a única forma de sermos competitivos no âmbito global na montagem desses produtos seria com muitos incentivos fiscais e financeiros de todos os tipo que se possa imaginar e, por que não, com uma montanha de recursos do BNDES para facilitar a atração da Foxconn. Segundo, já foi fartamente documentado por quem estudou o assunto que agregação de valor não tem absolutamente nada a ver com o local da produção”.
Com base num estudo de Kenneth Kraemer, Greg Linden e Jasson Dedrick (2011) sobre a agregação de valor do iPad, o economista do Ipea demonstra que o valor adicionado na China - local de operação das grandes unidades da Foxconn - é pequeno e que os EUA, que não produzem um único iPad mas controlam o design, o software e a marca, é quem mais ganha em cada aparelho produzido. O argumento dos autores é claro: "It is a common misconception that China, where the iPad is assembled, receives a large share of money paid for electronics goods. That is not true of any name-brand products from U.S. firms that we’ve studied". O mesmo raciocínio poderia ser aplicado para os tablets da Apple que seriam produzidos no Brasil.
Fonte: Mansuedo Almeida (2011), adaptado de Kenneth L. Kraemer, Greg Linden, e Jason Dedrick (2011)
Os números mostram muita coisa. O Brasil não teria muito a ganhar com a montagem de iPads e tablets da Apple. Os ganhos são imediatos (mais emprego, investimentos no país, bens e serviços em torno da produção em escala global), mas não fica claro se o investimento pesado por parte do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (o gigante BNDES) pode, de fato, resultar em inovação tecnológica e um boom de novas empresas do ramo. Para Mansueto, melhor seria utilizar o dinheiro público para outros tipos de políticas públicas: "talvez turbinar o funcionamento de fundos de venture capital, uma indústria ainda pequena no Brasil, para fomentar um pouco de Steve Jobs que existe em muitos jovens que, devido a todas espécies de dificuldades para se iniciar um novo empreendimento no Brasil, terminam fazendo concurso público ou indo trabalhar em instituições financeiras".
Esse tipo de discussão, nem a mídia, nem o empresariado, nem as lideranças políticas conseguem fazer. Muito menos a população, desorganizada e intensamente ocupada com um mínimo de prosperidade econômica familiar. Repito: a universidade tem que assumir esse papel e se apropriar dos debates como importante ator de formulação de políticas públicas. O direito, em especial, tem que sair dos livros e ir para a ação. Estudos de caso como o da Foxconn, por exemplo, podem trazer toda a bagagem teórica que é geralmente ministrada num curso de graduação (seja em direito, economia, ciências sociais) e tornar-se temas de aulas, que por sua vez se tornam muito mais interativas e conectadas com a realidade.
É hora de agir e se engajar.
E não de sumir ou se enganar. O caminho é esse mesmo Zanatta. Você toca em diversos pontos de extrema importância. Um deles, a Universidade. Acho que os últimos a se preocuparem com as questões da Foxconn serão os alunos do direito, infelizmente. Mas o debate tem que vir daqui, porque fora dos muros da Universidade, me parece que reinam o senso comum (mais empregos, renda, "desenvolvimento regional", etc) ou o lado empresarial.
ResponderExcluirO segundo ponto é a política por traz. Os Barros ja estão por traz de tudo, e creio que não só eles. Isso é preocupante. A duas semanas atrás, acabava em Brasília a primeira audiencia publica feita pelo TST a respeito da terceirização. Ficou nítido no discurso dos empresários e políticos-empresários que se pronunciaram, a clássica falácia: o hipócrita e superficial "somos contra a precarização", e a constante e insistente demonstração das vantagens da intermediação de mão de obra: gera empregos, traz renda ao municipio, etc etc... para encobrir a contrapartida desproporcional de subcontratação que isto sempre gera. Não existe precarização para eles.
Estas questões não estão sendo levadas a cabo pelo governo. Ja pensou, uma lei instituindo a solução de conflitos da Foxconn em câmaras arbitrais? O cumulo da flexibilização. Declaração escancarada do legislativo: "vem Foxconn, e precariza a vontade que agente deixa..." Olhando de cima, sempre parece bom, desenvolvimentista a instalação de uma fábrica dessas. O problema é que de baixo sempre precariza. Criar renda e emprego não pode significar criação de rendas miseráveis pra a maioria e renda gorda para só para o empresário (o grande empresário, os pequenos locais ficam normamente com migalhas tbm). Criar empregos não pode ser criar milhares de subcontratados...
Enfim, temos um problema chegando por ai... Ficarei de olho por aqui. Mas uma vez, brilhante explanação Zanatta. Abração.
Bravo!! Clap Clap Clap!
ResponderExcluirParabéns por mais um excelente texto, Rafa! Vou compartilhar!
Um grande abraço!
Nano